terça-feira, 23 de março de 2021

A NATUREZA DADIVOSA

                                                                                                               

Adão de Souza Ribeiro

Sapo mergulha na lagoa

O vagalume passeia à toa.

E a cobra engole um sapo

O grilo esconde no mato.

 

Olha o mais lindo sabiá,

E voando pra lá e pra cá

Chilra feliz na laranjeira

No cantar a tarde inteira,

 

No curral o gado muge,

O arrebol veste de ruge.

Na lagoa o barco flutua,

Leva minh’alma e a sua.

 

Roceiro arreia o burrico

Veja longe o pintassilgo

Jerico povoa lá no brejo,

Aqui mais bela Alentejo.

 

A cana embriagada pinga

Sede se bebe na moringa,

Macaco no galho só coça.

E essa é a vida lá na roça!

 

O bom é ser um sertanejo

Ver a beleza num lampejo

Nas coisas do meu sertão,

Sob fraca luz do lampião.

 

O boiadeiro toca boiada,

Saudade dói não é nada.

O caipira segue sozinho,

Cabisbaixo no caminho.     

 

O vento balança o bambu,

Lá vai o sol de norte a sul.

Na busca de uma quimera,

Pensa: Ah, quem me dera!

 

Tapera é a velha casinha,

Onde mora a caboclinha.

Com chão batido de terra.

Toca a vida, vence guerra.

 

No fim natureza dadivosa,

Presenteia com uma rosa.

Colhida no pé da saudade.

O caboclo foi para cidade!

 

Peruíbe SP, 23 de março de 2021.

domingo, 21 de março de 2021

A MINHA MÃE

 

“Saudade”

 

                   Cerro os meus olhos... é manhã de domingo...

                        Ana Paula dormita ao meu lado, no seu chupar incessante de chupeta...

                        O silêncio é cortado pelos chilreios dos pardais... e pelo repicar dos sinos, na matriz...

                        Na minha sonolência, os meus ouvidos se prendem a algo diferente: são os longínquos latidos de um cão!

                        Não sei por quê... repentinamente... retorno ao passado!

                        Contemplo à cena: a vaca amuada... os latidos dos cães... o grito dos vaqueiros...

                        Sinto pena do pobre animal, como apanha! Ao mesmo tempo, porém, tenho raiva da sua teimosia!

                        Estou na varanda da minha casa... vez ou outra, ouço a voz querida de minha mãe, lá no quintal...

                        Minha mãe... sua voz... voz lindona que emudeceu para sempre... perdeu-se no além...

                                   Os latidos cessam... abro os olhos... retorno ao presente... um presente marcado pela saudade...

                        Buritama, 10/10/71


                        P.S.: Texto de Maria da Glória Ribeiro do Valle e Silva, nascida em 20 de março de 1933, foi minha professora de língua portuguesa, no ano 1972, no Ginásio Estadual de Guaimbê, localizado à Rua Regente Feijó, nº 333, centro, Guaimbê SP. Paula Vaz, genitora dela.

 

sábado, 20 de março de 2021

AS VIRTUDES DE MARIQUINHA

Adão de Souza Ribeiro

 

Ninguém conhece a moçoila,

Assim linda como a lantejoila.

Aparece numa noite qualquer

E se dispôs ser minha mulher.

 

Vestido de chita todo rodado,

Cabelo aloirado caído de lado.

 E disse em amar para sempre,

Até a velhice e sem um dente.

 

Maria Chiquinha lá na cabeça

Mas antes que eu me esqueça

Sandália Melissa enfeita o pé.

Tanta simplicidade, ó tenha fé.

 

Se amar o faz um ser tão livre

Posso dizer que amor eu tive.

Moçoila mais levada da breca

De tão bela, parecia à boneca.

 

Foi se achegando de mansinho

E disse: Não te quero sozinho.

Homem sozinho faz estripulia

Por isso, vou amar noite e dia.

 

Se dormir, velava o meu sono,

Então, assim foi ano após ano.

Mariquinha tinha uma virtude

A de me amar sempre amiúde.

Peruíbe SP, 20 de março de 2021.

