terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O PÉ DE IMBU

                         O quintal da casa do meu avô era todo arborizado e florido. Modéstia chamá-lo de quintal, pois, na realidade, era um sítio em pleno centro da cidade. Foi ali, naquele lugar tão acolhedor, que passei boa parte da minha infância. Dividia os prazeres da inocência, com meus seis irmãos e um casal de primos. Nove netos atormentando o sossego dos nossos avós. Não bastasse isso, tinha os filhos dos vizinhos, tão arteiros quanto nós, que compartilham da nossa história.
                                   Do outro lado da rua, ficava a minha casa que, também, tinha um quintal com as mesmas proporções e características. Mas hoje, vou dissertar sobre esse quintal e não aquele. Para início de prosa, não tinha cerca e se tivesse, pouco importava. Do lado direito, fazia divisa com uma pensão, de família japonesa. Aos fundos, também outra família japonesa, cuja atividade, não me recordo. Já do lado esquerdo, com a família de comerciante, dona de armazém.
                                As árvores frutíferas e frondosas nos davam sombra aconchegante. Também havia flores e plantas medicinais. Ao lado do tanque (taboa) de esfregar roupa, escorria uma água, a qual alimentava o pé de hortelã, de poejo, de arruda, de mastruz e de tantos outros. Enquanto minha tia ficava no batente do dia a dia, nós nos deleitávamos em brincadeiras infantis. Outras vezes, deliciávamos das frutas colhidas e devorávamos ali mesmo, com sabor de quero mais.
                             Como não havia barreiras, cercas que separavam os quintais vizinhos, avançávamos e também desfrutávamos de lá. As folhas secas do outono enfeitavam o chão, para, depois, transformarem em adubo natural. Os meninos e meninas se misturavam em diversões sem maldade. Algumas briguinhas inconsequentes e, depois, tudo voltava ao normal. E assim, passávamos horas e horas, sem perceber o vento ameno da noite beijando o nosso rosto. Com o grito inesperado dos nossos pais, acordávamos para a realidade.
                                   Como não se emocionar, quando busco na memória, fragmentos daquele tempo áureo, que não volta mais. As meninas brincavam de “casinha”, montadas com folhagens de banana, como cabanas. O alimento era representado por panelinhas de barro. As filhas eram bonecas, confeccionadas com espiga de milho. Já os meninos, talhavam seus brinquedos com madeira, como por exemplo, os carrinhos, cujas rodas, eram carretéis de madeira. Criávamos um mundo imaginário, que de tão perfeito, não parecia existir outro igual.
                                   A vizinha do lado esquerdo morria de ciúmes do seu pé de jabuticaba. Protegia e vigiava, mas de nada adiantava. Num descuido qualquer, nós estávamos lá, ao lado dele, colhendo uma a uma a frutas agarradas ao caule. Ela, a vizinha, ao que parece, era apaixonada pelo meu irmão. Mas ele, alheio a tudo, inclusive aos olhares sedutores, queria apenas brincar e se divertir. A vida nos ensinava a ser livre, então, para que se prender as coisas do sentimento... do coração. Tínhamos por regra, apenas amar a vida, a natureza e a liberdade. Creio que ela, a vizinha, levou para sempre, o sonho de ser desejada pelo meu irmão, como desejávamos o seu pé de jabuticaba.
                                   Os pés de fruta, tais como, de manga bourbon, limão, abacate,  laranja, banana, mexerica, jabuticaba, enfim, todos tinham lá seus encantos e, por isso, marcaram a nossa infância e adolescência. Não posso esquecer-me das plantas medicinais, das flores e das aves, que tornaram aquele quintal, um verdadeiro paraíso. Hoje, decorridos longos anos, tenho medo de voltar lá e ver que tudo aquilo não mais existe. Por isso, melhor deixar ele vivo na minha imaginação e nos meus devaneios.
                                   Mas de todas as plantas ali existentes, uma delas teve um significado especial para mim. Tratava-se do pé de imbu ou umbu, como preferirem. Lembro-me com ternura, que passava horas e horas entre os seus galhos. Na maioria das vezes, fazia isso sozinho. Eu ficava ali camuflado entres sua copa frondosa. Dali observa a casa do meu “amor platônico”, que ficava distante. Num ângulo privilegiado, podia vê-la entrar e sair da casa, sem ser notado. Deleitava-me com a beleza e a sensualidade dela. Viajava no tempo, imaginado ela nos meus braços.
                                   Um dia, após enveredar pelo mundo da literatura, descobri que imbu significa “árvore que dá de beber”. Compreendi então, o porquê de uma relação tão intima entre mim e ele. Naquele tempo, com passos ainda frágeis, busquei galgar nele, sem saber, a sede do conhecimento e do desejo de um amor inimaginável. Ele soube guardar para sempre, entre seus galhos e folhas, um sonho, um desejo e um segredo divinal.
                                   Os ventos imprevisíveis da vida levaram-me para as bandas do norte ou do sul, não sei. Mas uma coisa é certa, meu pé de imbu: “Eu vivo em você e você vive em mim”. Quanto ao amor platônico, foi só uma brincadeira de infância, nada mais!

Peruíbe SP, 19 de dezembro de 2018.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

