sábado, 22 de setembro de 2018

AMOR PLATONICO

                      Ao completar doze anos de idade, descobri que passei a padecer de uma doença contagiosa. Aquela notícia caiu feito bomba sobre mim. Senti o chão se abrir sob meus pés. Entrei em transe, gritei, chorei, rezei e pedi por socorro. Um vazio enorme, assenhorou-se da alma. O que seria da minha vida, a partir de então? De que valiam os caminhos já percorridos, os sonhos sonhados e as brincadeiras inocentes, com os amigos inseparáveis? Onde eu iria buscar alento e quem me daria colo? Perguntas, mil perguntas sem resposta e sem solução.
                               Até aquele dia, minha vida se resumia em peraltices inconsequentes. Preocupava-me apenas em brincar, estudar, comer, dormir, sonhar, nada mais. O amanhã era um mundo distante demais e o longe, um lugar que não existia. Achava engraçados os adultos perderem noites de sono, com problemas de somenos importância. Enquanto eles acordavam irritados e rabugentos, eu despertava alegre para o dia a dia. O mundo era um poema, escrito no caderno da felicidade. Até aquele dia, a minha infância se resumia em alegria.
                                     A notícia repentina caiu como uma ducha fria, sobre mim. Fiquei desacordado por espaço indefinido e só recobrei o sentido, quando um anjo divino, tocou meu rosto e me despertou para realidade. Ele sussurrou angelicalmente aos meus ouvidos, dizendo: “Você acaba de receber o sopro de um novo tempo”. Senti-me confortado por tamanha compreensão, porém, ainda sem nada entender. É certo que, em poucos segundos, a doença se alastrou por todo o corpo, até atingir fatalmente o coração.
                             Teria eu entrado na puberdade? Fiquei horas a fio, recordando das aulas de biologia, ciências, anatomia e fisiologia. E até das enfadonhas aulas de matemática, com seus cálculos exatos: se e somente se, a soma do quadrado do cateto é igual à hipotenusa. Mas o que a doença contagiosa, tinha a ver com os ensinamentos dos meus amados mestres? Estava contaminado e pronto. Tinha que aprender a lidar com aquilo, sem milongas. Senti-me prisioneiro de mim.
                                   Roguei a Deus, fé, força e sabedoria para seguir a nova estrada. Mas minha infância tão bela e tão pura, onde a guardaria? E quando a velhice batesse sorrateiramente à porta, o que eu diria aos sonhos infantis, trancafiados no baú da saudade? Mas não me saía da mente, que de repente, fui acometido de uma doença contagiosa. Relutei para aceitar, mas, aos poucos, fui absolvendo a ideia de que teria que vencer aquele novo desafio, custasse o que custasse.
                                   Ao analisar o diagnóstico, percebi que a doença contagiosa atendia pelo nome de cientifico AMOR e o que o agente vetor, era a menina mais linda e meiga da minha cidade natal. Fui picado pelo vírus da paixão e, depois de curto tempo de incubação, ele tomou conta da mente e do coração, até transforma-se naquela doença irreversível. Não é preciso dizer que, a partir daquele momento, vivi longos dias e anos de intensa agonia e sofrimento. Não havia remédio que abrandasse a febre e o desejo de estar perto ou tocar a menina mais desejada da infância.
                                   Meus olhos brilhavam e o coração ardia em chamas, quando a via caminhando para lá e para cá, quer fosse pelas ruas calmas ou pelo longo pátio da escola. Os cabelos tocados pelo vento tinham graça impar. O caminhar feminino despertava em mim, algo inexplicável. O corpo de pele branca e macia, simetricamente desenhado, era como nave, transportando-me para uma galáxia inatingível. Os lábios, de um leve tom avermelhado, davam um toque surreal ao rosto mais lindo que já se viu.
                                   A doença de que estava acometido, aos poucos foi se agravando. Dormia e acordava, pensando na mulher amada. De dia eu observava a menina da minha infância e, à noite, era ela quem me observava, durante meus devaneios. Na doce ilusão de realizar o meu sonho de amor, contentava apenas em vê-la e ouvir a sua voz.  Quando na escola, ela dançava em datas festivas, eu ia ao delírio emocional. Pouco importava se ela não desse crédito aos meus sentimentos. Deleitava-me em saber que, nos sonhos, ela viajava ao meu lado. Tocava o seu corpo ao meu e reclinava sua cabeça no meu ombro, buscando proteção.
                                   Chegou aos meus ouvidos, que ela tinha certa admiração pelo meu melhor amigo de carteira escolar. Entristeceu-me deveras. Seria em razão dos dotes, que a família dele possuía ou apenas para me provocar ciúmes?  Sei que a minha timidez, era fator preponderante, para não me ousar em declarar o grande amor que nutria por ela. Deveria ter sido mais atrevido e não fui, paciência. Hoje, tudo poderia ter sido diferente. Perdi o trem da história.
                                   O tempo passou, mas o amor platônico, não. O sentimento mais puro da alma permaneceu arraigado e encravado no coração. A estrada da nossa vida tomou rumos diferentes. Mas o pensamento daquele menino, de vida e espirito simples, continuou fiel ao amor e desejo que sempre nutriu pela menina mais bela da terra natal. Fiz de tudo para que ninguém descobrisse o quanto eu a amava, para não constrangê-la e, muito menos, para que eu não fosse alvo de chacotas. Coisas de minha timidez.
                                   A menina mais bela da minha infância cresceu, criou formas delineadas e voou. Casou, construiu um ninho, teve filhos e foi ser feliz. Acrescentou nome, doce coincidência. A tecnologia promoveu encontro virtual. Arrisco de longe, relembrar a candura do amor platônico, que tanto me contagiou e me lançou para o mundo do sonho e da fantasia. Foi por ela, que me enveredei pelo mundo da arte e da poesia. Se hoje a imortalizo nessas mal traçadas linhas é porque, já há muito tempo, foi imortalizada no meu coração.
                                   O amor é platônico, porque ele só existiu, no meu imaginário!


