Adão de Souza
Ribeiro
Conheci Zé Ribanceira ainda na adolescência.
Já naquela época, nutria por ele uma grande admiração e, por isso, quando busco
no baú da memória, lembranças sobre o amigo, vertem lágrimas nos olhos de tanta
saudade. Pessoa responsável e trabalhador incansável, por isso, não media
esforços na luta pela vida. Corpo de atleta e mente de criança, ou seja,
aparência de bruto e simplicidade na alma.
Chamava atenção, a fé inabalável que tinha no
Criador, além de respeito enorme pelo desconhecido e pelas coisas inexplicáveis
da vida. Fervoroso devoto da padroeira da cidade, não perdia uma missa ou uma
procissão. Tratava o pároco octogenário com deferência e quase chegando à
idolatria. No canto da sala de sua casa, havia um pequeno altar, onde, todos os
dias, rogava proteção aos santos, a fim de vencer a procelas do cotidiano.
Ainda jovem, contraiu matrimônio com Maria
Serafina. Sonho de criança realizado, qual seja, o de ser bom esposo e pai.
Teve sorte de se acasalar com uma caipirinha escolhida a dedo, numa casa de
sete irmãs. Mulher prendada e fiel, coisa rara nos tempos de hoje. Por causa da
empatia, formava um casal invejável na comunidade. Participavam de todas as
atividades sociais, por isso, eram presenças marcantes nas festas de casamento,
batizado, quermesse e até nos velórios de quem quer que fosse.
Mas para que a felicidade fosse completa, o
casal carecia de filhos. Sem o choro ou as traquinagens de crianças, a casa
parecia um deserto. Mil sonhos e mil planos. Brilhavam os olhos de Maria
Serafina, quando via as mães com seus bebês no colo, amamentando. Já Zé
Ribanceira imaginava correndo atrás dos filhos, pela casa ou pelo quintal, numa
brincadeira interminável. Ver os ossos dos seus ossos e o sangue do seu sangue,
crescendo e ganhando forma, era algo imensurável ao coração do casal.
Não foi por falta de desejo físico e
sentimental, que eles não buscaram a realização daquele sonho inadiável. Uma
vez plantada a semente no ventre de Maria Serafina, a alma enchia de esperança.
Mas parecia uma sina, pois durava pouco e a semente não se vingava. Foram
muitas tentativas. Ora murchava no ventre, ora dias após o parto. Por
orientação de amigos, buscaram alento nas orações, simpatias, plantas medicinais
e todo tipo de crendice. Aos poucos, foi enfraquecendo a fé e a esperança.
Maria Serafina vivia chorosa pelos cantos da
casa, aquela casa vazia e sem vida. Já o esposo Zé Ribanceira se culpava pelo
infortúnio. Ele sentia-se uma árvore seca, por não gerar fruto que se vingasse
por completo. Fez todo tipo de exame, mas sem diagnóstico preciso. E assim o
tempo foi passando. O medo de chegar à velhice, sem gerar um herdeiro e, o que
é pior, sem poderem ouvir alguém, chamando-os de pai ou mãe. Aquilo era de
cortar o coração e enfraquecer o espírito.
Mas um belo dia, lá estava Maria Serafina,
prenha de novo. Renascia a esperança e os sonhos caminhavam pela casa humilde
de quem não desistia de ser feliz. No leito conjugal, Zé Ribanceira acariciava
o ventre da esposa e conversava com o feto, com tanto afeto, que era bonito de
ser ver. Maria Serafina, assim como Maria Imaculada - mãe de Jesus Cristo, se
sentia agraciada pelo dom divino de poder gerar dentro de si, um ser, uma vida,
algo precioso. E assim, entre carícias em Maria Serafina e conversar com o
futuro herdeiro, Zé Ribanceira adormeceu e caiu em sono profundo.
Durante aquele sono, ele teve um sonho. Um
anjo resplandecente e de voz adocicada, cochichou aos seus ouvidos, dizendo: “Zé
Ribanceira, construa uma cruz e leve até a Catedral da Padroeira. Lá chegando,
ofereça a vida do seu filho a ela”. Ao amanhecer, ele acordou
irradiante e sem que ninguém soubesse, nem mesmo a esposa, pôs-se a construir a
cruz. Disse apenas a ela e aos moradores do lugar que fizera uma promessa e
que, em segredo iria cumpri-la. Os olhos da esposa brilharam e o povo abraçou o
sonho dele.
O madeireiro ajudou a tornear e o mecânico
confeccionou as rodas. Uma costureira coseu o alforje e seleiro confeccionou a
alpercata. E assim, a cidade tornara-se cumplice da fé daquele homem. No dia da
partida, realizou-se uma missa na praça da igreja matriz, pelo pároco octogenário,
com direito a música sacra e fogos de artificio. Lá se foi o Zé Ribanceira vestido
numa roupa humilde, carregando a cruz pesada, com o alforje do lado e dentro do
coração, a esperança de ver o filho nascer, crescer e de proporcionar a ele e a
Maria Serafina, toda a alegria do mundo. Mas só ele o anjo sabiam, da promessa
a ser a ser cumprida.
Nos dias que se seguiram, poucas notícias
dele. Apenas que fora visto lá pelas bandas da capital. Já a esposa não cansava
de rezar por ele e pelo filho que gerava. De vez em quando, um viajor que chegava
à cidade, trazia vagas notícia de Zé Ribanceira. Enquanto isso, o homem fincado
na sua fé, derramava seu sangue representado pelo suor e pelas dores
intermináveis no corpo de atleta. Ora caminhava pelas estradas de terra batida,
ora pelas rodovias, ao som dos motores de veículos e dos olhos de curiosos e de
descrentes.
“Meu filho virá com saúde. E com ele, a certeza
de que meu calvário não será em vão”. E lá se foram dias de caminhada,
dor, suor e esperança. Sentia-se como o “Filho de Deus”, que sacrificou a
própria vida, para salvar a humanidade. Ele, o Zé Ribanceira, renunciou a sua própria
vida e todas as vaidades, em nome de seu filho e da felicidade de Maria
Serafina. O seu gesto de amor e de fé, causou consternação e respeito de todos
os seus conterrâneos. Até hoje é lembrado com carinho.
Quando voltou a minha terra natal, já com o
corpo surrado e todo abatido, foi saudado com muita alegria por todos. Maria
Serafina, vestida de felicidade e já nos dias de dar a luz ao herdeiro, derretia-se
de carinho para com o esposo, o nosso querido Zé Ribanceira. Sobre o que ele
passou pela estrada, longe da esposa e da minha cidade natal, conto depois.
Não era à toa, que desde a adolescência, eu
nutria uma grande admiração pelo homem de corpo forte, aparência bruta, alma
simples e jeito de criança. Com lágrimas nos olhos, recordo-me do nosso Zé
Ribanceira, que pagou com seu próprio sacrifício, o sonho de ser feliz.
Peruíbe SP, 05
de julho de 2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário