domingo, 26 de maio de 2019

MINHA DOCE TANAJRURA

Adão de Souza Ribeiro

                                   Quem na cidade, não conhecia Jurema, podia-se dizer que não sabia o que era uma beleza estonteante. Tudo nela exalava um cheiro de admiração e pecado. O jeito glamoroso de andar, com seu requebro de fazer homem dar com a cara no poste e de mulher casada se torcer de ciúmes, era algo impressionante. Era Jurema por os pés na rua e o comércio parava em sinal de respeito. Até o padre suava frio, por baixo da batina. Dizia ele: “Isso é uma heresia, um convite à penitência”. Duzentos pais-nossos e trezentas ave-marias, no mínimo.
                                   Dizem as más línguas, que por causa dela, muitos casamentos deram com o burro na água. Contam que as puritanas e as beatas planejavam fazer uma passeata de protestos contra Jurema. Não vingou, porque até o padre Joseph foi contra. Morena, dos cabelos cacheados, seios fartos, pernas torneadas, cinturinha de pilão e glúteos avantajados, dispensava elogios e atiçava a fantasias dos marmanjos do lugarejo. Falavam-se glúteos e não bunda, porque para os arcaicos, aquilo era uma afronta a moral e aos bons costumes. Mas que eles ficavam fascinados, isso ficava.
                                   Desde muito pequena, em razão dos dotes e predicados que possuía, foi que Jurema recebeu carinhosamente o codinome de “Tanajura”. Lutou e chegou a fazer promessa à Santa Luzia, para que os varões não a vissem apenas pelo tamanho dos glúteos ou bundas (como preferirem), mas de nada adiantou. Tal adjetivo ficou encravado na alma, ou melhor, no corpo daquela prenda. “Aceita que dói menos”, aconselhou uma velha marafona e foi o que ela fez, com o passar do tempo. Não demorou muito, para tornar-se referência daquela cidade interiorana.
                                   Ao frequentar eventos sociais, causava dor de cotovelo em algumas mulheres e admiração em outras. Sabia vestir-se com elegância, sem ser vulgar. Nem precisava, pois qualquer roupa lhe caia bem. Aquela parte protuberante do corpo ora causava alegria e ora preocupação. Aos poucos, aprendeu tirar dividendos daquilo. Tímida por natureza recusou o titulo de rainha do lugar. Tinha uma áurea natural e nem precisa usar a bunda para brilhar. Quem brilha com a bunda é vagalume.
                                   Tudo isso se passou na minha tenra infância. Não entendia o porquê de Jurema ser tão cortejada pelos marmanjos e odiada pelas puritanas e beatas. O meu mundo era de brincadeiras infantis. Observava nas meninas, o jeito gostoso de correr para lá e para cá, assim como eu. Não sabia o que era desejo ou fantasia, por isso, eu não sofria desses males, atinentes aos adultos. Um dia, com certeza, eu percorreria os caminhos da sedução e do desejo e, com certeza, iria cair nas garras de uma fêmea, tanajura ou não. Por isso, não queria sofrer por antecipação.
                                   Como sempre fui esfomeado pelo conhecimento, busquei saber o que era tanajura. Ao folhear o “Aurélio”, descobri que se tratava de uma fêmea da formiga saúva, sendo negra, gorda e voadora. Em tupi-guarani significa “formiga que se come”. Os adeptos daquela iguaria, diziam que podiam ser consumidas ao natural ou com farofa. Também, podiam ser torradas com água e sal, sendo consumidas com bebidas fermentadas ou destiladas. “Cai, cai tanajura que é tempo de gordura”. Para fazer baixar o voo, a meninada canta: “Caí, cai, tanajura, que o teu pai tá na gordura”.
                                   Pensar que Jurema, a nossa tanajura do lugar, poderia ser comida, causava-me tristeza e dó. Saber que, quando menos se esperasse, ela estaria sendo fritada e degustada com uma dose de cerveja ou de cachaça, no bar do “seo” Shaolim, era de arranhar a nossa amizade. Talvez, fosse por isso, que ela passava a maior parte do tempo, trancafiada em casa, com medo dos predadores famintos de desejos e de fantasias.
                                   O tempo passou... passou o tempo. Mas nunca saiu do meu pensamento, a imagem de Jurema, a linda tanajura, desfilando garbosamente pelas ruas e praças da minha terra natal. Era algo lindo de se ver e de admirar. De vez quando, nos meses de dezembro a fevereiro, ainda olho para o céu, querendo ver a revoada de tanajuras. E que sejam as mesmas da minha infância.
                                   Pensava cá com meus botões: “Um dia, quando eu me tornasse adúltero, ou melhor, adulto ganharia uma linda e doce tanajura? Jura!”.