FLOR DESPETALADA

                     Havia um jardim belo e florido, encravado no sertão. Lá as plantas e flores viviam harmoniosamente, ouvindo a sinfonia dos pássaros canoros. Bem cuidado e regado, pelas mãos de um talentoso jardineiro, causava encanto a todos os seres viventes. Tudo era puro, tudo era belo e tudo tinha o ar da graça. A vida respirava paz e tranquilidade. Não havia pressa, porque nada justificava a ansiedade do que estava por vir. O amanhã era um lugar tão distante e longe dos olhos do que desfrutavam o sonho da eternidade.
                                   As estações, todos os anos, vinham cada uma do seu jeito, abraçar e beijar o estonteante jardim. Elas traziam em seus colos, todo tipo de presente, com o desejo imenso de agradar as flores e as plantas que ali habitavam. As festas promovidas pelas estações encantavam os olhos de todo viajor. E as flores retribuíam aquele afeto recebido, exalando fragrância inesquecível e dançavam ao sabor do vento matutino. Era lindo de se ver. Era agradabilíssimo sentir a energia daquele lugar sacrossanto!
                                   Cada flor tinha seu encanto pessoal. Uma pelo aroma que exalava, outra pelas pétalas multicores e outra, ainda, pela exuberância de seus galhos. E assim, cada uma ao seu modo, procurava agradecer ao Criador, sua razão de existir. Os artistas, dentre eles, o músico, o pintor e o literato, ficam sentados por ali, contemplando a beleza impar do lugar e buscando inspiração divina, para retratar o que ora se narra.
                                   Eles, os tais artistas, observaram que as flores também sentiam afeto e desejo entre si. Por isso, era comum naquele mundo florístico, que durante a dança do vento, elas se tocavam e se acariciavam. Entre um flerte e outro, beijam a flor amada e, sem qualquer lascívia, o gametófito tocava o pistilo e, naquele momento, o amor singelo e encantador se consumava. Sem que se percebesse, dava continuidade à procriação da espécie.
                                   Era notório, que Begônia com toda sua formosura, inocência e delicadeza, era loucamente apaixonada por Antúrio, porque via nele, um ar de autoridade, hospitalidade e luxo. Por ter nascido e sido criada ali, naquele jardim, Begônia era fiel a Antúrio. Nunca se viu ou se comentou que ela dera uma “pulada de cerca”, ou melhor, uma “pulada de canteiro”, em busca de prazeres extraflorais. Cuidava de seus rebentos com muito amor e zelo. É de bom alvitre que se diga que Begônia era loucamente apaixonada por Antúrio.
                                   Certa feita, não se sabe como, passou a morar ali, quer dizer, nasceu ali Orquídea. Creio que ela, ainda em forma de semente, foi trazida no bico de um pássaro errante. Com sua roupa amarela toda exuberante e seu bailar sedutor, começou a despertar ciúmes entre as demais. Ocorre que, com o passar do tempo, criou-se uma linda e prospera amizade entre Begônia e Orquídea. Ambas não se separavam um minuto se quer, eram amigas e confidentes íntimas.
                                   Begônia, formosa e inocente. Orquídea, exuberante e sedutora. Begônia, recatada e fiel. Orquídea, bela e liberal. Não demorou muito para que, aos poucos e sem pressa, Orquídea convencesse Begônia a passear descontraidamente pelo jardim, enquanto o esposo Antúrio, com seu espírito humanitário, cuidava de outras flores, em seus infortúnios. Ele nada desconfiava e, para não criar animosidade, as outras flores mantinham segredo. Antúrio gerara dois filhos com Begônia, ou seja, Lírio e Azaléa. Era um esposo carinhoso e um excelente genitor.  Dava pena de Antúrio!    
                                   Escandalizadas pelo que se passava no jardim, até então, belo e puro, as outras flores, de nomes diversificados, mantinham-se equidistante de tudo aquilo. Creia-se que era uma forma de não se contaminarem com a perdição que batia à porta, ou melhor, que se infiltrava entre os lindos canteiros. “Por que o pássaro errante não foi pousar em outro lugar, levando aquela semente contaminada para um desterro distante?”, indagavam entre si, as flores entristecidas. Até quando elas iriam conviver com aquele pesadelo?
                                   Numa manhã primaveril, cansada daquele mundo rotineiro e encantada pelo novo horizonte estampado por Orquídea, sua amiga inseparável, a recatada e fiel Begônia resolveu partir, para onde, não se sabe. Deixou para trás, a vida tranquila e harmoniosa, daquele jardim belo e encantador. Abandonou Antúrio e os filhos Lírio e Azaléia. Levou consigo apenas a amiga Orquídea. Vestida de ilusão, Begônia deixou um mundo que a viu nascer e crescer. Arrancou pela raiz, a felicidade de Antúrio. Enterrou para sempre, o amor materno dos filhos.   
                                   Conta à lenda, que hoje Begônia anda por aí, sem rumo e sem as pétalas. Lindas e aromáticas pétalas que, um dia, as revestiu de tanta formosura e felicidade.  A primavera de Begônia, já era!


Peruíbe SP, 11 de dezembro de 2018.  

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

O PRIMEIRO HOMEM

                                   "My name is Adam. I´m the first man of the world” (Meu nome é Adão. Eu sou o primeiro homem do mundo). Está registrado na Sagrada Escritura. Isso é inconteste. Em razão disso, sempre fui o primeiro. Inclusive na chamada da lista escolar ou nas sabatinas da sala de aula. Sempre soube lidar com algumas piadas inconvenientes, porque entendia que ser o primeiro, era um privilégio único. Os amigos e amigas seguiam-me, pois havia em mim, um espírito de liderança nato. O primeiro em tudo, até na hora de levar bronca dos pais e professores.
                                   Em casa, isto é, em Guaimbê SP, fui o primeiro filho, o primogênito. Coube a mim, abrir caminho para os que me sucederam, isto é, mais seis. “O homem do barro vermelho”, é o significado do meu nome em hebraico. Quantas responsabilidades caíram sobre mim. “My wife was called Eva” (Minha esposa foi chamada de Eva). Consta na Bíblia, que gerei 33 filhos e 23 filhas, dentre eles, Caim, Abel, Sete e as filhas Azura e Avan, segundo o Livro dos Jubileus. Vou tentando aqui e acolá, alinhavar a minha história, no campo terreno e no espiritual. Espero não ser repetitivo e enfadonho.
                                   Tem a história da maçã e da serpente, escrita em parábolas. Creio que a maçã é o sexo e a serpente é a sogra. Que me perdoem todas as sogras de plantão, inclusive a minha, hoje em memoriem. A maçã, atraente e cheirosa, nada mais alusivo do que ela. A sogra, bicho atentado e pronto para tumultuar o lar de casais felizes. Depois daquela tragicomédia, o “Jardim do Éden” nunca mais foi o mesmo. Um lugar de delícia, arquitetado pelo Criador, passou a ser uma terra de luta e sofrimento.
                                   Sempre tive orgulho do meu nome de batismo. Mas, de uns dias para cá, algo vem me preocupando sobremaneira. Dois cientistas, sendo um americano e um suíço, passaram a questionar a origem da população humana. Um defende que houve o cruzamento entre dois seres (genoma nuclear) e outro defende que não houve cruzamento, gerando a partir de um ser feminino (genoma mitocondrial). Fiquei confuso. Se não houve um “sapeca iá iá”, como fica a história dos 33 meninos e 23 meninas, gerados a partir de Adão. Como Eva cuidou da ninhada, se não precisou da participação direta do varão? Acho que Adão era baiano e o “Jardim do Éden”, ficava no nordeste.
                                   Depois tem a história de que o ser humano existe a partir da evolução dos macacos. Somos, segundo Charles Darwin, “homo sapiens”, cuja origem está na região do Lago Turkana, localizado na fronteira entre Etiópia e Quênia. É tanta história mal contada, que fico perguntando: “Quem sou? Será que eu sou filho de Chipa e Zé (Chipanzé)?” Deus me livre! Credo em cruz! Não sei por que, nessa assertiva, fui enveredar por tal assunto. Estava indo tão bem, quando dizia que sou o primeiro homem do mundo.
                                   Lá vem o perfil de um homem inquietante, que busca mudar o mundo através de perguntas polêmicas. “Por onde andava e o que fazia Jesus Cristo, fora dos textos bíblicos?”, indaguei à madre superiora, diretora da Escola Nossa Senhora Auxiliadora, em Lins SP, sem ser herege. Isso foi em 1977, antes do advento da obra “Código Da Vince”, de Dan Brown, publicado em 2003. Deixei a madre superiora de cabelos em pé. Por ser o primeiro homem, sempre caminhei além do meu tempo.
                                   De uma coisa, estou certo: “Por ser o primeiro homem do mundo, fui o primeiro a andar nu, a dar a primeira sapecada iá ia, a ter uma ninhada de filhos, a acreditar na sogra – serpente-, a comer com o suor do próprio rosto, a ter vergonha da própria nudez, a não assumir a culpa do que fez, a perder as mordomias do paraíso, a comprar o gás que acabou, a recolher o cocô do cachorro, a pôr o lixo na rua, a acreditar na história (hoje não, pois estrou com dor de cabeça) e por aí se vai”. Ser o primeiro, nem sempre é bom.  
                                   Penso que é bom ser o último. Mas dizem que os últimos serão os primeiros. Tudo volta à estaca zero. Então, o melhor é continuar sendo um contador de história... um forrest gamp.
Peruíbe SP, 06 de dezembro de 2018.


