Adão de Souza
Ribeiro
Conta à lenda, que ao terminar a construção
da arca o Noé, não o meu irmão Noel, sob a orientação de Deus, convocou um
casal de cada bicho para integrar a comitiva esperança e fugir do anunciado
dilúvio. Os insetos como pernilongo, pulga, carrapato, piolho, percevejo,
barata, rato, etecetera e tal, entram sem serem convidados. Noé tinha uma lista,
a qual fora criteriosamente elaborada pelo Divino, mas eles tiveram o
atrevimento de furar a fila.
Na construção monumental da arca além dos bichos
e insetos, estava à família de Noé, a esposa Na’amah (Noemia); os filhos Sem,
Cam e Jafé, bem como, as noras Tali, Heide e Dana. Os insetos perniciosos viajaram no lombo do
cavalo, outros no pelo gato, uns e outros no cabelo de Na’amah (Noemia), a esposa
do comandante da arca. Os atrasadinhos de última hora, na roupa de Heidi –
esposa de Sem; de Tali – esposa de Cam e de Dana – esposa de Jafé.
Com os insetos, veio uma infinidade de
doenças, tais como, pediculose, erliquiose, leptospirose, tuberculose,
chikungunya e por ai se vai. Quando a arca, após os 150 dias de dilúvio, parou
suspensa no Monte Ararate, localizado a 5165 metros, na Cordilheira do Cáucaso,
em Agri, na Turquia, os insetos saíram em desabalada carreira e disseram numa
só voz: “Vamos empestear o mundo de
doenças incuráveis.”.
Só o Coronavirus veio dos laboratórios
chineses e não dos insetos inocentes escondidos na arca. Quando a arca zarpou para navegar em águas
turbulentas, a comitiva cantava num só coro: “Já partiu a Arca de Noé/ Metade vai sentado/O resto vai de pé.”.
Os nossos pré-históricos, isto é,
antepassados narravam que os animais falavam, cantavam e assoviavam. Até Tzilá
(Zilá), a víbora rastejante, sogra de Noé, também falava. Mais resmungava do
que falava mesmo em idioma hebraico.
Ele já andava de saco-cheio de cuidar da
navegação da arca, sem instrumentos de precisão, bem como, da tripulação
animalesca e, ainda, tinha que ouvir as lamúrias de Tzilá e de Na’amah – sogra e
esposa -: “Assim também é demais. Não há
marujo que aguenta!”, ele reclamava com razão.
Naquela linha narrativesca, meu pai contava
que o pai dele, ou seja, meu avô tinha um cavalo tordilho de nome “Chá Preto”. De
uma pelagem lisa, brilhante, macia e negra de dar inveja aos admiradores da
raça equina, era um todo simpatia. Quando aparecia no lugarejo, vindo da roça,
fazer a compra da semana, gostava de
ostentar o seu tordilho e não tinha quem não olhava para o trote e o porte
garboso do Dom Juan de quatro patas.
Não precisava chicotear para andar rápido, quando
resfolegava, pois sabia das obrigações. “Um
animal, ou melhor, um amigo obediente, prestativo e trabalhador. Não vendo e
não troco por nada desse mundo.”, dizia repetidas vezes a quem quisesse
ouvir. Basta o dono falar delicadamente: “Chá
Preto, eia!” e ele seguia a viagem, todo feliz da vida. Até rebolava, fazendo
Hermínio dar altas gargalhadas.
Chá Preto gostava de um dedinho de prosa. Muitas vezes, meu
pai deparou com o meu avô abraçado ao cangote do cavalo e cochichando ao ouvido.
O animal mexia o beiço como que rindo ou deixava escapar uma lágrima dos olhos,
demonstrando pesarosa tristeza. Ambos eram verdadeiros confidentes. Pareciam
padres, pois sabiam guardar velhos segredos como ninguém.
Com base na lendária história da Arca de Noé,
onde os animais falavam o fato de Chá Preto conversar com meu avô, não era
mentira, mas, sim, fato de uma virtude remota. Chá Preto tinha uma queda, ou
melhor, dizendo, uma paixão cavalesca por uma éguinha pangaré do sítio vizinho, lá no bairro Bondade e
só meu avô sabia daquele desejo de curral.
O inseparável companheiro devolvia o segredo
guardado, com a camisa suada, desculpa, com o pelo suado de sol a sol.
Arrastava o arado, a carroça, o arrastão, a colheita, os mourões de cerca, sem
pestanejar. Amigo é um potro, ou seja, um para o outro. Amigos para sempre e
até a eternidade.
Ao final do dia, meu avô banhava aquele corpo
másculo, escovava as longas crina e a calda, aparava os cascos, arrumava a
ferradura. Depois colocava na baia o feno e a água com fartura para o bichinho.
“Tá uma delícia. Tem sabor de quero mais,
seu Hermínio!”, fez um elogio enquanto charmoso balançava a crina e a
calda.
Chá Preto recebia a melhor vestimenta, isto
é, arreio, cabresto, quaieira, bridão, antolho e ferradura lustrada, para
desfilar nas passarelas (ruas) pacatas do lugarejo. Até parecia o príncipe das
arábias. Para meu avô, na realidade, ele era mais do que um príncipe, era Vossa
Majestade do “Reino Animal”. De porte enorme empunhava respeito aos cidadãos
curiosos e desavisados.
Meu avô “enchia o coco (cabeça)” de cachaça,
quando visitava a cidade. De volta, já sendo tarde da noite, montado no dorso do
animal, caia pelo caminho. Enquanto era vigiado pelo Rex, um cachorro velho e pestilento,
o tordilho chegava a casa, cabisbaixo e sozinho.
Já prevendo o que havia acontecido mais que
depressa, meu pai subia no lombo do parceiro e rumava atrás do amigo de Chá
Preto. “Já chegou o socorro, rapaz!”,
asseverava Vossa Majestade de quatro patas, mexendo discretamente o beiço, para
o amigo desfalecido ao solo.
O tempo passou, mas jamais me esquecerei das
aventuras do Chá Preto e seu fiel companheiro!
Peruíbe SP, 13
de março de 2021.