Nas minhas andanças pelas estradas longínquas do passado, aprendi a amar a beleza impar de um mundo indescritível e inimaginável. Fui aos poucos, garimpando tudo o que encontrava e, com carinho imenso, guardava no baú dourado das lembranças imortais. Na inocência daquele tempo, assim agia, para quando chegasse a velhice, pudesse folhear as páginas amareladas da história e relembrar o quanto fui feliz.
Ninguém entendia o meu agir e o
meu pensar. As pessoas viam em mim, alguém distante daquela realidade, um
lunático, um sem miolos ou que faltava um parafuso, como diziam os meus avós.
Não me preocupava com o que se descortinava além da linha do horizonte. As ruas
da minha infância tinham pedras de brilhantes, porque na alma do meu povo,
reluziam o amor, a paz e a esperança. E assim cresci, sem compromisso algum com
o tempo. Tudo era infinito, tudo era puro, tudo era belo.
Ao viajar por aquelas terras,
esquecidas pelo progresso e sem a contaminação da maldade humana, eu acabei por
conhecer um menino de jeito simples e de alma encantadora. Encantei-me deveras
por ele, foi amor à primeira vista. Tudo nele exalava a caipirice do lugarejo.
O cabelo despenteado, esvoaçando ao vento; a alpercata desgastada e presa aos
dedos; o calção surrado e meio troncho, protegendo o pudor; uma camiseta alinhavada
pela mãe, ora no corpo, ora presa na cintura, assim andava o menino.
Eu ficava horas a fio, observando
os seus trejeitos e suas peraltices. De uma alegria estonteante e de espírito
de liderança incontestável, estava sempre rodeado de amigos e amigas. Onde
havia um grupo de crianças fazendo bagunça, lá estava ele. Nada tinha graça ou
sentido, sem a participação do fedelho. De mente fértil, criava brincadeiras,
que, na maioria das vezes, se estendiam noite à dentro. Quando chegava
machucado em casa, todo ralado passava um mertiolate, após as reprimendas da
mãe e tudo bem.
Adorava jogar bola-de-gude, pois,
após o jogo, por ser exímio jogador, voltava com um monte para casa. Num
carrinho de rolimã, feito artesanalmente, descia as ribanceiras das ruas
descalças, em manobras radicais. Quanta vez, ao derredor da cidade, embrenhou-se
mato adentro, onde armava arapuca, a fim de apanhar pássaros incautos. Não se
importava com o corpo todo arranhado de carrapicho ou de arranha-gato, pois
aquilo tinha sabor de aventura.
O menino vivia num mundo de magia
e, se não fosse os gritos ensurdecedores de sua mãe, esquecia-se de banhar, alimentar
e dormir. Mas, como qualquer ser mortal, de vez em quando, eu via o menino
esconder dentro de si. Recolhia-se em clausura e dali não saia. Foi então que
percebi que, mesmo na tenra idade, já fazia questionamentos sobre o mundo e a
vida. Contaram-me que ele encantara-se pela filha de uma professora e que soube
levar com arte e maestria, o segredo e o silêncio de tão nobre sentimento.
Feito um ermitão juvenil, rabiscava os primeiros textos de seus pensamentos,
forjados na bigorna de sua inconstância e da sua preocupação com a
transitoriedade da vida. Talvez fosse por aquela razão que, de vez em quando,
seus pais diziam: “Não sei o porquê desse menino viver no mundo da lua”.
Gostava de observá-lo, mesmo nos seus
momentos de introspecção. Por algumas vezes, atrevi-me a conversar com ele.
Tinha pensamentos de adulto e frases de impacto sobre os flagelos da vida, do
mundo em ebulição e do futuro incerto. Mas gostava mesmo, de observá-lo no seu
mundo infantil. A candura e a firmeza do seu olhar era algo tão mágico e difícil
de descrever. O jeito de andar, expressar e gesticular diferenciava dos demais
meninos da sua idade. A cidade bucólica, berço natal de sua existência, não o
viu passar por ali.
O menino de que tanto falo, tinha
mania de ficar trepado nas árvores, ora saboreando frutas com os amigos, ora
sozinho, isolado, perdido no seu mundo interior. Durante as chuvas torrenciais,
brincava na enxurrada, que escorria pelas sarjetas. Ele entalhava carrinhos de
madeira e desenhava caminhos imaginários, que o levava as terras distantes e as
galáxias intransponíveis. Sabia que, um dia, os meninos e meninas cresceriam e
partiriam da sua infância; mas ele continuaria ali, até que se fechassem a
cortina da sua história.
O manso boi, abatido no matadouro
improvisado; um velho padre bonachão de batina e chapéu; o grupo escolar,
carcomido pelo tempo; o sino, na torre de madeira, ao lado da igreja matriz; o
campo santo, que causava medo e a benzedeira, espantando os maus olhados, são
fragmentos cotidianos, gravados em sua retina. Notei que ele, também gostava de
ouvir as histórias, contadas pelos adultos e, em especial, pelos seus avós. Creio
que foi assim, que ele aprendeu contar histórias. Mas o menino maluquinho,
observador por natureza, sabia separar o real do imaginário. Por isso, viveu a
sua infância e o seu tempo, como ninguém. Eita menino esperto!
A história do menino maluquinho confunde-se
com a de tantos outros meninos e meninas. O cenário onde ele viveu era idêntico
a todos os outros e, por isso, se entrelaçavam em enredos intermináveis. Hoje,
ao percorrer os caminhos por ele imaginados, vejo que éramos irmãos siameses. Éramos
filhos da mesma saudade. Portanto, meio confuso, não sei se ele ainda vive em
mim ou se eu vivo nele.
Peruíbe SP, 28
de fevereiro de 2019.