quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

MENINO MALUQUINHO

                               Nas minhas andanças pelas estradas longínquas do passado, aprendi a amar a beleza impar de um mundo indescritível e inimaginável. Fui aos poucos, garimpando tudo o que encontrava e, com carinho imenso, guardava no baú dourado das lembranças imortais. Na inocência daquele tempo, assim agia, para quando chegasse a velhice, pudesse folhear as páginas amareladas da história e relembrar o quanto fui feliz.
                              Ninguém entendia o meu agir e o meu pensar. As pessoas viam em mim, alguém distante daquela realidade, um lunático, um sem miolos ou que faltava um parafuso, como diziam os meus avós. Não me preocupava com o que se descortinava além da linha do horizonte. As ruas da minha infância tinham pedras de brilhantes, porque na alma do meu povo, reluziam o amor, a paz e a esperança. E assim cresci, sem compromisso algum com o tempo. Tudo era infinito, tudo era puro, tudo era belo.
                                         Ao viajar por aquelas terras, esquecidas pelo progresso e sem a contaminação da maldade humana, eu acabei por conhecer um menino de jeito simples e de alma encantadora. Encantei-me deveras por ele, foi amor à primeira vista. Tudo nele exalava a caipirice do lugarejo. O cabelo despenteado, esvoaçando ao vento; a alpercata desgastada e presa aos dedos; o calção surrado e meio troncho, protegendo o pudor; uma camiseta alinhavada pela mãe, ora no corpo, ora presa na cintura, assim andava o menino.   
                                   Eu ficava horas a fio, observando os seus trejeitos e suas peraltices. De uma alegria estonteante e de espírito de liderança incontestável, estava sempre rodeado de amigos e amigas. Onde havia um grupo de crianças fazendo bagunça, lá estava ele. Nada tinha graça ou sentido, sem a participação do fedelho. De mente fértil, criava brincadeiras, que, na maioria das vezes, se estendiam noite à dentro. Quando chegava machucado em casa, todo ralado passava um mertiolate, após as reprimendas da mãe e tudo bem.
                                   Adorava jogar bola-de-gude, pois, após o jogo, por ser exímio jogador, voltava com um monte para casa. Num carrinho de rolimã, feito artesanalmente, descia as ribanceiras das ruas descalças, em manobras radicais. Quanta vez, ao derredor da cidade, embrenhou-se mato adentro, onde armava arapuca, a fim de apanhar pássaros incautos. Não se importava com o corpo todo arranhado de carrapicho ou de arranha-gato, pois aquilo tinha sabor de aventura.
                                   O menino vivia num mundo de magia e, se não fosse os gritos ensurdecedores de sua mãe, esquecia-se de banhar, alimentar e dormir. Mas, como qualquer ser mortal, de vez em quando, eu via o menino esconder dentro de si. Recolhia-se em clausura e dali não saia. Foi então que percebi que, mesmo na tenra idade, já fazia questionamentos sobre o mundo e a vida. Contaram-me que ele encantara-se pela filha de uma professora e que soube levar com arte e maestria, o segredo e o silêncio de tão nobre sentimento. Feito um ermitão juvenil, rabiscava os primeiros textos de seus pensamentos, forjados na bigorna de sua inconstância e da sua preocupação com a transitoriedade da vida. Talvez fosse por aquela razão que, de vez em quando, seus pais diziam: “Não sei o porquê desse menino viver no mundo da lua”.
                                   Gostava de observá-lo, mesmo nos seus momentos de introspecção. Por algumas vezes, atrevi-me a conversar com ele. Tinha pensamentos de adulto e frases de impacto sobre os flagelos da vida, do mundo em ebulição e do futuro incerto. Mas gostava mesmo, de observá-lo no seu mundo infantil. A candura e a firmeza do seu olhar era algo tão mágico e difícil de descrever. O jeito de andar, expressar e gesticular diferenciava dos demais meninos da sua idade. A cidade bucólica, berço natal de sua existência, não o viu passar por ali.
                                   O menino de que tanto falo, tinha mania de ficar trepado nas árvores, ora saboreando frutas com os amigos, ora sozinho, isolado, perdido no seu mundo interior. Durante as chuvas torrenciais, brincava na enxurrada, que escorria pelas sarjetas. Ele entalhava carrinhos de madeira e desenhava caminhos imaginários, que o levava as terras distantes e as galáxias intransponíveis. Sabia que, um dia, os meninos e meninas cresceriam e partiriam da sua infância; mas ele continuaria ali, até que se fechassem a cortina da sua história.
                                   O manso boi, abatido no matadouro improvisado; um velho padre bonachão de batina e chapéu; o grupo escolar, carcomido pelo tempo; o sino, na torre de madeira, ao lado da igreja matriz; o campo santo, que causava medo e a benzedeira, espantando os maus olhados, são fragmentos cotidianos, gravados em sua retina. Notei que ele, também gostava de ouvir as histórias, contadas pelos adultos e, em especial, pelos seus avós. Creio que foi assim, que ele aprendeu contar histórias. Mas o menino maluquinho, observador por natureza, sabia separar o real do imaginário. Por isso, viveu a sua infância e o seu tempo, como ninguém. Eita menino esperto!  
                                   A história do menino maluquinho confunde-se com a de tantos outros meninos e meninas. O cenário onde ele viveu era idêntico a todos os outros e, por isso, se entrelaçavam em enredos intermináveis. Hoje, ao percorrer os caminhos por ele imaginados, vejo que éramos irmãos siameses. Éramos filhos da mesma saudade. Portanto, meio confuso, não sei se ele ainda vive em mim ou se eu vivo nele.  
Peruíbe SP, 28 de fevereiro de 2019.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

