sexta-feira, 26 de julho de 2019

FÊNIX, VELHO GUERREIRO

Adão de Souza Ribeiro

                        É certo que, na ensandecida corrida pela fecundação, dentre um bilhão e meio de espermatozoides, fui o primeiro e único a chegar ao pódio. Foi uma verdadeira maratona até eu tocar ao óvulo. Milhares de concorrentes, já exaustos e depois de lutarem contra células, as quais se defendiam dos invasores, morreram pelo caminho. Após penetrar no óvulo, criou-se uma barreira e ninguém mais entrou, a não ser eu. Já protegido e confortado, desencadeou uma interminável metamorfose e comecei a ganhar forma. Foi uma corrida maluca. Haja fôlego, Meu Deus!
                        Portanto, foi assim que minha vida começou, sem nenhuma benesse ou ajuda. Mordomia, nem pensar. Eu teria um irmão gêmeo, se um deles tivesse acreditado em mim e segurado na minha mão. No entanto, sou gêmeo apenas no signo. Lutei de unhas e dentes, desde o primeiro sinal de ejaculação. Ninguém do meu lado e, assim, sozinho, eu percorri toda a caminhada em busca da vitória. A vida é uma trajetória solitária até a chegada da morte. Pensando bem, a morte também é um ato solitário. Contar com a sua capacidade intelectual e física, ainda é o melhor caminho. Fui zigoto, embrião, feto e tudo mais, menos covarde. Lutei e como lutei.
                        Naquela corrida desembestada, descobri que trazia no gene, o gosto pelo dom de sonhar, de brigar pelo que me é de direito e de tocar o inatingível. A herança que trago no sangue, fruto da união de meus pais, são a honra, a dignidade, a honestidade, o trabalho lícito, o amor, a benevolência e, acima de tudo, a fé e a contemplação do que é puro e belo. Quando dona Joana, a lendária parteira, tomou-me em suas mãos, pela primeira vez, disse à minha mãe, estando a genitora ainda frágil do parto: “Esse menino não nasceu para ser belo, mas para brilhar. Por ter nascido além do seu tempo, será incompreendido por uns e amado por outros”.
                        Às vezes, quando no peito, bate um desânimo incontrolável, lembro-me da desgastante corrida pela fecundação. Se me foi dado à graça de vencer, era para que pudesse cumprir uma missão divina. Não me foi dado beleza física ou riqueza material e, muito menos, sinais de demência moral. Recebi a graça de ser um pensador insaciável e de um questionador inveterado, que não quer dormir no sono da ignorância. Não me rendo ao conforto oferecido pela cama das injustiças sociais. Eu grito, esperneio, luto e aguento todas as chibatadas do tempo. Não me curvo aos fortes ventos da natureza humana, que esconde o rosto diante das verdades cotidianas.   
                        Desde a infância, fui forjado na bigorna da teimosia pela sobrevivência. Assim como o ferro na bigorna, quanto mais apanho, vou ganhando forma de vencedor.  Engana-se quem acredita que vou entregar as armas, durante a sorrateira batalha de quem não tem pudor. No instante da fecundação, eu disse a mim mesmo: “Vim, vi e venci”. Esse tem sido o meu lema e jamais desviarei dele. Foi nas carteiras do grupo escolar “José Belmiro Rocha”, que aprendi em silêncio, a diferença entre o amor e o ódio, bem material e o bem moral. Não abro mão da minha essência campesina em detrimento da voraz luta urbana.
                        As pessoas que subestimam a minha garra, enganam-se loucamente. Se for para morrer durante uma batalha, morro atirando. Meus pais me ensinaram que aos guerreiros, é dado o privilégio de sentarem á mesa e de saborearem o prato da vitória. Aos covardes, cabe apenas o degredo do esquecimento. Nas masmorras da história universal, estão trancafiados aqueles que se locupletaram com as tragédias humanas. A ninguém é dado o direito de tripudiar os pobres, os sonhadores e os puros de coração. Todos nós nascemos com o sagrado dever de sermos felizes. Foi por isso, que ao longo da vida, tenho lutado contra bilhões de problemas. Espero, mais uma vez, ser o primeiro e o único a chegar ao pódio. Não quero esmagar ninguém, durante a interminável maratona, mas apenas atingir o meu objetivo final: vencer!
                        Alguém pode até me encontrar caído ao longo do caminho e achar que morri ou que desisti das lutas ensandecidas do cotidiano. Em razão das maldades intrínsecas da alma humana, podem até se escarnecerem do meu flagelo. Mas, jamais devem subestimar aquele espermatozoide que lutou de unhas e dentes pela sua fecundação. Um velho guerreiro nunca se dará por vencido no campo de batalha.
                        Sou como Fênix e, por isso, quando menos se espera, ressurgirei das cinzas.