Peruíbe SP, 26 de maio de 2019.

terça-feira, 21 de maio de 2019

A FELICIDADE PEDE CARONA

Adão de Souza Ribeiro

                                               Não me venha com essa conversa de que tudo na vida tem limite. Pode ter para você, mas não para mim. Isso é coisa de filósofo, psicólogo, psiquiatra ou para quem não sabe o que é viver. Quero distância de quem vive de regras pré-estabelecidas e das coisas exatas, pois, quem gosta disso é matemática. Gosto de humanas, ou melhor, das coisas da vida humana. Sempre tive atração pela liberdade e pela leveza da alma. Quando eu queria sonhar, sonhava mais alto que minha imaginação. Sempre fui ousado na vida.
                                   Ainda na tenra infância, se minha mãe não gritasse: “Já pra dentro de casa, menino!”, eu brincava noite adentro com meus irmãos e os coleguinhas da Rua Rui Barbosa. Quantas noites, enquanto minha família dormia, eu me debruçava em encantadoras leituras de romances e sobre a língua portuguesa. De repente, ouvia a voz autoritária de meu pai, dizendo: “Desliga essa luz a vai dormir, já é tarde”. Depois vem me dizer que tudo tem limite. Nem mesmo a minha sede de saber, tinha limite. Imagina o resto.
                                   Penso que os cientistas só conseguiram mudar o rumo das pessoas e da humanidade, com suas descobertas inimagináveis, porque foram além dos seus limites. Tenho um apreço muito grande, pelos que sabem lutar pelos seus ideais. Admiro quem, rompe as barreiras do medo e do preconceito, em busca da plena felicidade. Viver vale a pena, quando a luta não é pequena. E se for pelos carinhos de uma loira, ruiva ou morena, meu Deus, quanto dilema!
                                   Para não perder esse jeito observador do comportamento humano, ficava a observar a juventude do meu tempo, embora eu ainda fosse um adolescente, passando pela soleira da puberdade. Aos sábados à noite, o meu tio em companhia de outros amigos, se arrumava todo, colocava uma “beca” muito engomada, passava água de cheiro no corpo, brilhantina no cabelo, sapato impecavelmente engraxado, um chapéu de cowboy, para realçar o visual e rumavam para os bailes, nas fazendas que circundavam a cidade.
                                   Como as festas eram distantes, isto é, a mais de cinco ou dez quilômetros do lugarejo e, ainda, sendo um grupo enorme de festeiros, que mais parecia uma boiada, todos viajavam na carroceira de caminhão. Quem via de longe, mais parecia um “pau-de-arara”, vindo das bandas do nordeste. Batucada, o motorista sem habilitação, saia apanhando as pessoas de casa em casa e, completada a carga, rumava, para o destino almejado, tendo como guia a lua resplandecente.