SEXO NA CABEÇA

                                   Outro dia, lá estava eu, no “Boteco Último Gole”, que fica no final da Rua Flor de Liz, tomando uns goles de jurubeba e jogando conversa fora, junto com os amigos Bastião Conversa Mole e Chico do Rolo. Final de tarde, depois de um dia suado, nada melhor. No canto, riscando duas violas choronas, estava a dupla sertaneja Canarinho e Coleirinha, apelidos de Felisberto e Antônio. Na parede, ao fundo do balcão, um quadro da Seleção Brasileira de Futebol, tri campeã mundial. Logo abaixo do quadro, todo tipo de bebida quente, exposta. Sobre o balcão, do lado esquerdo, uma pequena vitrine da madeira, guarnecida com tira-gostos, como por exemplo, pedaços de torresmo, ovos cozidos e coxinhas.
                                   Numa mesa de bilhar ao centro, alguns conhecidos, disputavam partidas, onde um queria mostrar mais habilidade do que o outro, no manejo com o taco e na arte de encaçapar a bola. Um lugar taciturno, mas de bom grado para mim. Ali podia contar lorotas, recordar do passado, falar dos predicados das mulheres alheias e, principalmente, fugir da pressão de “dona encrenca”, a esposa rabugenta que todos nós temos. A casa é o destino de quem não quis ficar solteiro e se enveredar na procriação de filhos. “Último Gole” era, antes de tudo, um refúgio, um lugar sacrossanto.
                                   De vez em quando, por ali passava dois soldados magricelos, dentro de um cabriolé, com seus berros na cintura, a fim de verificar se tudo estava em ordem. Seo Mané, assim era conhecido o dono do boteco, tinha uma cara sisuda, com jeito de pouca amizade, mas, na realidade, era um doce de pessoa. Sempre pronto a atender ao pedido de mais uma dose, por parte dos seus frequentadores assíduos e eu era um deles. Ora ou outra, aparecia um cachorro pestilento, a espera de uma migalha de pão ou o resto de osso de frango.
                                   Em boteco se vê de tudo. Nada mais encantador do que as tardes botequeiras nas cidades interioranas e, em especial, na minha terra natal. O que se passou naquela tarde, que ora narro, é a prova viva de que sempre há uma surpresa a ser revelada. Do nada, chegou no “Último Gole”, o amigo Zé Eros. Homem dos seus quarenta anos, olhos azulados, estatura mediana, costeletas a lá Elvis e sotaque amineirado. Entrou cabisbaixo e meio choroso, sentando ao nosso lado. Embora eu estava curioso, não quis fazer pergunta constrangedora. Perguntei, apenas: “Quer tomar uma branquinha?”, ao que ele respondeu: “Uma dose de conhaque com cinar”. Fiz um sinal para o seo Mané e o amigo foi prontamente atendido.
