sábado, 18 de abril de 2020

O VELÓRIO DO ZÉ RAPARIGUEIRO

Adão de Souza Ribeiro

                        Se tinha uma coisa que o meu amigo Zé não gostava de falar era sobre a morte. Causava ojeriza só de pensar na palavra. “Não fala isso, que traz mau agouro”, dizia ele. O amigo de que tanto falo, procurava desconversar, toda vez que o assunto girava em torno de alguém que partiu antes do combinado. Sabia que um dia, iria dar de cara com ela batendo à sua porta; mas, a bem da verdade, preferia que adiasse por muito tempo a tal visita. Nem piada gostava de fazer ou ouvir a respeito do assunto tão indesejado.
                        Quando alguém partia para mansão do desconhecido, o Zé não participava da despedida derradeira. Sabia que se lá estivesse, causaria constrangimento aos presentes, pois iria levar tudo na brincadeira. Por isso, costumava passar procuração informal para que alguém o representasse. Se fosse preciso, pagaria até umas carpideiras, para derramarem lágrimas pesarosas no lugar dele.  Era bom, porque a presença delas, na solenidade fúnebre, dava certo status defuntício ao de cujus.
                        Tenho grande saudade das vias crúcis, que fazia com o velho amigo nas noitadas boemias ou nas tardes preguiçosas de domingo. Percorríamos bar por bar ou quiosque por quiosque, onde, em companhia de outros amigos, dividíamos os copos de “mé” ou as dolorosas histórias de “chifres”. Quantas vezes a comida feita pela “dona Encrenca”, esfriava em cima do fogão à nossa espera. Voltar para o reduto do lar, depois de longas horas de romaria, era verdadeiro calvário. Era bronca na certa ou uma dolorosa surra com pau de macarrão.
                        Se tinha uma coisa que eu admirava naquele saudoso amigo, era sua queda por um “rabo de saia”. Pensa num raparigueiro de marca maior. Assemelhava-se aos caminhoneiros ou caixeiros viajantes, pois em cada parada, tinha uma amante. Dona Encrenca tinha um valor imensurável, mas as amantes também tinham lá suas qualidades. A primeira oferecia um reduto, repleto de conforto, segurança e filhos; já outra, dava carinho, sexo e muitas fungadas na nuca. Em compensação, pelo conforto oferecido, uma pedia mil coisas em troca; mas a outra, após saciar seus desejos bestiais, nada pedia em troca. Penso que é por isso que o Zé, meu velho e saudoso amigo Zé, nunca abriu mão do título de “Zé Raparigueiro”. Os amigos o invejavam e já as mulheres com suas donzelices enrustidas, temiam ser conquistadas, ou melhor, ser seduzidas por ele.
                        E assim o Zé levou a vida, sem se preocupar com nada deste mundo. Um homem trabalhador, honesto, bom esposo, pai e filho. Era pau para todo obra. Solicito para com os amigos e parentes. Fugia da morte e da tristeza, mas não abria mão de ser alegre e raparigueiro. Toda criança e cachaceiro tem um anjo da guarda infalível. Quantas vezes, dirigindo o seu “baja”, chegava a casa trançando as pernas, sem saber o trajeto percorrido. “Será que os cachaceiros e raparigueiros tinha um GPS especial?”, pensava com meus botões.
                        Ele, o meu amigo Zè, achava graça e leveza em tudo. Vivia sorrindo de tudo e até parecia um bobo alegre. Adorava participar ou fazer churrasco. Reunir-se com os parentes ou amigos, era seu maior e mais prazeroso passatempo. Apesar dos seus pequenos defeitos, se assim podíamos dizer, a dona Encrenca não se desgarrava dele. Para mim, aquele jeito malandro do Zé (malandro no bom sentido), a fascinava e causava certo tesão (excitação) nela. Posso ser sincero? Não só nela, mas, também, em outras donzelas ou não.
                        Com aquele jeito de “Dom Juan Di Marco”, acabou conquistando e se relacionando com dezenas de fêmeas. Dentre todas, selecionou seis com quem “furunfou” e teve filhos e filhas. Com maestria, sabia dar conforto e carinho a todas elas e aos filhos também. Se um escritor ou cineasta o tivesse conhecido, transformaria a sua vida de raparigueiro num romance ou num filme, com certeza. Por vezes, cheguei pensar que de seus poros, emanava um mel de cheiro e sabor divino. Se as empresas de perfumes e cosméticos o conhecessem, o transformaria em fonte inesgotável de lucro.
                        Zé tinha uma ojeriza da palavra morte. Para ele, o mundo de alegria e prazer estava por aqui mesmo, bem ao alcance dos seus olhos. Quando as pessoas morriam, era dito: “Ele descansou e foi para o reino eterno, gozar dos prazeres celestiais”. O amigo não se cansava das longas caminhadas entre um bar e outro e, para ele, o reino era aqui e, por isso, não precisava “bater as botas”, para desfrutá-lo. Perguntava para si mesmo: “Será que lá no tal reino, tinha mulher e cachaça?”. É preciso que se diga que ele não era ateu e nem herege, pois tinha uma fé inabalável no “Santo Padim Pade Ciço”.  Um fiel de carteirinha e, por isso, não faltava às missas domingueiras, ministradas pelo padre Rodrigo.