 

 

 

PECADO É TEU NOME

 

Adão de Souza Ribeiro

Teu corpo ardendo ainda

Na busca de mais carícias

Ó mulher seja bem vinda

Se é Carmem ou a Letícia.

 

E não me deixa sufocado

Com esse suor e o cheiro

Só o mundo fica de lado,

Dou o beijo como agrado.

 

Seu lábio preso ao meu,

O corpo grita de desejo.

Se o prazer leva ao céu,

Valeu a pena esse beijo.

 

Pecado não me importa

E sim amor para me dar

A nudez atrás da porta,

Faz-te pura á luz do luar.

 

A felicidade nos chama,

Amada, fica, pois é cedo.

As loucuras nesta cama,

Vamos guardar segredo.

Peruíbe SP, 20 de março de 2021.

quinta-feira, 18 de março de 2021

CAIPIRA CISMADO

 

Adão de Souza Ribeiro

                        Aquilo que não se explica, respeita-se ou teme. Se for o caso, até treme-se. Desde muito cedo, o povo lá da roça, aprendeu a se guiar pela natureza, a fim de que pudesse perpetuar a vida aqui neste planeta maluco. Não foi à atoa, que a população passou admirar a sabedoria caipira, carregada de muita simbologia e ensinamento.

                        Os cientistas modernos do mundo inteiro espelham-se nos conterrâneos da terrinha, para entenderem os mistérios na natureza. Mentem quando dizem que descobriram isso ou aquilo, mas apenas copiaram o que já estava pronto: Ctrl-C e Ctrl-V, nada mais. Gênios sãos os meus amigos capiaus, nascidos lá nos “cafundós do Judas”, que ficam encravados no saudoso e delicioso tempo.

                        Se a criança estava com verme, tomava mastruz com leite; se alguém tinha problemas no fígado, chá de boldo; se a criança estava agitada, tomava chá de camomila; a melhor lua para plantar mandioca era a minguante; o quebranto, a dona Joana – a parteira e benzedeira -, resolvia com benzeção; passar por baixo da escada dava azar; dar na concha, a água da primeira chuva de janeiro, ajudava o bebê falar mais rápido. Diz o homem moderno, que tudo não passava de superstição. Sabe nada, inocente!

                        Certa feita, sem menos esperar, a terra tremeu e isso era por volta das dez horas da noite. Naquele momento, instalou-se o pavor e era nítida a expressão de espanto no rosto dos cultos, dos ignorantes e dos incrédulos. A cidade vestiu-se de muito medo e o povo foi para rua aos berros. “É o fim do mundo, meu Deus!”, gritou o Cido Bobo.

                        Domenico dormia a sono dos anjos, na cama de mola com colchão de palha de milho e cheio de pedaços de sabugo, quando tudo começou a balançar. Pensando ser brincadeira do Zueira, um cão vira-lata e carrapento que, por costume antigo, dormia debaixo dela, Domenico esbravejou: “Zueira, me deixa dormir em paz.”.

                        Carmelita Sangue Bom, marafona e dona de um puteiro estava ao banho e pensando no desabamento da casa, correu pelada para a rua, com as vergonhas de fora. Ninguém se abalou e nem botou assunto na falta de pudor daquela despudorada, porque o desespero de todos era maior. Passado o momento, ela retornou ao lar e foi dormir em paz, a mesma paz em que dormia Domenico, o dono do Zueira.

                        Gertrudes, a velha beata de carteirinha, pegou um ramo de palmeira ungido na semana santa e danou-se a rezar em voz: “Salve rainha, mãe de misericórdia, vida e doçura nossa, salve... Ó clemente! Ó piedosa!... Para que sejamos dignos das promessas de Cristo...”. Nas calçadas esburacadas, todos de joelhos lembraram-se de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do lugar. A fé e as orações estenderam-se madrugada adentro.

                        Abalos sísmicos são provocados por movimento das placas tectônicas, que ocorrem a milhões de metros, no subsolo terrestre. Diferente dos terremotos, eles são de baixa intensidade e, por isso, não causam grandes danos.  A terrinha localiza-se sobre um lençol de água, há 1800 metros de profundidade, chamado de “Sistema Aquífero Guarani”.