                                   Como tenho jeito de psicólogo, não demorou muito para Zé Eros desabafar, arrancar do peito o que tanto afligia. A flecha que o sangrara na carne. Como eu já disse, o “Último Gole” era, antes de tudo, um refúgio, um lugar sacrossanto. Depois do segundo gole, desabafou em soluços: “A danada da Helena, minha mulher, aquela ingrata, disse que só tenho sexo na cabeça”. Pensa numa desgraça dessas, pois o meu amigo sentiu-se ultrajado por tamanha ofensa. Ele era tido na cidade, como homem galanteador e de boa prosa, mas sempre respeitoso com as donzelas e com as casadas recatadas. Até nos puteiros, sabe tratar as primas com deferência e elegância.
                                   “Sexo não se tem só na cabeça, mas por todos os poros e lugares possíveis do corpo”, pensei cá com meus botões. Mas por que Helena, a mulher mais bela e desejada da cidade, embora casadíssima com Zé Eros, teria dito tal infâmia a ele? Estaria o meu amigo, sofrendo de satirismo? Creio que não. Com pena de Zé Eros, pedi ao seo Mané, mais uma dose da bebida preferida dele. De repente, fica calado, respira fundo, olhos voltados para o teto, como que querendo buscar uma resposta, uma justificativa para tamanha ignomínia. Soluços intercalados, e, eu quase chorei com ele, compadecido com sua dor. Em boteco tem disso, somos solidários em tudo, não só na alegria. Choramos por nada, choramos por tudo.
                                   Como pode Helena, mulher linda e carinhosa, que fazia Zé Eros gemer sem sentir dor, vociferar tamanha blasfêmia contra aquele homem de conduta ilibada perante a família e a sociedade? Sexo é uma prova de amor e de doação total. Quando é dito crescei-vos e multiplicais, isso só se concretiza com o sexo. Portanto, ele é, antes de tudo, a materialização da vida, do amor e da esperança. Quem só pensa em sexo, é porque ama a vida. Volto a dizer: Sexo não se tem só na cabeça, mas por todos os poros e partes possíveis do corpo. Sem perceber, eu pensava falando alto e tanto os amigos Bastião Conversa Mole e Chico do Rolo, bem como, Zé Eros ouviam minhas divagações.
                                   Quando dei por mim, vi que caia a noite. A dupla sertaneja continuava dedilhando as violas choronas e cantando músicas melancólicas. Seo Mané, de vez em quando, dava uma cochilada no canto de dentro do balcão. O cachorro pestilento foi embora e nem percebi. A cidade já estava se recolhendo para dormir. A Zéfinha, minha mulher rabugenta, já há horas, estava resmungando a minha ausência. A última bola já havia sido encaçapada, na mesa de bilhar. Os copos embriagados cambaleavam sobre a mesa, já sem força para chegarem às bocas de seus consumidores. Os policiais magricelos já haviam baixado o quepe.
                                   Àquela altura, eu já estava indo para casa, cambaleando. Iria enfrentar o mau humor de Zéfinha. Ao chegar, queria apenas tomar um banho e descansar. Se Zéfinha ficasse brava, o problema era dela. Que, também não me viesse com a história, que homem “Só tem sexo na cabeça”. Tropecei na guia da sarjeta e caí. Deixa para lá.  

Peruíbe SP, 08 de fevereiro de 2019