Peruíbe SP, 26 de julho de 2019.
                       



segunda-feira, 8 de julho de 2019

LOBOS SOLITÁRIOS

Adão de Souza Ribeiro

                        O destino tem lá suas razões, que a própria razão desconhece. Creio ser este o motivo pelo qual, não se podem traçar planos para o futuro. Os acontecimentos cotidianos são como uma caixinha de surpresa, pois não se sabe o que vem dentro. E é esse mistério, que alimenta a esperança de cada um de nós e que nos impulsiona a lutar de unhas e dentes, por aquilo que acreditamos que nos fará bem. Na busca incansável pelo destino que traçamos, ficamos cegos, talvez; mas isso é o que menos importa.
                        Só quem já sofreu, na expectativa de ter um amor correspondido, sabe do que estou falando. No mundo imaginário, acredita-se que o destino são como duas estradas, que se cruzam na linha do horizonte, onde se realizam todos os sonhos adormecidos ao longo da nossa existência. Anulamo-nos para o mundo, quando sonhamos em tocar a estrela do nosso desejo infinito. Se a estrela existe, não se sabe.
                        Foi com essa ótica, que um jovem sonhador de minha terra natal, despertou para o amor. Ao enveredar pelos caminhos tortuosos do sentimento amoroso, perdeu a bússola do coração. Ao engraçar-se por uma galeguinha, turvou a visão. A partir daquele instante, o seu mundo passou a girar em torno dela e para ela. O jovem fazia de tudo para agradá-la e dela, conquistar o coração endurecido. Mas a galeguinha, como toda fêmea, nada queria com o jovem. Tinha como cumplice, um dos irmãos da infante, mas de nada adiantava. Os olhos dela fitavam outras pastagens.
                        O jovem de que falo, atendia por nome, ou melhor, apelido de Juá. Um roceiro... um trabalhador incansável. Um jovem branco e esguio. Com seu jeito simples de se vestir, tinha o coração do tamanho do universo. De fácil amizade, gostava de ajudar a todos, que dele buscavam alento. Com uma desculpa esfarrapada, todo final de semana, batia à casa da galeguinha, simplesmente para matar a saudade. Se os olhos estavam voltados para ela, os dela fitavam Carlão. Mas o jovem Juá, assim como todo brasileiro, não desistia nunca. Sofria e persistia. Sabe-se lá, até que dia!
                        Como diz o adágio popular: “Um dia, de tanto ir à fonte, o vaso quebra”. E assim, de tanto sofrer por aquele amor não correspondido, o jovem Juá resolveu voar para outras plagas. Pousou suas lindas asas, lá pelas bandas da “casa das primas”. Lugar onde se afoga as mágoas e amores mal resolvidos, ali encontrou terreno fértil. Não demorou muito e o jovem inexperiente deitou no colo de Clarice, a “prima” pra lá de bela e dengosa. Aos poucos e sem que percebesse, caiu nas teias da paixão e do desejo. Com o passar do tempo, a galeguinha tornou-se apenas uma imagem perdida na memória.
                        Lá estava o destino enfiando o dedo aonde não era chamado e, assim, mudando o enredo de uma história de amor, que tinha tudo para dar certo. Na casa dos prazeres e amores ilusórios, também frequentavam alguns forasteiros de uma empresa, vinda das bandas do norte. Um dos forasteiros, de nome Setembrino, era “caso fixo” de Clarice, aquela prima pra lá de bela e dengosa. Mulher que vende o corpo, não tem dono e nem cabresto. Manda no corpo e no coração dela, quem paga mais. Se o corpo arde de desejo, o coração é duro como um gelo.
                        Quando a cama gelou, Setembrino esperneou feito louco. Certo dia, durante um trago de cigarro e um gole de bebida, Clarice confessou que naquele leito, também dormia um jovem sedento de amor e de desejo. A alma de Setembrino cuspiu maldade. Num confronto com o rival, o dono da prima vociferou ameaças, prometendo beber o sangue de Juá. Foi com aquele propósito que arregimentou um de seus subordinados na empresa. Prometeu dinheiro e promoção, sendo aceito pelo comparsa.
                        A vingança se come em prato frio. Cerca de seis meses da descoberta da traição, Setembrino e o comparsa encontraram Juá caminhando pelas ruas tranquilas do povoado, isso defronte a um armazém tradicional. Em rápidas conversas, o ofendido disse ao jovem que tudo não passara de um mal entendido e que, por isso, não guardara mágoa. Juá, na inocência de quem não tem maldade, acreditou no lero lero. “Vamos tomar uma branquinha, no bar do seu Shaolin, para comemorar nossa amizade.”, convidou o desafeto e o jovem aceitou.
                        Juá, o jovem de coração bondoso e peito aberto, sem maldade entrou na caminhoneta da empresa. Lá estava o desafeto e o comparsa ao volante. Sentado entre os dois, o jovem sorria, não sabendo que tudo terminaria ali. Era domingo de manhã, por volta das seis horas. Ali mesmo, passou a receber vários golpes de peixeira em seu coração inocente. Ainda menino, com meus onze anos, eu vi a tal caminhonete passar por mim, estando defronte a minha casa, na Rua Rui Barbosa. Eu não sabia que o jovem Juá agonizava nas mãos sanguinárias de Setembrino, dono de Clarice e amante da “casa das primas”.
                        Já sem vida, fora conduzido rua acima, rumo ao cafezal, depois do grupo escolar. Seu corpo branco e esguio, de roceiro trabalhador, fora jogado entre os pés de café, que ficavam pelas bandas da antiga caixa d´água. Os covardes fugiram, para nunca mais. A cidade chorou a perda do jovem de um coração do tamanho do universo. A galeguinha seguiu em busca de seu amor tão cobiçado e verdadeiro. Já Clarice, sem remorso, foi se deitar com outro homem, porque mulher de vida fácil não tem dono. O dono dela é quem paga mais pelos seus dotes.  Não queria que esse conto terminasse assim. O que aconteceu com a família de Juá? Depois te conto.
                        A vida e a morte caminham de mãos dadas pelas ruas tranquilas da cidade. Já o destino e o amor, feito lobos solitários, continuam devorando sonhos juvenis. E o desejo esconde-se no leito sombrio de um quarto qualquer.