                        Em 1935, na Califórnia – EUA, dois cientistas, isto é, Charles F. Ritcher e Beno Gutenberg criaram uma escala de zero a dez, para medirem o tremor. Por isso, ficou conhecida como “Escala Ritcher”, em homenagem a um de seus criadores. Então, correu um boato de que na terrinha, o evento foi de três graus. “Foi como um peido de véia, por isso, não fez estrago algum”, caçoou o amigo Roda-Gigante, depois de entortar um gole de cachaça.

                        Não tem nada a ver com a tal da placa tectônica. Isso é por culpa desse povo que se desgarrou das mãos de Deus e vivem nesse mundo de maldades e orgias. Pecando desimbestadamente.” profetizou Zé Padre, o mais santo dos sacristãos, o fervoroso que não largava por nada naquele mundo, do badalo do padre.

                        É preciso achar um culpado, quando se quer inocentar a natureza. Foi aí que surgiram os desafetos do alcaide e o acusaram daquela tragédia repentina. Fofocas foram espalhadas pelos quatro pontos cardeais de que ele (alcaide) estava perfurando em surdina, na calada da noite, uma grande cratera para esconder os desvios dos recursos públicos do Paço Municipal. É sabido, que existem os oportunistas de plantão. Vai que cola!

                        Se se foi um abalo sísmico ou não, certo é que não ficou verdadeiramente comprovado, em que pese toda teoria científica de Charles e de Beno. Mas que o caipira, velho cientista da terrinha, ficou cismado, isso é fato!

 

Peruíbe SP, 18 de março de 2021.

 

 

 

quarta-feira, 17 de março de 2021

A BETH TANA

 

Adão de Souza Ribeiro

                        Tem coisas que jamais esqueceremos, como por exemplo, andar de bicicleta, aquele beijo atrevido atrás do muro da escola, a brincadeira de casinha e o primeiro sutiã. As traquinagens dos primórdios tempos ficam marcadas para sempre. Na retina dos olhos, as imagens se repetem como numa película de cinema.

                        Lembranças nada mais são do que fatos reais ou pitorescos, com os quais nós vivemos intensamente e gostaríamos de repeti-los com a mesma intensidade. Mas, antes de tudo, necessário se faz ter olhar de lince, para observar o fato com clareza ou muito humor. É disso que sobrevivem os que gostam de relatar o passado.

                        Nestas atenções cotidianas, de repente os olhos se voltam para Beth Tana. Não é Bethânia, como querem os fãs da cantora da MPB, mas, sim, Beth Tana, ipsis litteris. Hão de perguntar: “Por que Beth Tana?” Não se avexem, pois a explicação logo vem. Pede-se apenas que não caçoem da pobre moça, uma vez que era merecedora de toda admiração dos marmanjos bem casados e dos despudorados.

                        Enquanto ela esbanjava charme pelas ruas, esquina e praças, o seu cheiro provocava a mente, e que ninguém desmente, dos marmanjos e torturava a das casadas e das donzelas do povoado: “Eu desejo amar a todos/Que eu cruzar pelo meu caminho/Como eu sou feliz, eu quero ver feliz/Quem andar comigo, vem”, da música Brincar de Viver, de Maria Bethânia.

                        A pacata cidade, onde nascera o narrador, era o cenário por onde transitava Beth Tana. Beirando os trinta anos, cabelos loiros e longos, olhos azuis da cor do firmamento, rosto angelical, lábios carnudos, cinturinha de pilão, coxas roliças e seios meia taça, parava o comércio por onde passava. Dava-se a impressão que eram as comemorações daqueles memoráveis desfiles de Sete de Setembro, onde não se queria perder um detalhe das marchas e das alegorias.

                        Apesar de todos aqueles predicados, era menina dócil e respeitadora. Tratava todo mundo por igual, na acepção da palavra. O pai, dono do maior armazém, portanto, vinda de família abastada, sabia separar o poder e a beleza, da humildade que trazia no coração. Todos a admirava sobremaneira, inclusive, o humilde narrador de mais uma história dantesca.