                                   Durante o trajeto, por estrada de terra batida e cheia de areia, lá ia a turma da bagunça. A carroceria balançava mais que bambu em noite de ventania. Eles cantavam, riam de tudo e davam goles no gargalo das garrafas de batidas, feitas com capricho, no bar do seu Shaolim. As luzes da cidade e as árvores à beira das cercas de arame farpado ficavam para trás, dando adeus aquele grupo de jovens felizes. Uma coruja agourenta, sentada no mourão da porteira, entoava uma canção esquisita. Algumas cotias atravessam a estrada, rumo ao banhado. Pirilampos, feitos estrelas reluzentes, enfeitam o caminho de quem só queria diversão... só queria ser feliz.
                                   No balanço do coqueiro, ou melhor, da carroceria, um dos ocupantes desequilibrou e caiu na estrada, mas ninguém percebeu, pois bebiam e se divertiam em demasia. Um quilômetro após a queda deu por falta de “Pé de Pano”. Na noite escura e sem farolete, voltam a procura do amigo, assim nasceu a história do filme, “Esqueceram de mim” estrelado pelo nosso ator caipira, o “Pé de Pano”. Tomara que a alegria na carroceira do Chrysler fosse uma extensão dos bailes no terreirão da fazenda.
                                   Já chegando à fazenda, local do furdunço, os rapagões desciam meio tontos, não só da cachaça, mas, também, do saculejo da viagem. O corpo todo empoeirado, tirava o glamour de quem se preparou tanto para o momento. Mas nada disso tinha importância para eles. Sabiam que se deliciariam de muita música ao som do acordeão, da zabumba, do pandeiro e do triangulo. As moçoilas, caipirinhas da roça, até então tímidas, alvoraçavam-se todas, com a chegada daquele bando, com fome de chamego e do cheiro de fêmea. A noite ia ser muito pequena, para tanto beijo e agarra-agarra. Naquele momento, o limite entre a sanidade e a loucura, ficou para trás.
                                   Naquele tempo, ninguém ia armado, vislumbrando briga de morte. No máximo, uns tapas e empurrões, pela disputa de um rabo-de-saia ou um exagero na dose de um conhaque ou um rabo-de-galo.  O grupo vindo da cidade dançava até suar a camisa. Riam, cantavam, bebiam e se divertiam até fraquejar as pernas. De vez em quando, uma velha assanhada, um maracujá de gaveta, se engraçava com um deles, aí então, o coitado virava a bola da vez e o motivo de caçoada pela semana inteira. Lá pelas cinco horas da manhã, Batucada – motorista sem habilitação -, anunciava a hora da partida. A romaria de volta, era prenúncio de tortura e muito saculejo, na carroceria do velho Chrysler.
                                   Pela estrada, lembrariam que ficou para trás, uma noite de muita diversão. O cheiro das cabrochas ainda estava grudado no corpo suado de cada um deles, com gosto de quero mais. Para que “Pé de Pano”, não caísse de novo, amarram uma corda nele. Na volta, por ser dia claro, não haveria o cortejo de pirilampos, o canto da coruja e nem a correia das cotias, rumo ao banhado. Os jovens, numa felicidade sem limite, avistavam a cidade vinda ao encontro. Era uma recepção àquele bando de festeiro.  
                                   Ao recordar daquelas cenas inusitadas, onde jovens embriagados de prazer viajavam na carroceria do velho Chrysler, rumo aos bailes de fazenda, lembro-me da felicidade pegando carona, num tempo que não volta mais.


