sexta-feira, 5 de julho de 2019

PROMESSA DE ZÉ RIBANCEIRA

Adão de Souza Ribeiro

                        Conheci Zé Ribanceira ainda na adolescência. Já naquela época, nutria por ele uma grande admiração e, por isso, quando busco no baú da memória, lembranças sobre o amigo, vertem lágrimas nos olhos de tanta saudade. Pessoa responsável e trabalhador incansável, por isso, não media esforços na luta pela vida. Corpo de atleta e mente de criança, ou seja, aparência de bruto e simplicidade na alma.
                        Chamava atenção, a fé inabalável que tinha no Criador, além de respeito enorme pelo desconhecido e pelas coisas inexplicáveis da vida. Fervoroso devoto da padroeira da cidade, não perdia uma missa ou uma procissão. Tratava o pároco octogenário com deferência e quase chegando à idolatria. No canto da sala de sua casa, havia um pequeno altar, onde, todos os dias, rogava proteção aos santos, a fim de  vencer a procelas do cotidiano.
                        Ainda jovem, contraiu matrimônio com Maria Serafina. Sonho de criança realizado, qual seja, o de ser bom esposo e pai. Teve sorte de se acasalar com uma caipirinha escolhida a dedo, numa casa de sete irmãs. Mulher prendada e fiel, coisa rara nos tempos de hoje. Por causa da empatia, formava um casal invejável na comunidade. Participavam de todas as atividades sociais, por isso, eram presenças marcantes nas festas de casamento, batizado, quermesse e até nos velórios de quem quer que fosse.
                        Mas para que a felicidade fosse completa, o casal carecia de filhos. Sem o choro ou as traquinagens de crianças, a casa parecia um deserto. Mil sonhos e mil planos. Brilhavam os olhos de Maria Serafina, quando via as mães com seus bebês no colo, amamentando. Já Zé Ribanceira imaginava correndo atrás dos filhos, pela casa ou pelo quintal, numa brincadeira interminável. Ver os ossos dos seus ossos e o sangue do seu sangue, crescendo e ganhando forma, era algo imensurável ao coração do casal.
                        Não foi por falta de desejo físico e sentimental, que eles não buscaram a realização daquele sonho inadiável. Uma vez plantada a semente no ventre de Maria Serafina, a alma enchia de esperança. Mas parecia uma sina, pois durava pouco e a semente não se vingava. Foram muitas tentativas. Ora murchava no ventre, ora dias após o parto. Por orientação de amigos, buscaram alento nas orações, simpatias, plantas medicinais e todo tipo de crendice. Aos poucos, foi enfraquecendo a fé e a esperança.
                        Maria Serafina vivia chorosa pelos cantos da casa, aquela casa vazia e sem vida. Já o esposo Zé Ribanceira se culpava pelo infortúnio. Ele sentia-se uma árvore seca, por não gerar fruto que se vingasse por completo. Fez todo tipo de exame, mas sem diagnóstico preciso. E assim o tempo foi passando. O medo de chegar à velhice, sem gerar um herdeiro e, o que é pior, sem poderem ouvir alguém, chamando-os de pai ou mãe. Aquilo era de cortar o coração e enfraquecer o espírito.
                        Mas um belo dia, lá estava Maria Serafina, prenha de novo. Renascia a esperança e os sonhos caminhavam pela casa humilde de quem não desistia de ser feliz. No leito conjugal, Zé Ribanceira acariciava o ventre da esposa e conversava com o feto, com tanto afeto, que era bonito de ser ver. Maria Serafina, assim como Maria Imaculada - mãe de Jesus Cristo, se sentia agraciada pelo dom divino de poder gerar dentro de si, um ser, uma vida, algo precioso. E assim, entre carícias em Maria Serafina e conversar com o futuro herdeiro, Zé Ribanceira adormeceu e caiu em sono profundo.
                        Durante aquele sono, ele teve um sonho. Um anjo resplandecente e de voz adocicada, cochichou aos seus ouvidos, dizendo: “Zé Ribanceira, construa uma cruz e leve até a Catedral da Padroeira. Lá chegando, ofereça a vida do seu filho a ela”. Ao amanhecer, ele acordou irradiante e sem que ninguém soubesse, nem mesmo a esposa, pôs-se a construir a cruz. Disse apenas a ela e aos moradores do lugar que fizera uma promessa e que, em segredo iria cumpri-la. Os olhos da esposa brilharam e o povo abraçou o sonho dele.
                        O madeireiro ajudou a tornear e o mecânico confeccionou as rodas. Uma costureira coseu o alforje e seleiro confeccionou a alpercata. E assim, a cidade tornara-se cumplice da fé daquele homem. No dia da partida, realizou-se uma missa na praça da igreja matriz, pelo pároco octogenário, com direito a música sacra e fogos de artificio. Lá se foi o Zé Ribanceira vestido numa roupa humilde, carregando a cruz pesada, com o alforje do lado e dentro do coração, a esperança de ver o filho nascer, crescer e de proporcionar a ele e a Maria Serafina, toda a alegria do mundo. Mas só ele o anjo sabiam, da promessa a ser a ser cumprida.
                        Nos dias que se seguiram, poucas notícias dele. Apenas que fora visto lá pelas bandas da capital. Já a esposa não cansava de rezar por ele e pelo filho que gerava. De vez em quando, um viajor que chegava à cidade, trazia vagas notícia de Zé Ribanceira. Enquanto isso, o homem fincado na sua fé, derramava seu sangue representado pelo suor e pelas dores intermináveis no corpo de atleta. Ora caminhava pelas estradas de terra batida, ora pelas rodovias, ao som dos motores de veículos e dos olhos de curiosos e de descrentes.
                        “Meu filho virá com saúde. E com ele, a certeza de que meu calvário não será em vão”. E lá se foram dias de caminhada, dor, suor e esperança. Sentia-se como o “Filho de Deus”, que sacrificou a própria vida, para salvar a humanidade. Ele, o Zé Ribanceira, renunciou a sua própria vida e todas as vaidades, em nome de seu filho e da felicidade de Maria Serafina. O seu gesto de amor e de fé, causou consternação e respeito de todos os seus conterrâneos. Até hoje é lembrado com carinho.
                        Quando voltou a minha terra natal, já com o corpo surrado e todo abatido, foi saudado com muita alegria por todos. Maria Serafina, vestida de felicidade e já nos dias de dar a luz ao herdeiro, derretia-se de carinho para com o esposo, o nosso querido Zé Ribanceira. Sobre o que ele passou pela estrada, longe da esposa e da minha cidade natal, conto depois.
                        Não era à toa, que desde a adolescência, eu nutria uma grande admiração pelo homem de corpo forte, aparência bruta, alma simples e jeito de criança. Com lágrimas nos olhos, recordo-me do nosso Zé Ribanceira, que pagou com seu próprio sacrifício, o sonho de ser feliz.  


Peruíbe SP, 05 de julho de 2019.

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