domingo, 2 de dezembro de 2018

SER OU NÃO SER

                          O que move o mundo são as perguntas e não as respostas. Essa assertiva é tão perfeita, como afirmar que dois mais dois são quatro. Quando questionamos algo, queremos desvendar os mistérios da alma, naquilo que se pretende descobrir. Sou um curioso nato e, por isso, a inquietação do saber, sempre norteou a minha existência. Nunca me satisfiz com respostas esdrúxulas e desconcertantes. Insisto até que me convençam sobre aquilo que incomoda o meu intelecto.
                                   Gosto de me enveredar por assuntos polêmicos, onde, na maioria das vezes, as pessoas querem que suas opiniões, vençam a fórceps. É bom que se diga que ninguém é dono da verdade absoluta. Até hoje, discute-se a origem do universo e, nem por isso, está fechada a questão em torno do assunto. “Cogito, ergo sun” (penso, logo existo), disse o filósofo francês René Descartes, em seu livro “Discurso do Método”, em 1637. Só o fato de pensar, anima-me por demais. Estou vivo!
                                   Não gosto de nada pronto, pré-estabelecido. Posso dizer que não abro mão das minhas conjecturas, mas, no entanto, permito ouvir opiniões contrárias. São maneiras de pensar, diferentes das minhas, que me fazem crescer e amadurecer. As pessoas intransigentes deixam-me enfadonho e nada acrescentam na lapidação do meu espirito e do meu desenvolvimento intelectual. A ignorância é a irmã siamesa da intolerância. Um dia, alguém me disse: “Toda unanimidade é burra”.
                                   Um dia desses, sem querer, deitei-me a debater com uma mulher, nas redes sociais da vida. Uma amiga de longa data havia postado algo, dizendo: “Os homens não são mulherengos, mas as mulheres é que são oferecidas”. E eu, em tom de brincadeira, disse: “Não sou mulherengo, mas, sim mulherólogo”. Expliquei que o mulherengo quer a mulher apenas para curtir, no entanto, já o mulherólogo é um estudioso do sexo feminino. Outra mulher, ao que parece feminista de carteirinha, criou um embate, o qual se estendeu noite adentro.
                                   Em meio às calorosas discussões, a minha oponente começou a depreciar o sexo, do qual sou representante e defensor ferrenho.  As feministas defendem ideias controversas; já as femininas, defendem sentimentos. A mídia tem incutido nas mulheres de hoje, que o homem é um inimigo mortal e que, por isso, tem que ser abatido no ninho. Defendo o princípio de que a mulher nasceu para ser amiga e companheira, não adversária nesse mundo selvagem, onde, o que impera é o poder e a aparência.
                                   Tenho profundo carinho e admiração pelas minhas avós e minha mãe, que cumpriram com responsabilidade e galhardia a missão de rainhas do lar, esposas e mães. Cuidaram dos esposos com carinho e fidelidade e educaram os filhos com amor e firmeza. Por outro lado, meus avôs e meu pai, souberam suprir as necessidades do lar e, também, protegeram e cuidaram das esposas e dos filhos, com amor e sabedoria. Não havia fatores externos, tão perniciosos como os de hoje, para influenciaram na condução da família. As mulheres que faço menção, não eram feministas, mas femininas, na acepção generosa do termo. Nunca afrontaram seus esposos e, por isso, foram felizes e agraciadas por Deus.
                                   Não tenho dúvidas de que foi com elas, que aprendi a ser mulherólogo. Sou um estudioso do universo feminino, graças a elas. Não vejo a mulher apenas como um objeto de consumo, como querem as fêmeas de hoje. Não compartilho e nem compactuo com homens violentos, que desrespeitam o corpo, a alma e o coração feminino. Também, não aceito que as mulheres busquem nos homens, apenas o seu CPF robusto. O progresso bateu à nossa porta e muita coisa evoluiu. Mas o que não pode mudar são os princípios éticos e morais, que devem nortear a conduta dos dois sexos.
                                   Hoje, depois dos infortúnios da vida, bem como, do aprendizado ao lidar com sentimentos e desejos tão antagônicos, percebi que ser mulherengo ou mulherólogo, é apenas uma questão de opção. Se a fêmea se satisfaz ao lado de um mulherengo, então, o homem deve assumir esse papel. Por outro lado, se ela se completa ao lado de um mulherólogo, corra urgentemente para os braços dela. Enquanto a feminista se perde em vãs filosofias, a feminina dormita feliz e protegida nos braços do amado.
                                   E eu, esse mulherólogo de berço, criado sob o manto do amor feminino, vou estudando os mistérios escondidos no corpo, na alma e no coração da mulher. E quanto mais eu me perco no universo feminino, mais eu meu encontro. Enquanto as feministas discutem o sexo dos anjos, eu fico por aqui, ao lado de um anjo cheio de sexo e amor. Quem mandou eu ser um estudioso? Das fêmeas e não das feministas, claro!
                                   To be or not to be: womanizer or womanologist. That is the question”. (Ser ou não ser: mulherengo ou mulherólogo. Eis a questão.)

Peruíbe SP, 02 de dezembro de 2018

sábado, 24 de novembro de 2018

AMORES IMPOSSIVEIS

                     João amava Maria. Maria amava José. José não amava ninguém. João era pobre, filho de caminhoneiro. José era rico, filho de fazendeiro. Maria, bela e formosa, filha de contador de dinheiro. Naquela história de amores tão antagônicos, brotava algo tão sublime, que marcaria para sempre a vida de João. O cenário do que aqui se pretende narrar, era uma cidade bucólica, encravada no interior do Estado.
                                   Como sentimento não tem cabresto, João selou o seu destino, sem ter noção de onde iria parar. Por ser persistente, o coração enamorado daquele jovem, simples e sincero, vivia intensos momentos de sonhos e fantasias. Embriagado por desejos incontroláveis, ele divagava noite adentro, entre crônicas e poesias. Produziu belos hinos de amor, pensando na mulher amada. Mas ela, que nada!
                                   Mas se Maria amava José, o que seria da vida de João? A cidade pequena e acolhedora, nada podia saber do que se passava na alma do nosso protagonista. Não queria ele dar nenhuma pista de sua musa inspiradora. Era um sentimento intimo e só seu. Não pretendia causar transtorno a Maria, nem de noite e nem de dia. Bela e formosa, deveria embelezar o jardim das ilusões de João, sem despertar suspeita.
                                   Por que José não demonstrava carinho por Maria? Preocupado com a lavoura e o gado, José vivia outra realidade. Rodeado de amigos e bajuladores, buscava outros prazeres, longe dos braços, do cheiro e do calor de Maria. Mesmo assim, ela se derretia de amores por José, amigo inseparável de João. Maria ostentava beleza, simpatia e roupas de grife. José pouco se importava com a posse que tinha. João, perdido na sua timidez, preferia falar de amores impossíveis, em seus versos de rimas ricas ou pobres.
                                   A cidade de vida simples fez de João um homem simples. Foi naquela toada, que aprendeu com humildade, aceitar os desígnios de Deus. Se os olhos de Maria admiravam outro varão, nada restava a João, senão abrandar o seu próprio coração. E foi assim, aos poucos, que ele aprendeu a conviver com resignação, as longas decepções amorosas. Percebeu que o coração tem lá suas razões, que a própria razão desconhece. Se ela não o amava, restava apenas uma prece amena.
                                   Embora soubesse que José ocupava o coração de Maria, ele (João) tinha um carinho e um respeito imenso pelo amigo. Sabia que, um dia, o destino haveria de dar um epílogo àquela história, que nem mesmo havia começado. Havia tantas Marias, que transitavam formosas para lá e para cá, pelos jardins floridos da imaginação de João. Mas por que foi se engraçar logo por Maria, filha do contador de dinheiro? Deveria ter se apeado bem cedo, daquele romance impossível, antes que pudesse se machucar ao primeiro galope.
                                   Na escola, quando os amigos de João, o viam tristonho, puxavam-no de lado, para bisbilhotarem sobre o que se passava com ele. João quieto e moribundo, nada dizia, apenas resmungava: “Um dia, tudo isso passa”. Maria vai embora, ganhará asas e fará morada em outro coração. João, por sua vez, vai amadurecer e perder a timidez e, quem sabe, conquistar outra princesa, com a mesma beleza dela. E, José que ficou alheio a tudo isso, irá cuidar dos seus bens por ali ou partirá para o pantanal, no primeiro trem?   
                                   Mas quem, em sã consciência, nunca teve uma queda pelo sorriso e olhar sensual de uma cabrocha tão meiga e tão bela? Não importava quem era ela. Se se vestia roupa de grife ou de chita, pobre ou rica, não fazia diferença. O que tinha peso para o adolescente apaixonado, na realidade, era ter sido ela a escolhida, dentre tantas. O destino não traça o mapa do sentimento alheio, apenas mostra o caminho, o meio de se buscar a felicidade. Mas Maria havia se enamorado de José e não de João. Triste canção, sem rima e sem enredo. Por que aquela história de amor tão puro e tão belo haveria de perecer tão cedo?
                                   Não tenha medo, meu amigo, pois vou te contar um segredo. Tudo isso é apenas o enredo de uma história de amores impossíveis, ocorrido na cidade da nossa imaginação. Nada mais!