Peruíbe SP, 22 de setembro de 2018. 

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

SONHAR ALTO



            Repousa dentro de cada um de nós, um menino sonhador. E é por causa desse menino, que estamos com o olhar eternamente voltado para o futuro. Rogamos sempre, que ele nunca desperte e vague pelo mundo a esmo, deixando um vazio dentro de nós. O sonho dele nos fortalece e nos conforta. Cremos que a perseverança dele é o combustível, que nos impulsiona a evoluir intelectual e espiritualmente. A peraltice, algo inerente ao seu comportamento, torna a vida mais alegre e mais bela.
            Quando nasci, creio que o primeiro sopro de vida, foi dado a ele, o meu menino sonhador. Foi com ele, já habitando em mim, que aprendi a desenhar o mundo com traços de esperança. Então, é certo que esse espírito divagador, já faz parte do meu DNA. Um dia, aos onze anos, ainda amamentando no seio materno da minha terra natal, rabisquei o primeiro poema. Naquele momento descobri, que o meu destino estava traçado. Nunca mais me apartei do menino sonhador que habita em mim.
            Por culpa dele, já me vi como rei, presidente da república, astronauta, cientista, médico, jornalista, ator, caçador de esmeralda, Don Juan, general de brigada e por ai se vai. Nunca me deixei levar pelos pessimistas de plantão. O vírus da persistência sempre me contaminou. Abandonar aquilo que acredito, não fez parte do meu cardápio. Minha vida foi feita de luta e, por isso, não temo buscar o inatingível. “Vi uma estrela tão alta, vi uma estrela tão fria. Vi uma estrela luzindo, luzindo no fim do dia” – dizia o poeta Manoel Bandeira, em seu poema "A Estrela". Ali o poeta retratava a busca do sonho inatingível.
            Enquanto as crianças da minha infância caminhavam tranquilamente pelas ruas da terra natal, descompromissadas com o futuro, eu, equidistante de tudo de todos, sonhava um sonho transcendental. Creio ser essa a razão de acharem que eu vivia no “mundo da lua”. Aquele jeito largado fazia-me sentir estrangeiro, dentro do meu próprio mundo. Apegar às coisas materiais, nem pensar. O meu olhar estava sempre voltados para o cotidiano simples da minha cidade bucólica.
            À noite, ao observar o céu, sonhava desvendar os mistérios da constelação. Dormia abraçado à inconstância da alma e aos amores insondáveis do coração. Temia pela chegada inesperada dos fins dos tempos, por isso, sonhava em ser o salvador do mundo. Em suma, passei a minha vida inteira sonhando, ou melhor, sonho até hoje. Aprisionei o menino sonhador dentro de mim e, temeroso em perdê-lo, nunca permiti que ele espionasse a minha fraqueza, debruçada na janela da insegurança.
            Um sonho, sempre me perseguiu desde a infância. Pensei que iria partir para a mansão do desconhecido, sem antes realizá-lo. O que para muitos, faz parte da rotina, para mim, era algo imensurável. Quantas vezes, em divagações noturnas, desenhei o momento tão esperado. Ainda bem, que o menino sonhador nunca me abandonou e sempre me confortou nas angústias e na ansiedade de, um dia, poder realiza-lo. De vez em quando, perdia-me em felicidade, como se tivesse vivendo aquele instante único.
            O sonho de que falo, era poder viajar de avião. A gestação daquele sonho durou seis décadas. Comprei a passagem, com antecedência. Com ansiedade, preparei-me durante o dia. Na mala, coloquei a curiosidade e o medo, química perfeita, para quem esperou a vida inteira. À noite, já no aeroporto, cumpri toda a formalidade de embarque, isto é, exibi a passagem e os documentos pessoais, bem como, a mala na esteira de raios-X. Pessoas descontraídas, aguardando no portão de acesso ao embarque, como algo de cotidiano. Mas eu ali, nervoso e pensando como seria o meu embarque e o meu primeiro contato com a aeronave.