                        De todos os predicados físicos e psicológicos de Beth Tana, o que mais chama a atenção, ou melhor, prendia a atenção masculina, era seus glúteos lindorius, ou seja, traduzindo em miúdos, suas nádegas (bunda) lindas. Brigas entre casais ou pedidos de divórcio, tinham nome: os glúteos lindorius de Beth Tana.

                        Zaia, o experiente escrivão, da Delegacia desabitada por falta de delituosos, não se cansava de lavrar boletim de ocorrência com o seguinte teor histórico: “Comparece nesta Unidade Policial, senhora Maria do Socorro, narrando que há dias vem sendo importunada e maltratada pelo esposo Alfredo dos Anjos, por conta dos glúteos lindorius de Beth Tana, razão pela qual ajuizará o pedido de divórcio”.

                        O Cartório de Paz do Dito, nos últimos tempos, faturava muito com registros de indesejadas separações. O padre Antônio apenas lamentava durante a liturgia: “Isso só pode ser coisa do satanás, desconjuro”. Enquanto isso, os velhos bobões e babões diziam: “Se não for obra de Darci, pai de Beth Tana, só pode ser obra em pedra sabão de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, nascido lá pelas bandas de Vila Rica MG, em 29 de agosto de 1738”. Polêmicas à parte, que os glúteos lindorius de Beth Tana era uma de arte, ah isso era, sem sombra de dúvidas.

                        Até o padre Antônio perdia a compostura quando ela passava pelo umbral de chegada à igreja. Errava o ritual da oração da Santa Ceia e trocava a hóstia pelo cálice sagrado. Isso só pode ser a tentação do satanás. “Pai afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue (pecado)”, gagueja o vigário com as mãos trêmulas.

                        Beth Tana, não é mulher para se contrair matrimônio, quem se atrever a tomá-la como esposa será um forte candidato a desfilar pelas passarelas (ruas) com galhos dourados na cabeça, feito Rei Momo”, eram as conversas, entre um gole e outro, que rolavam nas bocas dos cachaceiros inveterados, nos botecos da terra natal, do humilde narrador desta história, ou seja, mais uma tragicomédia.

                        Os conterrâneos xucros chamavam-na de Beth Tanajura, no entanto, os mais polidos, tratavam-na de Beth Tana. Economia de palavra, talvez! Paremos por aqui, antes que a narrativa vire ofensa? Afinal de contas Beth Tana não merecia isso, concordam ou não?

 

Peruíbe SP, 17 de março de 2921.

 

domingo, 14 de março de 2021

OS PASSOS

 

Adão de Souza Ribeiro

Por onda as minhas asas

E os pés correndo por aí?

Estava em todas as casas,

Menino peralta feito saci.

 

A mente vai muito longe

Aonde não se vai o corpo

Já foi forte como bronze,

Hoje segue caminho roto.

 

E se hoje o passo é lento

Não tem pressa pra nada

Sabe que um dia o vento

Encontra-o lá na estrada.

 

Amigo é uma andorinha,

Se vai partir em revoada

Deixa a alma ali sozinha

A amizade não vale nada.

 

Sem dó a vida prega peça

Final que não se imagina.

E o enredo sai às avessas

Vem morte fecha cortina.

 

Se o tema não lhe agrada

Sendo ele tão enfadonho

Certo que de madrugada,

Terá o mais lindo sonho.

 

A cada passo a conquista

De quem vive de tanta fé.

Embora ninguém acredita,

Irmão de Cristo e de José.

 

Se Jesus passou por isso,

Venceu pesado calvário.

A cruz será meu abrigo,

Ao percorrer o itinerário.

 

Mão esquerda não acena

E já fez o que a outra faz.

Por aí se vai este mecenas

E escreve o que lhe apraz.

 

Não adianta querer o luar

Eu sei que a dor é minha.

Porque sou só a avezinha

Com vontade sair e voar!

 

Peruíbe SP, 14 de março de 2021.

sábado, 13 de março de 2021

CHÁ PRETO

 

Adão de Souza Ribeiro

                        Conta à lenda, que ao terminar a construção da arca o Noé, não o meu irmão Noel, sob a orientação de Deus, convocou um casal de cada bicho para integrar a comitiva esperança e fugir do anunciado dilúvio. Os insetos como pernilongo, pulga, carrapato, piolho, percevejo, barata, rato, etecetera e tal, entram sem serem convidados. Noé tinha uma lista, a qual fora criteriosamente elaborada pelo Divino, mas eles tiveram o atrevimento de furar a fila.

                        Na construção monumental da arca além dos bichos e insetos, estava à família de Noé, a esposa Na’amah (Noemia); os filhos Sem, Cam e Jafé, bem como, as noras Tali, Heide e Dana.  Os insetos perniciosos viajaram no lombo do cavalo, outros no pelo gato, uns e outros no cabelo de Na’amah (Noemia), a esposa do comandante da arca. Os atrasadinhos de última hora, na roupa de Heidi – esposa de Sem; de Tali – esposa de Cam e de Dana – esposa de Jafé.

                        Com os insetos, veio uma infinidade de doenças, tais como, pediculose, erliquiose, leptospirose, tuberculose, chikungunya e por ai se vai. Quando a arca, após os 150 dias de dilúvio, parou suspensa no Monte Ararate, localizado a 5165 metros, na Cordilheira do Cáucaso, em Agri, na Turquia, os insetos saíram em desabalada carreira e disseram numa só voz: “Vamos empestear o mundo de doenças incuráveis.”.

                        Só o Coronavirus veio dos laboratórios chineses e não dos insetos inocentes escondidos na arca.  Quando a arca zarpou para navegar em águas turbulentas, a comitiva cantava num só coro: “Já partiu a Arca de Noé/ Metade vai sentado/O resto vai de pé.”.

                        Os nossos pré-históricos, isto é, antepassados narravam que os animais falavam, cantavam e assoviavam. Até Tzilá (Zilá), a víbora rastejante, sogra de Noé, também falava. Mais resmungava do que falava mesmo em idioma hebraico.

                        Ele já andava de saco-cheio de cuidar da navegação da arca, sem instrumentos de precisão, bem como, da tripulação animalesca e, ainda, tinha que ouvir as lamúrias de Tzilá e de Na’amah – sogra e esposa -: “Assim também é demais. Não há marujo que aguenta!”, ele reclamava com razão.

                        Naquela linha narrativesca, meu pai contava que o pai dele, ou seja, meu avô tinha um cavalo tordilho de nome “Chá Preto”. De uma pelagem lisa, brilhante, macia e negra de dar inveja aos admiradores da raça equina, era um todo simpatia. Quando aparecia no lugarejo, vindo da roça, fazer a compra da semana, gostava  de ostentar o seu tordilho e não tinha quem não olhava para o trote e o porte garboso do Dom Juan de quatro patas.

                        Não precisava chicotear para andar rápido, quando resfolegava, pois sabia das obrigações. “Um animal, ou melhor, um amigo obediente, prestativo e trabalhador. Não vendo e não troco por nada desse mundo.”, dizia repetidas vezes a quem quisesse ouvir. Basta o dono falar delicadamente: “Chá Preto, eia!” e ele seguia a viagem, todo feliz da vida. Até rebolava, fazendo Hermínio dar altas gargalhadas.

                        Chá Preto gostava de um dedinho de prosa. Muitas vezes, meu pai deparou com o meu avô abraçado ao cangote do cavalo e cochichando ao ouvido. O animal mexia o beiço como que rindo ou deixava escapar uma lágrima dos olhos, demonstrando pesarosa tristeza. Ambos eram verdadeiros confidentes. Pareciam padres, pois sabiam guardar velhos segredos como ninguém.

                        Com base na lendária história da Arca de Noé, onde os animais falavam o fato de Chá Preto conversar com meu avô, não era mentira, mas, sim, fato de uma virtude remota. Chá Preto tinha uma queda, ou melhor, dizendo, uma paixão cavalesca por uma éguinha pangaré do sítio vizinho, lá no bairro Bondade e só meu avô sabia daquele desejo de curral.