Peruíbe SP. 24 de novembro de 2018

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O BERÇO


                                   “A educação vem do berço”. Por centenas de vezes, ouvia essa frase dos meus pais ou dos meus professores. Por isso, sempre acreditei que a educação, brota no seio da família, com a responsabilidade dos pais. O berço representa o início da vida, onde somos acolhidos com proteção e carinho. Ali, ao alcance dos olhos de nossos pais, despertamos para a vida e para o mundo.

                                   Sempre fui apegado às pequenas coisas, as quais, em sua simplicidade, traziam dentro de si, uma simbologia. Ainda na tenra infância, sabia que aquilo marcaria para sempre o meu destino, como se fosse um ferrão. Eu ficava horas e horas, comtemplando os sinais da natureza, o encanto dos animais, os trejeitos das pessoas, a beleza das melodias, as entrelinhas de um verso e por aí se vai.

                                   Creio que as crianças da minha época, viam-me como um rebelde, louco ou ermitão. Em razão da transitoriedade da vida, queria viver intensamente cada momento e deixar fotografado na memória, tudo que entendia ser precioso para a minha vida tão efêmera e tão frágil. Por isso, dentre as minhas preciosidades, não foge de mim, a imagem do berço.

                                   Num canto do quarto, lá estava ele. Enquanto ele me acolhia, em meio ao lençol macio, minha mãe velava pelo meu sono infantil. Uma luz tênue afugentava os espectros da noite e permitia que minha mãe não se descuidasse de mim. Uma mamadeira, um chá de camomila e um chocalho eram partes dos cuidados maternos. Assim, por muito tempo, senti-me acariciado e protegido. Um dia, eu ganharia asas e o berço seria apenas um quadro pendurado na parede envelhecida da memória. Pendurado, mas não esquecido.

                                   Quando ganhei força nos braços e nas pernas, atrevi-me a agarrar em suas grades firmes e acolhedoras. De longe, minha mãe observava os primeiros movimentos de alguém, cujo destino, sabia ela, era desbravar um mundo longínquo e misterioso. O limite do berço ensinou-me a ter disciplina e obediência, mas, ao mesmo tempo, lutar pelo sonho de transpor barreiras inimagináveis. Enquanto ele fez parte do meu mundo infantil, aprendi ser paciente e, ao mesmo tempo, perseverante.

                                   Tenho para mim, que ali dormitava o sentido da frase: “A educação vem do berço”. Ali aprendi que tudo tinha o seu tempo... tempo de dormir, de mamar, de sonhar, de andar, de obedecer, de aprender, de acreditar na vida, de esperar a morte e de dar um tempo para tudo. Foi ali, ao lado dele, velando pelo meu sono, que meus pais me educaram para a vida, que se avizinhava. O berço ensinou-me a não me apartar do amor e da fé.

                                   Aquele berço, por vontade do destino, abrigou todos os meus irmãos, com o mesmo carinho e paciência. Não bastasse isso, duas sobrinhas, filhas do meu irmão caçula, buscaram nele o mesmo amor. Lá estava ele, a derramar afago a todos da minha linhagem. Nunca recusou o calor do seu colchão, o beijo do seu lençol e nem a proteção de suas grades. Os seus pés firmes, sustentou todos os sonhos de minha família. O tempo passou, mas ele nunca se arredou de mim. Por isso, permanece vivo na minha memória.

                                   Envelheci, com o passar dos anos, mas ele continua firme, esperando a chegada do filho da minha sobrinha. Lá num canto do quarto, está ele de braços aberto e muito ansioso, pela chegada de mais uma vida. Ele cuidará de um anjo, assim como cuidou de mim, o primogênito da família. Ele saberá cuidar e educar daquele que, com suas asas brancas, simbolizando a pureza, pousará no lar.  

                                   Tenho pelo berço, um grande apreço. Mas um dia, quando o berço já carcomido pelo tempo, não tiver mais forças para abrigar os nossos sonhos, vou rezar um terço, para ele descansar em paz.

 
Peruíbe SP, 19 de novembro de 2018

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

VELHO VIADUTO

Um viaduto
Velho e cansado
Deu um susto
No povo apressado.
Num ponto cedeu
Causando medo
Oh, meu Deus!
Ainda bem cedo.
Na grande cidade
A veia interrompida
Deixou a vaidade
E contemplou a vida.
A via expressa
Passou para a lateral
E viu que a pressa
Faz tanto mal.
Um viaduto
Velho e abandonado
Ficou mudo
Agora é passado.

Peruíbe SP, 16 de novembro de 2018.