Peruíbe SP, 07 de julho de 2019, 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

PROMESSA DE ZÉ RIBANCEIRA

Adão de Souza Ribeiro

                        Conheci Zé Ribanceira ainda na adolescência. Já naquela época, nutria por ele uma grande admiração e, por isso, quando busco no baú da memória, lembranças sobre o amigo, vertem lágrimas nos olhos de tanta saudade. Pessoa responsável e trabalhador incansável, por isso, não media esforços na luta pela vida. Corpo de atleta e mente de criança, ou seja, aparência de bruto e simplicidade na alma.
                        Chamava atenção, a fé inabalável que tinha no Criador, além de respeito enorme pelo desconhecido e pelas coisas inexplicáveis da vida. Fervoroso devoto da padroeira da cidade, não perdia uma missa ou uma procissão. Tratava o pároco octogenário com deferência e quase chegando à idolatria. No canto da sala de sua casa, havia um pequeno altar, onde, todos os dias, rogava proteção aos santos, a fim de  vencer a procelas do cotidiano.
                        Ainda jovem, contraiu matrimônio com Maria Serafina. Sonho de criança realizado, qual seja, o de ser bom esposo e pai. Teve sorte de se acasalar com uma caipirinha escolhida a dedo, numa casa de sete irmãs. Mulher prendada e fiel, coisa rara nos tempos de hoje. Por causa da empatia, formava um casal invejável na comunidade. Participavam de todas as atividades sociais, por isso, eram presenças marcantes nas festas de casamento, batizado, quermesse e até nos velórios de quem quer que fosse.
                        Mas para que a felicidade fosse completa, o casal carecia de filhos. Sem o choro ou as traquinagens de crianças, a casa parecia um deserto. Mil sonhos e mil planos. Brilhavam os olhos de Maria Serafina, quando via as mães com seus bebês no colo, amamentando. Já Zé Ribanceira imaginava correndo atrás dos filhos, pela casa ou pelo quintal, numa brincadeira interminável. Ver os ossos dos seus ossos e o sangue do seu sangue, crescendo e ganhando forma, era algo imensurável ao coração do casal.
                        Não foi por falta de desejo físico e sentimental, que eles não buscaram a realização daquele sonho inadiável. Uma vez plantada a semente no ventre de Maria Serafina, a alma enchia de esperança. Mas parecia uma sina, pois durava pouco e a semente não se vingava. Foram muitas tentativas. Ora murchava no ventre, ora dias após o parto. Por orientação de amigos, buscaram alento nas orações, simpatias, plantas medicinais e todo tipo de crendice. Aos poucos, foi enfraquecendo a fé e a esperança.
                        Maria Serafina vivia chorosa pelos cantos da casa, aquela casa vazia e sem vida. Já o esposo Zé Ribanceira se culpava pelo infortúnio. Ele sentia-se uma árvore seca, por não gerar fruto que se vingasse por completo. Fez todo tipo de exame, mas sem diagnóstico preciso. E assim o tempo foi passando. O medo de chegar à velhice, sem gerar um herdeiro e, o que é pior, sem poderem ouvir alguém, chamando-os de pai ou mãe. Aquilo era de cortar o coração e enfraquecer o espírito.