                        O inseparável companheiro devolvia o segredo guardado, com a camisa suada, desculpa, com o pelo suado de sol a sol. Arrastava o arado, a carroça, o arrastão, a colheita, os mourões de cerca, sem pestanejar. Amigo é um potro, ou seja, um para o outro. Amigos para sempre e até a eternidade.

                        Ao final do dia, meu avô banhava aquele corpo másculo, escovava as longas crina e a calda, aparava os cascos, arrumava a ferradura. Depois colocava na baia o feno e a água com fartura para o bichinho. “Tá uma delícia. Tem sabor de quero mais, seu Hermínio!”, fez um elogio enquanto charmoso balançava a crina e a calda.

                        Chá Preto recebia a melhor vestimenta, isto é, arreio, cabresto, quaieira, bridão, antolho e ferradura lustrada, para desfilar nas passarelas (ruas) pacatas do lugarejo. Até parecia o príncipe das arábias. Para meu avô, na realidade, ele era mais do que um príncipe, era Vossa Majestade do “Reino Animal”. De porte enorme empunhava respeito aos cidadãos curiosos e desavisados.

                        Meu avô “enchia o coco (cabeça)” de cachaça, quando visitava a cidade. De volta, já sendo tarde da noite, montado no dorso do animal, caia pelo caminho. Enquanto era vigiado pelo Rex, um cachorro velho e pestilento, o tordilho chegava a casa, cabisbaixo e sozinho.

                        Já prevendo o que havia acontecido mais que depressa, meu pai subia no lombo do parceiro e rumava atrás do amigo de Chá Preto. “Já chegou o socorro, rapaz!”, asseverava Vossa Majestade de quatro patas, mexendo discretamente o beiço, para o amigo desfalecido ao solo.

                        O tempo passou, mas jamais me esquecerei das aventuras do Chá Preto e seu fiel companheiro!

 

Peruíbe SP, 13 de março de 2021.

sexta-feira, 12 de março de 2021

DONA CEGONHA!

 

Adão de Souza Ribeiro

Faceira traz no bico,

Enrolado num lençol.

Antes de nascer o sol,

Mais lindo pequetito.

 

Ele todo apressadinho,

Vem antes da sua hora.

E o moleque ri e chora

Não quer ficar sozinho.

 

Fez sua mãe sem rumo

Arrumar casa depressa

Sei que pouco interessa

Deram nome de Bruno.

 

Bem-vindo minha jóia

E que a vida presenteia.

Meu sangue na sua veia

Corre pelos poros, óia!

 

Serumaninho é seu pai

Alessandra é a sua mãe

Tomar um champanhe,

Antes que cegonha vai.

 

Hoje acordei feito avô

Ontem dormi como tio

Agora não sinto vazio,

Estou feliz demais, sô!

 

Peruíbe SP, 12 de março de 2021.

 

P.S: Homenagem ao nascimento do meu primeiro neto Bruno Luiz Ribeiro Gaiofatto.

CHUÁ CHUÁ

 

Adão de Souza Ribeiro

 

A vida escorre entre os dedos

Feito mais antigas cachoeiras.

E assim correm todas faceiras,

Sem esconderem os segredos.

 

Avida como águas cristalinas

Segue formosa lá pelos vales

Não leva do ontem os males,

Pura e santa, como meninas.

 

E a vida só tem na ribeirinha

Aquilo que vai lhe fazer bem

Flores e o vagalume tem tem,

Por isso, nunca está sozinha.

 

 Avida seja lá noite ou de dia,

Ela estará navegando no sorrir

Porque maior segredo do elixir

Está na paz da alma que sorria.

 

A vida naquele leve chuá chuá,

Cumpria missão tão sacrossanta.

E lá escorria a sua tristeza tanta,

No barco a alegria corria pra cá!

 

Peruíbe SP, 12 de março de 2021.        

quinta-feira, 11 de março de 2021

O RELÓGIO

 

Adão de Souza Ribeiro

 

Sem rodeio ou milonga,

Ele vem e me assombra.

Com a insistente batida,

Vê se acorda para vida.