sábado, 3 de novembro de 2018

AVENTURAS DO CIDO BOBO

                                            Ele caminhava para lá e para cá, pelas ruas silenciosas da minha cidade natal. Por não ter compromisso com a vida e com o mundo, percorria tranquilamente todos os lugares e cruzava as esquinas do presente, sem os cuidados necessários. À época, tinha a mesma idade que eu e, por isso, compartilhávamos das coisas inocentes da infância. Ele, ao seu modo, levava uma vida bem mais simples do que eu e do meu circulo de amigos. E foi aos poucos, que pude entender que era patrimônio do lugarejo.
                                   Não tinha sobrenome estrangeiro e a família não gozava de posses, razão pela qual não era cortejado pelos demais moradores, inclusive, os mais abastados. Enquanto alguns meninos e meninas desfilavam suas ostentações, representadas por roupas, casas suntuosas e carrões do ano, ele exibia apenas a sua simplicidade no andar e no falar. Lembro-me que ele ficava longas horas, parado defronte um bar, armazém ou loja de armarinho.  Permanecia estático, até ser escorraçado por um comerciante incomodado, com não sei o quê.
                                   Tinha por companheira, Bastiana – uma cachorrinha magricela e moribunda. Por coincidência, uma vira-lata e sem pedigree, que ora ele a arrastava presa a um cordão, ora levava debaixo do braço. Era a confidente, com quem desaguava a falar dos seus infortúnios e dos seus sonhos incompreendidos. Na maioria das vezes, balbuciava palavras inteligíveis, pois babava constantemente. Mas ela, a Bastiana, o compreendia através dos pequenos gestos. Em que pesava as más línguas, sobre o relacionamento dos dois, eu admirava sobremaneira aquela amizade. Ele estático na porta do comércio e ela ali, fiel companheira.
                                   Nos eventos da cidade, lá estava ele e a Bastiana. Não perdia uma festa junina, natalina, casamento, aniversário, batizado e até velório. Se não se fizesse presente, a festa não era festa e o velório, não era velório. Misturava-se aos convivas, onde dançava e comia até ficar empanzinado. Até o velório era menos fúnebre, com ele ali. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Quando não aparecia causava preocupação a todos os presentes. Alguém, discretamente, deixava o local e saia à procura dele e, quando chegava, todos comemoravam, e a festa tomava ares de festa.
                                   Nada o tirava do sério. Ou melhor, só quando algum moleque pirracento, caçoava com apelidos, que não me recordo mais. Aí eram pernas para quem te quero. Ele apanhava o que estava por perto, desde um pedaço de madeira, ferro ou tijolo e saia em desabalada carreira contra seu ofensor. Atirava o objeto a esmo, sem se preocupar se acertaria o seu alvo ou não. Quantas vezes vi, o objeto voar em direção a vitrine do bar do japa ou na testa do turco, dono da casa de armarinho. Era um deus nos acuda, era um salve-se quem puder.
                                   Naquele tempo, não havia o tal do bullyng, coisa de estrangeiro. Estou certo de que as pessoas o provocavam, mais para se divertir com as reações imprevistas, do que propriamente, por se tratar de uma pessoa com necessidades especiais. Posso afirmar que as crianças e as pessoas da minha época, não tinham maldade e, por isso, não menosprezam aquele menino tão carismático.
                                   Tinha por diversão, dentre elas, acompanhar o abate de gado, junto ao matadouro improvisado da cidade. Ali ficava horas, embriagado com a cena do abate e com o esquartejamento do animal. Com ele, outras crianças participavam do evento, enquanto os açougueiros separavam a carne nobre, das vísceras e de outras partes sem consumo. Certa feita, segundo um amigo de infância, alguém sem querer, prendeu o dedo dele, na porteira do curral. Aos berros, com o dedo esfacelado e sangrando, ele saiu em desabalada carreira, em busca de socorro.
                                   Mas, no desenrolar dessas mal traçadas linhas, quero lembrar-me dele, com seu jeito simples e alegre. Um ser humano de espírito puro e rico. Um menino que, como ninguém, representou a vida descompromissada de um povo lindo e ordeiro. Lembro que ele andava sempre sozinho, pois nunca vi acompanhado de um amiguinho, parente ou tutor. Para falar a verdade, não me lembro dos parentes e nem da casa, onde ele morava. Lembro-me dele e só dele. Isso me ensinou que ele pertencia ao mundo, ou melhor, ao folclore da nossa cidade.
                                   Hoje, passados todos esses anos, fico a me perguntar: “Será que alguém parou para conversar com ele. Saber dos seus sonhos e dos seus desejos. Teria sido um amor platônico, que o levou à loucura, assim como eu. Como o seu pensamento encarava o mundo e as pessoas à sua volta?”. Vem-me à mente “O Alienista” – obra literária do acadêmico Machado de Assis.  Tomo conhecimento de que o protagonista desta assertiva anda muito adoentado e sem o gozo da locomoção. Ele que tanto correu para lá e para cá, dando-nos alegria com seu jeito, desprovido de maldade, agora se escondeu num canto qualquer da minha terra natal.
                                   Cido Bobo? Bobo somos nós, por não termos vivenciados todas as doces loucuras da vida pacata, que a nossa terra natal, nos proporcionou. Ele foi um sábio e nós não sabíamos.

Peruíbe SP, 03 de novembro de 2018.

domingo, 14 de outubro de 2018

O REBU NO ALTAR

Adão de Souza Ribeiro

                                    “A fé move montanhas!”. Eis ai a máxima de todo segmento religioso. E assim, sob esse princípio sacrossanto, fui esculpido ao longo da vida. Nada abalava o espírito ou a alma, pois, tinha os pés firmes na esperança de um tempo e de um mundo melhor. A fé, nada mais é do que a esperança de que algo irá mudar o rumo de nossas vidas, para bem. Por essa razão, tenho por mim, que a fé é pessoal e intransferível. Ninguém sabe o tamanho da sua fé, só você.
                                    Como num toque de mágica, reporto-me às doces lembranças da infância, onde meus pais e as pessoas de suas idades discorriam longas orações. Usavam línguas inteligíveis, dentre elas, o latim. Para não se perderem, na quantidade do que deveriam repetir (rezas), usava um cordão com bolinhas, chamado de terço. Eu nada entendia ou não queria entender. Apenas sabia que era cansativo e enfadonho, professar a fé.
                                    Quando ganhei um pouco de idade, recebi por parte de meus pais, a sagrada missão de frequentar aulas de catecismo. Duas vezes por semana, lá estava eu e os coleguinhas, com um caderno e um lápis, rumo a uma das salas da igreja matriz. Recebia ensinamentos bíblicos e, como recompensa pela dedicação, ganhava um santinho, com orações no verso. Já ali, percebi que meu espírito inquieto, não me permitiria ir tão longe.
                                    Aos domingos, logo pela manhã, o badalar do sino, pendurado na torre de madeira, ao lado da igreja, anunciava aos fiéis, que logo iniciaria a missa, sob a batuta do padre septuagenário. Aos poucos, as casadas, as moçoilas, os barões e as crianças birrentas, chegavam à missa dominical. As mulheres com seus vestidos recatados e joias adornando o corpo, assim como, os homens com roupas impecavelmente passadas, faziam da praça matriz, uma passarela social de ostentação burguesa.
                                    O interior da igreja respirava um ar de divindade. Nas paredes laterais, quadros a óleo, representavam a via crucis do Salvador, rumo ao calvário. Em cada canto, imagens esculpidas em gesso vigiavam o comportamento dos fiéis mais exaltados. Os vitrais coloridos, com desenhos religiosos, refletiam luzes de alegria, amenizando aquele clima taciturno. No altar, confeccionado em mármore, descansavam castiçais dourados, com velas chamejantes; uma portinhola, onde era depositado o cálice sagrado e, abaixo, via-se o Cristo sepultado. A abóbada no alto e ao centro, dava um ar de superioridade ao local.
                                    Achava bonito e, ao mesmo tempo engraçado, o ritual. O vai e vem do vigário, dos coroinhas e das beatas, durante a homilia, prendia-me a atenção. As crianças vestidas de anjos, com suas túnicas, asas e auréolas brancas, transitando pelo altar, davam o ar da graça. Parecia que tudo era milimetricamente treinado. O silencio dos presentes, faziam com que a voz do vigário soasse em eco.
                                    Ele, o vigário, apascentava suas ovelhas, com carinho e rigor. Cuidava delas, com seu cajado austero e, por isso, a cidade rezava a sua cartilha. Nunca o vi despojado de sua batina preta, nem mesmo nos dias de sol a pino. Quando na rua, alguém passava por ele, inclinava a cabeça, em sinal de respeito. Era uma figura carismática e não dispensava um almoço, na casa dos fiéis.    
                                    As procissões, em homenagem à padroeira do lugarejo, eram revestidas de glamour e santidade. As manifestações religiosas tinham um brilho impar e o carimbo do vigário de quem tanto falo. As quermesses juninas, no entorno da matriz, serviam quitutes tradicionais. Eram embelezadas com danças e cantorias caipiras. Violeiros rasgavam acordes inesquecíveis em suas violas choronas. As crianças traquinas corriam para lá e para cá, enquanto os jovens casais flertavam e ensaiavam um beijo escondido dos pais.
                                    Mas um dia... um belo dia, repentinamente, o vigário evaporou-se e surgiu um padre novo. Diria novo, inclusive, na idade. A Diocese não deu explicações, nem mesmo sobre o paradeiro do nosso vigário septuagenário. Especulações diversas corriam de boca em boca. Teria ele morrido, aposentado ou fez algo que desagradou a Sua Santidade Papa? Não soube de nenhuma heresia cometida por ele, mesmo que às escondidas. Certo que a cidade provinciana estava de padre novo e de futuro incerto. A igreja ficou à deriva.
                                    A cidade nem tinha se refeito do trauma, quando a “Rádio Peão” (aquela que não deixa o povo na mão), noticiou que o padre novo teria arrancado todas as imagens da igreja, demolido o altar do Cristo sepultado, abolido a missa em latim, tirado os quadros da via crucis, demitido as beatas do rito religioso, calado a voz do sino, guardado no solo a cruz do calvário e repensado sobre as procissões centenárias. Um choque, ou melhor, uma descarga elétrica causou comoção e revoltou toda a população do vilarejo.
                                    Numa noite, lideradas pelas beatas Maria do Rosário, Maria das Dores e Maria do Perpétuo Socorro, a população se reuniu na praça matriz e, aos gritos de “Fora Judas”, começou um quebra-quebra incontrolável. Viraram e atearam fogo, no carro do padre. Danificaram todas as luzes e flores do jardim. O coreto foi abaixo. O povo com a cruz e pedaços de pau nas mãos, invadiu a igreja e coloram o padre para correr, isto é, expulsaram da cidade. Sem o altar, não teve onde esconder. Ao depararem com a Casa de Deus sem seus adereços, entraram em transe. Não era igreja, era apenas um salão vazio e abandonado. Uma das fiéis fervorosa, disse: “Isso é coisa do demônio”. Minha terra natal entrou em luto e a fé pediu extrema unção.     
                                    Naquela noite de tormenta, acionaram os soldados romanos, para conterem a fúria dos fiéis revoltosos. Várias Radio Patrulhas, foram deslocadas de outras cidades, para reforçarem a segurança daquele povo sem freio. O sacristão pediu férias, os coroinhas escafederam-se e as beatas, passavam dia e noite em vigília e em jejuns desenfreado. Até greve de sexo, rolou naqueles dias turbulentos. Os coronéis do mato, do alto de suas patentes, prometiam vingar a ousadia do padre sem juízo e sem miolo. As imagens foram distribuídas entre os fiéis, onde encontram amor e guarida. 
                                    Quebrou-se o ritmo de uma cidade provinciana. Por que mexer no que estava quieto? O povo era feliz naquela mesmice de sempre. Temiam qualquer mudança e excomungavam o tal progresso. Todos se conheciam e se respeitavam. Nada que abalasse a moral e os bons costumes, era aceito no lugarejo. A população transbordava de paz interior e de fé inabalável no Criador. Eram solidários, na alegria e na tristeza. Bastava observar as festas de casamento, batizado ou velórios, onde a população se fazia presente.
                                    Não me sai da memória, o dia em que os meus conterrâneos se revoltaram e transformaram a praça matriz, numa praça de guerra. Não sobrou pedra sobre pedra. Foi o maior rebu no altar. O resto, conto depois.