                        Desde que partiu das bandas do Norte, montado num pau-de-arara, rumando para o Sul, o meu amigo Zé, trazia no pescoço o amarelado crucifixo de Jesus Cristo; no pulso, a fita toda surrada do Senhor do Bonfim e no bolso, um amuleto da Mãe Menininha do Cantuá (Gantois). Separava a sua fé e a sua sina de homem raparigueiro. Água e óleo não se misturam, filosofava ele. O jeito descontraído do Zé Raparigueiro conquistara uma legião de seguidores, inclusive eu, claro! Se nos finais de semana ele não aparecesse no suntuário dos botecos ou quiosques, todos entravam em pane. Zé era nosso e não da dona Encrenca. Não erámos possessivos, mas amigos. Amigo não abandona e nem trai amigo.
                        Mas numa tarde de primavera, sem que todos esperassem e nem mesmo o amigo Zé, a morte sorrateira bateu à sua porta. Não deu tempo dele avisar os amigos, que no próximo domingo não estaria presente ao encontro cachacístico.  Dona Encrenca, a “teúda”, em meio a lamurias, prantos e soluços, contou o infortúnio às outras cinco Encrencas, ou melhor, as cinco “manteúdas”. E cada uma a seu modo, comunicou aos filhos que Zé viajara para nunca mais voltar. Passado o choque da perda, todas as seis chorosas esposas, providenciaram os rituais do velório. Não estranhem a narrativa, porque havia uma harmonia entre as viúvas. Elas sempre se respeitaram, porque havia um cordão umbilical entre todas, ou melhor, algo em comum, ou seja: o amor inexplicável pelo meu amigo Zé, o nosso querido “Zé Raparigueiro”.
                        Todos se fizerem presente ao velório, ou seja, amigos, esposas, filhos e família, sem falar de alguns curiosos. As seis carpideiras oficiais estavam ali, remuneradas pelo sentimento de perda. Aproximei-me do ataúde e vi no rosto do amigo, uma expressão de tristeza. Não pela morte que lhe beijou a face de forma tão brusca, mas porque não deu tempo dele se despedir dos velhos amigos de romaria butequeira. E as risadas, piadas, tragos na “marvada”, batucadas e pagodes, regados a muitos petiscos, não mais teriam a participação do agora, saudoso amigo Zé. A partir daquele dia, não só as esposas, a “Teúda” e as “Manteúdas” chorariam, mas nós também.
                        Naquele ambiente taciturno, nenhum copo de cachaça ou cerveja, nenhum samba ou música apaixonada, lembrando a dor de um amigo, que descobriu ser corno. Nenhuma rapariga dançando ao redor de uma mesa, como acontecia dentro do boteco esfarrapado. Verdadeiras barangas, oferecendo momentos de falsa alegria e prazer. Dei uma piscada para ele e sussurrei aos seus ouvidos surdos, agora por força do destino, dizendo: “Zé aquieta o facho, porque aqui é um velório. O seu velório Zé. Toma tento, homem.”. Coroas, velas, faixas com frases de impacto, longas orações puxadas por um padre octogenário. E o Zé, meu amigo Zé Raparigueiro, um homem sempre alegre e falante, agora ali, quieto, calado e pensativo. Com os olhos fechados e voltados para o teto, parecia que não queria ver e aceitar a realidade; “Você morreu Zé. Quando a morte bateu à sua porta, você não deveria ter aberto e recebido àquela visita. Agora está ai, sem poder agir, sem poder reclamar. E agora Zé?”.
                        Queria chorar, mas o Zé não podia saber que eu era fraco. Segurei o choro e o soluço. Com certeza, se jogasse a toalha ali, receberia uma bronca dele, na frente dos convidados. Desculpa, na frente das pessoas pesarosas. Como sempre foi uma pessoa alegre e extrovertida, as viúvas e todos os presentes fizeram um trato de não chorarem. Assim como o Zé, sempre fui macho e macho na acepção do termo, por isso soube me conter. Tive como alento, a presença de algumas raparigas ali naquele ambiente taciturno, disfarçadas de verdadeiras damas da sociedade. Votei a esquife e, mais uma vez, cochichei ao ouvido dele, dizendo: “Elas estão ai Zé. Pode descansar em paz”. Então, foi aí que percebi um sorriso maroto do velho amigo de noitadas de boemia e de tardes preguiçosas de domingo.
                        As primas dadivosas foram dar o “último adeus” ao meu amigo Zé Raparigueiro e, por isso, posso dizer que aquele velório, foi o mais lindo que presenciei em vida. Na minha vida, não na do amigo, porque ele já estava morto.
                        Até hoje, lá pelas bandas da trapaia, contam a história do Velório do Zé Raparigueiro.
Peruíbe SP, 18 de abril de 2020.

Um comentário:

Unknown disse...

Ao ler sorrir e chorei 😱
Mas aí está a história do meu pai Zé Alves o meu Rei.
Obrigada.