 

Na parede ou no pulso,

Sempre levo um susto.

Se ele vem bate a porta

E acelera tanto a aorta.

 

Não sei por que insiste,

Com seu dedo em riste

Dizendo tem tal pressa

Pois pouco tempo resta.   

 

O ponteiro que apronta,

Quer o almoço ou a janta.

Nesta santa hora sagrada.

Parar nem de madrugada.

  

Tic tac mais calma voz

Afasta do mundo feroz.

Livra da vida o baque,

Na leve toada: tic tac!

 

Peruíbe SP, 11 de março de 2021.

 

quarta-feira, 10 de março de 2021

A BARGANHA

 

Adão de Souza Ribeiro

Mulher pára com esse negócio,

De que um larga e o outro pega.

No meu coração não tem sócio,

Amor não vende, troca, entrega.

 

Mulher vê logo se toma jeito,

Para de me fazer tanto ciúme.

E estou bem ligado no trejeito

Mais aceso do que vagalume.

 

Mulher pára de andar por aí,

Fala que ele é melhor que eu.

Já esqueceu, que muito sofri,

Quando de mim se escafedeu?

 

Mulher abra os belos olhos,

Certo nada será para sempre.

A agenda cabe em Abrolhos

Só viver o que resta da gente.

 

Mulher brinca com o desejo,

Como se nada fosse tão sério.

E não verá no outro o solfejo,

Rima, só tem no meu caderno.

 

 

Não troca o certo pelo errado

Dardo da seta atinge a meta.

Se sou o príncipe encantado,

Verá que fez a escolha certa.

 

Mulher se quer viver sozinha,

Abandonar um coração moço.

Não ama, volta lá na cozinha,

Corre e vai já fazer o almoço!     

 

Peruíbe SP, 10 de março de 2021.

 

 

 

 

terça-feira, 9 de março de 2021

CHORAR PRA QUE?

 

Adão de Souza Ribeiro

 

                        Stanislaw nascera lá pelas bandas de Águas Belas, no Estado de Pernambuco. Se tinha uma coisa que chamava a atenção, era a alegria e humor de Manoel Severino dos Santos, mais conhecido como “Stanislaw”. Uma homenagem carinhosa a “Stanislav Ponte Preta”, personagem da obra literária de Sérgio Porto. Quem e porquê colocou o apelido, não se sabe. Gostava de deitar-se numa rede, estrategicamente fixada na varanda frontal da casa, onde, entre uma pitada e outra no cigarro de palha, artesanalmente feito com fumo de corda, passava horas e horas ali.


                        Quando as voltas estavam os filhos e netos, sentia-se feliz e realizado, pois gostava de contar longas histórias alegres e de bravura, vividas no seu sertão querido.  De corpo esguio, cabelos brancos como a neve, calvície acentuada, barba por fazer, unhas e dentes amarelados pelo manuseio do cigarro, peixeira cuidadosamente afiada e presa na cintura, um binga (isqueiro de querosene) no bolso, uma escarradeira ao lado da rede, chapéu e sandália de couro, bem como, o sotaque característico das “cabeceiras”, davam-lhe um ar de fragilidade.


                        Falso alarme, pois, na realidade, era muito tinhoso, cabra arretado e de uma virilidade invejável. Apesar da idade avançada, tinha um gingado no quadril e dançava um xaxado como ninguém, ali naquele pedaço (lugarejo). Tornou-se pai de um rebento, quando chegara à casa dos oitenta anos. “Lá na trapaia, fui criado com leite de cabra, jabá e muita farinha de mandioca e não com nutella, comida desses bruguelos desnutridos de hoje.”, dizia o orgulhoso nordestino Stanislaw. 

 

                        De família de valentes. O irmão mais velho fora soldado da volante (tropa da polícia) do tenente Bezerra – João Bezerra -, que matou o bandido Virgulino Ferreira da Silva, lendário Lampião – “Rei do Cangaço”-, sua mulher Maria Gomes de Oliveira – Maria Bonita - e mais nove do bando, em 28 de julho de 1938, na Grota do Angico/Alagoas. Um primo desceu para o Sul do país, onde trabalhou na construção da Rodovia Anchieta, localizada na serra do mar paulista, transportando todo material, no lombo de jumento. Povo que não rejeitava trabalho pesado.


                        Quem conviveu com ele perdia a noção do tempo, quando estava ao seu lado. Gostava de contar piadas picantes e hilárias. Apimentava-as ao narrar suas aventuras amorosas e sexuais. Qual nordestino que não era um gentleman ou raparigueiro, neste mundo. As pessoas nem piscavam para ouvir melhor seu repertório de histórias divertidas, incluindo, crianças e marmanjos.


                        Não fora à toa que um dos netos, enveredou-se pelos caminhos da literatura e passou a contar histórias sem pé e nem cabeça. Histórias por demais estapafúrdias, asseverou uma assídua leitora. Como eram histórias tiradas do imaginário, não tinha o compromisso de comprovar a veracidade. Tanto é que o neto fora apelidado de “Forrest Gamp”, personagem do ator americano Tom Hanks.


                        Mas um dia, Stanislaw resolveu partir antes do combinado para o desterro eterno. A comoção foi geral no lugarejo e a cidade se vestiu de luto. O sino da igreja, que descansava numa torre de madeira, repicou as badaladas mais tristes já vistas por ali. Na cumeeira da igreja, o alto-falante pesaroso, que vigiava a cidade diuturnamente anunciava: “Faleceu hoje, vítima de inevitável velhice, o senhor Manoel Severino dos Santos conhecido por Stanislaw. O de cujus, deixa esposa, filhos, netos, teúdas, manteúdas e um milhão de amigos. O féretro sairá amanhã às quatro da tarde, da casa dos familiares, onde, depois da missa de corpo presente, o cortejo fúnebre seguirá para o Campo Santo local.” O anúncio pesaroso repetiu-se por três vezes, até ficar martelado na cabeça dos conterrâneos.


                        Bem, mas o melhor da história estava por vir, isso sem a obrigatoriedade de comprovação. Durante o velório, que transcorreu numa estarrecedora noite de inverno, nem os familiares e nem a multidão de convidados dormia ou chorava. Se bem que nem todo mundo vai num evento desses para dormir e chorar. Aquilo estava mais para uma festa de arromba do que para um velório propriamente dito.


                        De longe se ouvia o barulho de uma banda de forró, conversas inteligíveis e altas gargalhadas. Tinha de tudo ali: bicha, piriguetes, cachaceiros, um bando de nordestinos, mendigos, desocupados de fim de baile ou expulsos de boteco, loroteiros, esfomeados, etecetera e tal. Quando contaram ao vigário o que acontecia ali, ele errou as bolinhas do terço sagrado e disse: “Que Nosso Senhor Jesus Cristo Crucificado se apiede da alma de Stanislaw!”.


                        Na varanda do fundo, Joana – empregada estimada por Stanislaw -, não vencia em preparar quentão, pipoca, canjica, caipirinha, petiscos e salgados para os convivas. Enquanto isso, Stanislaw, tremia de frio lá na sala, inerte. E não havia um filho de Deus, para trazer um edredom e cobrir o corpo gélido. Não resmungava e nem contava histórias picantes e piadas só para maiores. Alguém viu quando, discretamente, Genilson – velho amigo de infância e das noites raparigueiras -, colocou um copo da “marvada” (pinga) ao lado do seu corpo, dentro do ataúde.


                        Também viu, quando Tianinha Isprivitada, olhou para região genital do de cujus, deu um forte suspiro e disse baixinho para si mesma: “Descansa em paz, meu amor, tive momentos inesquecíveis. Você me fez feliz e me levou às nuvens!”. E viu também quando ela levou a mão à boca e jogou um beijo para genitália dele. O falecido Stanislaw retribuiu com um leve sorriso e um piscar de olhos. Uns ficaram estarrecidos com aquela cena pitoresca; outros não aguentaram e até mijaram de rir.


                        Quando em vida, Manoel Severino dos Santos – Stanislaw - era só alegria e depois de morto, chorar pra quê?


Peruíbe SP, 09 de março de 2021.