Peruíbe SP, 14 de outubro de 2018.

sábado, 22 de setembro de 2018

AMOR PLATONICO

                      Ao completar doze anos de idade, descobri que passei a padecer de uma doença contagiosa. Aquela notícia caiu feito bomba sobre mim. Senti o chão se abrir sob meus pés. Entrei em transe, gritei, chorei, rezei e pedi por socorro. Um vazio enorme, assenhorou-se da alma. O que seria da minha vida, a partir de então? De que valiam os caminhos já percorridos, os sonhos sonhados e as brincadeiras inocentes, com os amigos inseparáveis? Onde eu iria buscar alento e quem me daria colo? Perguntas, mil perguntas sem resposta e sem solução.
                               Até aquele dia, minha vida se resumia em peraltices inconsequentes. Preocupava-me apenas em brincar, estudar, comer, dormir, sonhar, nada mais. O amanhã era um mundo distante demais e o longe, um lugar que não existia. Achava engraçados os adultos perderem noites de sono, com problemas de somenos importância. Enquanto eles acordavam irritados e rabugentos, eu despertava alegre para o dia a dia. O mundo era um poema, escrito no caderno da felicidade. Até aquele dia, a minha infância se resumia em alegria.
                                     A notícia repentina caiu como uma ducha fria, sobre mim. Fiquei desacordado por espaço indefinido e só recobrei o sentido, quando um anjo divino, tocou meu rosto e me despertou para realidade. Ele sussurrou angelicalmente aos meus ouvidos, dizendo: “Você acaba de receber o sopro de um novo tempo”. Senti-me confortado por tamanha compreensão, porém, ainda sem nada entender. É certo que, em poucos segundos, a doença se alastrou por todo o corpo, até atingir fatalmente o coração.
                             Teria eu entrado na puberdade? Fiquei horas a fio, recordando das aulas de biologia, ciências, anatomia e fisiologia. E até das enfadonhas aulas de matemática, com seus cálculos exatos: se e somente se, a soma do quadrado do cateto é igual à hipotenusa. Mas o que a doença contagiosa, tinha a ver com os ensinamentos dos meus amados mestres? Estava contaminado e pronto. Tinha que aprender a lidar com aquilo, sem milongas. Senti-me prisioneiro de mim.
                                   Roguei a Deus, fé, força e sabedoria para seguir a nova estrada. Mas minha infância tão bela e tão pura, onde a guardaria? E quando a velhice batesse sorrateiramente à porta, o que eu diria aos sonhos infantis, trancafiados no baú da saudade? Mas não me saía da mente, que de repente, fui acometido de uma doença contagiosa. Relutei para aceitar, mas, aos poucos, fui absolvendo a ideia de que teria que vencer aquele novo desafio, custasse o que custasse.
                                   Ao analisar o diagnóstico, percebi que a doença contagiosa atendia pelo nome de cientifico AMOR e o que o agente vetor, era a menina mais linda e meiga da minha cidade natal. Fui picado pelo vírus da paixão e, depois de curto tempo de incubação, ele tomou conta da mente e do coração, até transforma-se naquela doença irreversível. Não é preciso dizer que, a partir daquele momento, vivi longos dias e anos de intensa agonia e sofrimento. Não havia remédio que abrandasse a febre e o desejo de estar perto ou tocar a menina mais desejada da infância.
                                   Meus olhos brilhavam e o coração ardia em chamas, quando a via caminhando para lá e para cá, quer fosse pelas ruas calmas ou pelo longo pátio da escola. Os cabelos tocados pelo vento tinham graça impar. O caminhar feminino despertava em mim, algo inexplicável. O corpo de pele branca e macia, simetricamente desenhado, era como nave, transportando-me para uma galáxia inatingível. Os lábios, de um leve tom avermelhado, davam um toque surreal ao rosto mais lindo que já se viu.
                                   A doença de que estava acometido, aos poucos foi se agravando. Dormia e acordava, pensando na mulher amada. De dia eu observava a menina da minha infância e, à noite, era ela quem me observava, durante meus devaneios. Na doce ilusão de realizar o meu sonho de amor, contentava apenas em vê-la e ouvir a sua voz.  Quando na escola, ela dançava em datas festivas, eu ia ao delírio emocional. Pouco importava se ela não desse crédito aos meus sentimentos. Deleitava-me em saber que, nos sonhos, ela viajava ao meu lado. Tocava o seu corpo ao meu e reclinava sua cabeça no meu ombro, buscando proteção.
                                   Chegou aos meus ouvidos, que ela tinha certa admiração pelo meu melhor amigo de carteira escolar. Entristeceu-me deveras. Seria em razão dos dotes, que a família dele possuía ou apenas para me provocar ciúmes?  Sei que a minha timidez, era fator preponderante, para não me ousar em declarar o grande amor que nutria por ela. Deveria ter sido mais atrevido e não fui, paciência. Hoje, tudo poderia ter sido diferente. Perdi o trem da história.
                                   O tempo passou, mas o amor platônico, não. O sentimento mais puro da alma permaneceu arraigado e encravado no coração. A estrada da nossa vida tomou rumos diferentes. Mas o pensamento daquele menino, de vida e espirito simples, continuou fiel ao amor e desejo que sempre nutriu pela menina mais bela da terra natal. Fiz de tudo para que ninguém descobrisse o quanto eu a amava, para não constrangê-la e, muito menos, para que eu não fosse alvo de chacotas. Coisas de minha timidez.
                                   A menina mais bela da minha infância cresceu, criou formas delineadas e voou. Casou, construiu um ninho, teve filhos e foi ser feliz. Acrescentou nome, doce coincidência. A tecnologia promoveu encontro virtual. Arrisco de longe, relembrar a candura do amor platônico, que tanto me contagiou e me lançou para o mundo do sonho e da fantasia. Foi por ela, que me enveredei pelo mundo da arte e da poesia. Se hoje a imortalizo nessas mal traçadas linhas é porque, já há muito tempo, foi imortalizada no meu coração.
                                   O amor é platônico, porque ele só existiu, no meu imaginário!