                        Mas um belo dia, lá estava Maria Serafina, prenha de novo. Renascia a esperança e os sonhos caminhavam pela casa humilde de quem não desistia de ser feliz. No leito conjugal, Zé Ribanceira acariciava o ventre da esposa e conversava com o feto, com tanto afeto, que era bonito de ser ver. Maria Serafina, assim como Maria Imaculada - mãe de Jesus Cristo, se sentia agraciada pelo dom divino de poder gerar dentro de si, um ser, uma vida, algo precioso. E assim, entre carícias em Maria Serafina e conversar com o futuro herdeiro, Zé Ribanceira adormeceu e caiu em sono profundo.
                        Durante aquele sono, ele teve um sonho. Um anjo resplandecente e de voz adocicada, cochichou aos seus ouvidos, dizendo: “Zé Ribanceira, construa uma cruz e leve até a Catedral da Padroeira. Lá chegando, ofereça a vida do seu filho a ela”. Ao amanhecer, ele acordou irradiante e sem que ninguém soubesse, nem mesmo a esposa, pôs-se a construir a cruz. Disse apenas a ela e aos moradores do lugar que fizera uma promessa e que, em segredo iria cumpri-la. Os olhos da esposa brilharam e o povo abraçou o sonho dele.
                        O madeireiro ajudou a tornear e o mecânico confeccionou as rodas. Uma costureira coseu o alforje e seleiro confeccionou a alpercata. E assim, a cidade tornara-se cumplice da fé daquele homem. No dia da partida, realizou-se uma missa na praça da igreja matriz, pelo pároco octogenário, com direito a música sacra e fogos de artificio. Lá se foi o Zé Ribanceira vestido numa roupa humilde, carregando a cruz pesada, com o alforje do lado e dentro do coração, a esperança de ver o filho nascer, crescer e de proporcionar a ele e a Maria Serafina, toda a alegria do mundo. Mas só ele o anjo sabiam, da promessa a ser a ser cumprida.
                        Nos dias que se seguiram, poucas notícias dele. Apenas que fora visto lá pelas bandas da capital. Já a esposa não cansava de rezar por ele e pelo filho que gerava. De vez em quando, um viajor que chegava à cidade, trazia vagas notícia de Zé Ribanceira. Enquanto isso, o homem fincado na sua fé, derramava seu sangue representado pelo suor e pelas dores intermináveis no corpo de atleta. Ora caminhava pelas estradas de terra batida, ora pelas rodovias, ao som dos motores de veículos e dos olhos de curiosos e de descrentes.
                        “Meu filho virá com saúde. E com ele, a certeza de que meu calvário não será em vão”. E lá se foram dias de caminhada, dor, suor e esperança. Sentia-se como o “Filho de Deus”, que sacrificou a própria vida, para salvar a humanidade. Ele, o Zé Ribanceira, renunciou a sua própria vida e todas as vaidades, em nome de seu filho e da felicidade de Maria Serafina. O seu gesto de amor e de fé, causou consternação e respeito de todos os seus conterrâneos. Até hoje é lembrado com carinho.
                        Quando voltou a minha terra natal, já com o corpo surrado e todo abatido, foi saudado com muita alegria por todos. Maria Serafina, vestida de felicidade e já nos dias de dar a luz ao herdeiro, derretia-se de carinho para com o esposo, o nosso querido Zé Ribanceira. Sobre o que ele passou pela estrada, longe da esposa e da minha cidade natal, conto depois.
                        Não era à toa, que desde a adolescência, eu nutria uma grande admiração pelo homem de corpo forte, aparência bruta, alma simples e jeito de criança. Com lágrimas nos olhos, recordo-me do nosso Zé Ribanceira, que pagou com seu próprio sacrifício, o sonho de ser feliz.  


Peruíbe SP, 05 de julho de 2019.