            De repente, vejo-me caminhando em direção à aeronave. De longe, eu via aquele monstro de aço, parado e estático. Parecia uma baleia gigantesca, louca para me engolir. Subi a escadaria e, num estante mágico, já estava no ventre dela. Sentei-me de forma comportada e deslumbrei-me com a imagem da grandiosidade interna e da quantidade de assentos. A tripulação organizando os passageiros e anunciando os itens de segurança. Pela minúscula janela, observei a movimentação da aeronave, posicionando para a decolagem.
            O ronco forte dos motores, após o anúncio do comandante, denunciava que iriamos ganhar as alturas. Assim, pude sentir a inclinação daquele pássaro e as luzes da cidade, sumindo aos poucos, até se transformarem em pontos luminosos, bem distantes. Por alguns instantes, viajei no tempo. Revi a minha infância, empinando pipa, que chamávamos de papagaio. Presa a uma linha, ela planava no céu e, agora, ali, eu planando no firmamento, preso o ventre daquele pássaro de aço.  Num ímpeto, veio à mente, um trecho da musica do cantor Belchior: “Foi por um medo de avião, que eu segurei pela primeira vez na sua mão”.
            Por ser noite, não vi toda a paisagem terrestre. Quando ganhou altitude, ultrapassando as nuvens, parecia estar parado. Nenhuma turbulência, nenhum solavanco, nada. As aeromoças, de belezas impares, esboçavam sorrisos profissionais, sem nenhum calor humano. Mas aquilo não tinha importância, pois, para mim, o sonho sendo realizado, tinha toda a nobreza do mundo. Vi que o menino sonhador, que nunca se apartou de mim, transbordava de felicidade. Alguns passageiros dormiam, outros liam revistas, outros com fones de ouvido e eu ali, atento a tudo.
            Reconfortado na poltrona, porém, sem se desgrudar da minúscula janela, voltei a ser criança. Era como se eu estive comendo um doce, com tanto prazer, que me lambuzava todo. Saboreava cada segundo. Mas quando estava me deliciando de tudo aquilo, veio o anuncio do comandante: “Estamos nos preparando para o pouso”. Perguntei a mim mesmo e ao menino sonhador: “Por que o sonho vai pousar tão rápido assim?”. O sonho de tão longos anos, não pode ser interrompido, de forma tão brusca.
            Percebi que aquele pássaro gigante, com longas asas de aço, levemente foi perdendo altitude. Não demorou em eu rever os pontos luminosos distante, parecendo que as cidades voltavam acenar para mim. Procurei na imensidão daquelas luzes distante, a cidade da minha infância, pois queria que ela visse a felicidade estampada no rosto do seu filho. Queria dividir com a cidade que me gerou, a certeza de que valeu a pena sonhar e esperar por longas décadas. Queria sussurrar aos ouvidos dela, dizendo que vale a pena sonhar e que ninguém pode interromper ou frustrar o sonho infantil.
            Nos instantes seguintes, aqueles pontos distantes, foram se aproximando e ganhando formas de cidade novamente. Do alto, as ruas iluminadas, pareciam artérias e o movimento de carros, o sangue que corriam por elas. Os prédios e casas foram ganhando volumes, alturas e formas, como se quisessem aproximar da minúscula janela, a fim de espionarem a alegria do menino sonhador.
            Acordei-me do sonho, quando a aeronave tocou o solo. Durante o voo, sentia-me maior que o mundo, maior que todos os sonhos. Mas já em terra firme, senti que o mundo é maior do que eu. Só não é maior do que os meus sonhos infantis. Desembarquei-me, levando comigo a mala repleta de felicidade. Deixei para trás, aquela  aeronave que tão gentilmente, deu-me de presente o direito de fantasiar as minhas ilusões. O homem só se realiza por completo, quando dá asas aos seus sonhos.
            Deixa o menino que mora dentro de ti voar nas asas da ilusão. Que os sonhos dele ganhem as alturas. Deixa o menino que mora dentro de ti sonhar alto, mais alto do que ele possa imaginar. Deixa os sonhos dele, voar nas asas da cotovia. O menino dos meus sonhos tem o direito de sonhar alto.

Peruíbe SP, 16 de setembro de 2018.