Peruíbe SP, 22 de setembro de 2018. 

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

SONHAR ALTO



            Repousa dentro de cada um de nós, um menino sonhador. E é por causa desse menino, que estamos com o olhar eternamente voltado para o futuro. Rogamos sempre, que ele nunca desperte e vague pelo mundo a esmo, deixando um vazio dentro de nós. O sonho dele nos fortalece e nos conforta. Cremos que a perseverança dele é o combustível, que nos impulsiona a evoluir intelectual e espiritualmente. A peraltice, algo inerente ao seu comportamento, torna a vida mais alegre e mais bela.
            Quando nasci, creio que o primeiro sopro de vida, foi dado a ele, o meu menino sonhador. Foi com ele, já habitando em mim, que aprendi a desenhar o mundo com traços de esperança. Então, é certo que esse espírito divagador, já faz parte do meu DNA. Um dia, aos onze anos, ainda amamentando no seio materno da minha terra natal, rabisquei o primeiro poema. Naquele momento descobri, que o meu destino estava traçado. Nunca mais me apartei do menino sonhador que habita em mim.
            Por culpa dele, já me vi como rei, presidente da república, astronauta, cientista, médico, jornalista, ator, caçador de esmeralda, Don Juan, general de brigada e por ai se vai. Nunca me deixei levar pelos pessimistas de plantão. O vírus da persistência sempre me contaminou. Abandonar aquilo que acredito, não fez parte do meu cardápio. Minha vida foi feita de luta e, por isso, não temo buscar o inatingível. “Vi uma estrela tão alta, vi uma estrela tão fria. Vi uma estrela luzindo, luzindo no fim do dia” – dizia o poeta Manoel Bandeira, em seu poema "A Estrela". Ali o poeta retratava a busca do sonho inatingível.
            Enquanto as crianças da minha infância caminhavam tranquilamente pelas ruas da terra natal, descompromissadas com o futuro, eu, equidistante de tudo de todos, sonhava um sonho transcendental. Creio ser essa a razão de acharem que eu vivia no “mundo da lua”. Aquele jeito largado fazia-me sentir estrangeiro, dentro do meu próprio mundo. Apegar às coisas materiais, nem pensar. O meu olhar estava sempre voltados para o cotidiano simples da minha cidade bucólica.
            À noite, ao observar o céu, sonhava desvendar os mistérios da constelação. Dormia abraçado à inconstância da alma e aos amores insondáveis do coração. Temia pela chegada inesperada dos fins dos tempos, por isso, sonhava em ser o salvador do mundo. Em suma, passei a minha vida inteira sonhando, ou melhor, sonho até hoje. Aprisionei o menino sonhador dentro de mim e, temeroso em perdê-lo, nunca permiti que ele espionasse a minha fraqueza, debruçada na janela da insegurança.
            Um sonho, sempre me perseguiu desde a infância. Pensei que iria partir para a mansão do desconhecido, sem antes realizá-lo. O que para muitos, faz parte da rotina, para mim, era algo imensurável. Quantas vezes, em divagações noturnas, desenhei o momento tão esperado. Ainda bem, que o menino sonhador nunca me abandonou e sempre me confortou nas angústias e na ansiedade de, um dia, poder realiza-lo. De vez em quando, perdia-me em felicidade, como se tivesse vivendo aquele instante único.
            O sonho de que falo, era poder viajar de avião. A gestação daquele sonho durou seis décadas. Comprei a passagem, com antecedência. Com ansiedade, preparei-me durante o dia. Na mala, coloquei a curiosidade e o medo, química perfeita, para quem esperou a vida inteira. À noite, já no aeroporto, cumpri toda a formalidade de embarque, isto é, exibi a passagem e os documentos pessoais, bem como, a mala na esteira de raios-X. Pessoas descontraídas, aguardando no portão de acesso ao embarque, como algo de cotidiano. Mas eu ali, nervoso e pensando como seria o meu embarque e o meu primeiro contato com a aeronave.
            De repente, vejo-me caminhando em direção à aeronave. De longe, eu via aquele monstro de aço, parado e estático. Parecia uma baleia gigantesca, louca para me engolir. Subi a escadaria e, num estante mágico, já estava no ventre dela. Sentei-me de forma comportada e deslumbrei-me com a imagem da grandiosidade interna e da quantidade de assentos. A tripulação organizando os passageiros e anunciando os itens de segurança. Pela minúscula janela, observei a movimentação da aeronave, posicionando para a decolagem.
            O ronco forte dos motores, após o anúncio do comandante, denunciava que iriamos ganhar as alturas. Assim, pude sentir a inclinação daquele pássaro e as luzes da cidade, sumindo aos poucos, até se transformarem em pontos luminosos, bem distantes. Por alguns instantes, viajei no tempo. Revi a minha infância, empinando pipa, que chamávamos de papagaio. Presa a uma linha, ela planava no céu e, agora, ali, eu planando no firmamento, preso o ventre daquele pássaro de aço.  Num ímpeto, veio à mente, um trecho da musica do cantor Belchior: “Foi por um medo de avião, que eu segurei pela primeira vez na sua mão”.
            Por ser noite, não vi toda a paisagem terrestre. Quando ganhou altitude, ultrapassando as nuvens, parecia estar parado. Nenhuma turbulência, nenhum solavanco, nada. As aeromoças, de belezas impares, esboçavam sorrisos profissionais, sem nenhum calor humano. Mas aquilo não tinha importância, pois, para mim, o sonho sendo realizado, tinha toda a nobreza do mundo. Vi que o menino sonhador, que nunca se apartou de mim, transbordava de felicidade. Alguns passageiros dormiam, outros liam revistas, outros com fones de ouvido e eu ali, atento a tudo.
            Reconfortado na poltrona, porém, sem se desgrudar da minúscula janela, voltei a ser criança. Era como se eu estive comendo um doce, com tanto prazer, que me lambuzava todo. Saboreava cada segundo. Mas quando estava me deliciando de tudo aquilo, veio o anuncio do comandante: “Estamos nos preparando para o pouso”. Perguntei a mim mesmo e ao menino sonhador: “Por que o sonho vai pousar tão rápido assim?”. O sonho de tão longos anos, não pode ser interrompido, de forma tão brusca.
            Percebi que aquele pássaro gigante, com longas asas de aço, levemente foi perdendo altitude. Não demorou em eu rever os pontos luminosos distante, parecendo que as cidades voltavam acenar para mim. Procurei na imensidão daquelas luzes distante, a cidade da minha infância, pois queria que ela visse a felicidade estampada no rosto do seu filho. Queria dividir com a cidade que me gerou, a certeza de que valeu a pena sonhar e esperar por longas décadas. Queria sussurrar aos ouvidos dela, dizendo que vale a pena sonhar e que ninguém pode interromper ou frustrar o sonho infantil.
            Nos instantes seguintes, aqueles pontos distantes, foram se aproximando e ganhando formas de cidade novamente. Do alto, as ruas iluminadas, pareciam artérias e o movimento de carros, o sangue que corriam por elas. Os prédios e casas foram ganhando volumes, alturas e formas, como se quisessem aproximar da minúscula janela, a fim de espionarem a alegria do menino sonhador.
            Acordei-me do sonho, quando a aeronave tocou o solo. Durante o voo, sentia-me maior que o mundo, maior que todos os sonhos. Mas já em terra firme, senti que o mundo é maior do que eu. Só não é maior do que os meus sonhos infantis. Desembarquei-me, levando comigo a mala repleta de felicidade. Deixei para trás, aquela  aeronave que tão gentilmente, deu-me de presente o direito de fantasiar as minhas ilusões. O homem só se realiza por completo, quando dá asas aos seus sonhos.
            Deixa o menino que mora dentro de ti voar nas asas da ilusão. Que os sonhos dele ganhem as alturas. Deixa o menino que mora dentro de ti sonhar alto, mais alto do que ele possa imaginar. Deixa os sonhos dele, voar nas asas da cotovia. O menino dos meus sonhos tem o direito de sonhar alto.

Peruíbe SP, 16 de setembro de 2018.

sábado, 25 de agosto de 2018

OS TRES PATETAS ou A TRILOGIA DA AMIZADE

                         Sempre fui apegado a lugares e pessoas. Gosto de estar rodeado de gente e de descobrir o mundo ao meu derredor. Embora a solidão seja familiar para mim, pois é nela que busco energia mental e espiritual, não abro mão de um bate-papo inteligente e descontraído. Um barzinho academia, com uma música suave ao fundo, uma bebida e uma porção de tira-gosto, nada melhor para uma longa conversa.
                                   Desde a infância, trago essa característica. Passava o dia inteiro, brincando pelas ruas descalças da minha cidade bucólica. Outras vezes, ficava na casa de amigos, assistindo televisão, no tempo em que a imagem era preta e branca. E os pais, muito solícitos, nos serviam refrigerantes e guloseimas. Até interagiam conosco, nas nossas peraltices. Eram brincadeiras sadias e, por isso, marcaram para vida toda.
                                   Guardo no baú da memória, relíquias de um tempo que não volta mais. Lá estão os saudosos professores; os amigos que sentavam em carteira dupla; as algazarras na hora do recreio; as reuniões na casa dos amigos, para resolver tarefas escolares; briguinhas por causa de bolinhas de gude e por ai se vai. Esses fragmentos da vida estão encravados na memória, onde nenhuma intempérie há de apagá-los. “Oh que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais!”, dizia o poeta Casemiro de Abreu, em seu poema “Os meus oito anos”.
                                   Não posso esquecer-me do primeiro amor platônico. Lá ficava eu, debruçado na janela do imaginário, sonhando com aquela menina linda. De longe, observava o seu caminhar, como quem baila ao vento. O sorriso adocicado e o olhar tão meigo, despertavam em mim, os primeiros sentimentos de carinho, que me arrastariam para a vida inteira. Não havia fêmea mais divina do que ela, por isso, a coloquei no altar da minha felicidade. A timidez não me permitia aproximar-se. Nisso residia a magia do meu amor.
                                   O tempo envelhece a memória e, maldosamente, rouba-nos o nome e a imagem de amigos tão preciosos da nossa infância. Alguns fatos pitorescos, daqueles tempos longínquos, persistem em aparecer aqui e acolá, como nuvens desgastadas e esparsas, forçando desenhos indecifráveis, no céu da nossa inocência. Lágrimas brotam num canto qualquer do olho, lastimando o que um dia foi realidade. Não há como controlar o saudosismo, que vem do fundo da alma.
                                   Um dia desses, graças à tecnologia do mundo moderno, encontrei um amigo disperso, que há muito tempo, o progresso afastou de mim. Por telefone, conversamos horas a fio. Era uma sede enorme e queríamos beber toda a água da saudade, contida na tina da amizade sincera. Entre um gole e outro daquela água tão saborosa, recordamos, prazerosamente, das nossas peraltices. Aquele velho amigo e eu, só nos completávamos quanto estávamos na companhia do terceiro amigo inseparável.
                                   Entre uma conversa e outra, riamos demasiadamente, de soluçar. De gota em gota, surgiam nomes de colegas esquecidos na memória; lugares da nossa terra natal; pessoas que se foram antes do combinado; namoricos de amigos e amigas em comum; de festas tradicionais; o pároco pedilão e comilão; o jardim bem cuidado da praça matriz; o cinema carcomido pelo tempo; os desfiles de sete de setembro; as folias de reis; os banhos de cachoeira; as arapucas, para apanhar passarinho. Meu Deus, quanta saudade!
                                   E os apelidos carinhosos, que colocávamos nos amigos e amigas. O amigo me fez recordar, que eu era mestre nisso. Até hoje tenho aquela mania, de batizar amigos com codinomes engraçados. Com o passar do tempo e de tanto repetir, ficava incorporado na pessoa. Não vou aqui denominar todos os que foram agraciados com apelidos, pois posso ser injusto e esquecer-se de alguém. Mas, à medida que íamos lembrando, riamos loucamente.
                                   Mas voltando aos tempos de outrora, éramos três amigos inseparáveis. Estávamos ligados eternamente, pelo cordão umbilical da inocência infantil. A nossa terra natal, tão acolhedora, gerou-nos em seu ventre, e nos ensinou o valor imensurável da amizade. Os nossos olhos nunca se voltaram para as diferenças sociais, mas, sim, fitavam para a beleza do amor fraterno e na certeza de que aquele elo não se romperia nunca.
                                   A trilogia da amizade era formada por três meninos felizes e peraltas, a saber: José Antônio Lopes – “Baiu”, o José Carlos de Souza – “Santo” e eu. Quando nos enveredávamos pelas peraltices inconsequentes da infância, parecíamos três patetas, a nos deliciamos com aquilo que fazíamos. De vez em quando, éramos repreendidos pelos nossos pais ou, então, pelo diretor e pelos professores. Depois do puxão de orelhas, riamos até não aguentar mais. Nossa arte virava noticiais por dias a fio.
                                   Hoje, deitado no colo da lembrança, choro copiosamente, ao saber que o tempo cruel, levou para muito distante, a inocência da nossa infância. Ao conversar longamente, via Embratel, com o amigo que foi para o sul, busquei amenizar a tristeza e a saudade. No vídeo-tape da minha memória, passaram filmes gravados na película da nossa história, cujo cenário é a nossa querida Guaimbê SP. Da trilogia, tão pura e tão bela, um anda muito doente, o outro se mudou para um Estado do sul e eu continuo por aqui, contando longas histórias de aventuras, de amor e de saudade.
                                   “Como são belos os dias do despertar da existência! Respira a alma inocência. Como perfumes a flor!” – dizia o poeta Casemiro de Abreu, em seu poema “Meus oito anos”.
Peruíbe SP, 25 de agosto de 2018