Peruíbe SP, 22 de maio de 2019.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

O DEFUNTO ERRADO

Adão de Souza Ribeiro

                                   Se tiver uma coisa, que a maioria das pessoas não gosta e me incluo entre elas, é frequentar velório. Ficar sentado horas a fio, olhando o entra e sai de pessoas consternadas e chorosas, causa-me muito enfado. Abraço apertado e palavras de conforto, ao pé do ouvido, cumprindo um ritual sangrado, que vem dos primórdios tempos, esteja certo de que não é comigo. A noite parece interminável e não há cafezinho que consiga afugentar o sono.
                                   Deitado numa esquife, na sala fúnebre, lá está o de cujus, num sono profundo e nem roncar, ele ronca. Na cabeceira, uma cruz dourada, do Cristo crucificado. Ao lado, coroas de flores, com faixas alusivas à importância do falecido, ainda em vida. Lembrança saudosa dos colegas de trabalho, do time de várzea, dos tempos de coroinha, dos parceiros de pescaria e de tantas outras atividades, que preenchia a agenda de quem, agora, não é mais.
                                   A dona encrenca, pessoa de fibra que aguentou por longos anos, o mau humor daquele asqueroso e que agora virou santo, sentada ora ao lado, ora aos pés do varão, recebe a condolência de pessoas sinceras ou não. Uns apenas dão o ar da graça, ficam ali por alguns minutos e depois vão embora. E assim, aquela romaria segue noite à dentro. Uns rasgam elogios, procurando tornar menos dolorosa a partida e outros, ficam calados esperando o início do cortejo, rumo ao campo santo.
                                   Como já disse, nunca gostei desses encontros sociais. Prefiro uma noite no boteco do seu Shaolin ou no forró de pé de serra, no Clube da Oitava Idade. Sei que é o caminho de todos nós, mas prefiro cortar volta e ir pelos atalhos, tomar outro rumo. Na cozinha improvisada, as pessoas tomam um chazinho de mate-leão, uma bolacha salgada, uma pitada de fumo de corda, enquanto conversam banalidades, a fim de quebrarem aquele clima taciturno. E o de cujus, ali duro e inerte, sem qualquer reação. Louco para tomar uma branquinha e prosear com os velhos amigos de lorotas.
                                   Há casos em que os herdeiros já se estranham ali, de olho no que a pessoa construiu ao longo dos anos, a custa de muito suor e lágrima. Mas também, há casos em que os herdeiros lamentam a partida de quem, ao longo da vida, serviu de exemplo à família e a sociedade. Se for artista, amigos cantam canções imortais, composta por ele. Por outro lado, se foi pastor, os irmãos da fé, ora à noite inteira, para que o arrebatamento seja o menos doloroso possível.
                                   A noite transcorria na mais santa paz, quando menos se esperava, uma mulher aos prantos e toda descontrolada, adentra a sala fúnebre e debruça sobre o ataúde. Chora de soluçar e balbucia palavras desconexas, como que revoltada pela partida inesperada daquela pessoa a quem tanto admirava e amava. As pessoas, tomadas de surpresa, nada entendiam. Elas temiam que aquele homem inerte e sem reação, fosse ao chão, pois a desconhecida jogara todo o peso de seu corpo sobre ele. Ninguém ousava interromper a expressão de sentimento daquela mulher.
                                   Notava-se no semblante da viúva, que havia milhões de interrogações na mente. Será que aquele infeliz tinha uma amante, tão secreta que só foi se revelar naquele momento tão doloroso? De que planeta surgira àquela concorrente... aquela rival? Os homens achavam engraçado, mas as mulheres solidárias à viúva queriam agir e botar a intrusa para correr. Que fosse chorar o marido dela e não aquele que estava ali, pronto para a viagem derradeira.
                                   Aquele clima, até então, tranquilo e respeitoso fora, aos poucos, tornando-se pesado e preocupante. Cria-se que nem mesmo o de cujus estava entendo que acontecia ali. Ele louco de raiva e se pudesse dizer alguma coisa, diria: “Quem é você?”. Sabia a pobre viúva, que aquele asqueroso já fora muito mulherengo, mas como os terreiros onde costuma ciscar, eram distantes, não conhecia as galinhas com quem ele se aninhava. Se ela pudesse reagir, pode estar certo de que dona encrenca iria dar uma sova, até matar ele. Tinha vontade de esganar o pescoço do infeliz. Como pode fazer a esposa passar tanta humilhação.
                                   Mas como nem tudo na vida é eterno, nem mesmo os momentos de intensa consternação e humilhação, tudo ficou esclarecido. A mulher estranha era amante inveterada de uma cerveja e de uma marvada. Havia tomado tudo o que tinha de direito, antes de ir para o velório de um ex-namorado, que morrera de cirrose. Como havia várias salas naquele velório, onde outras pessoas velavam os seus entes queridos, a mulher adentrou e desesperada e foi chorar o defunto errado.
                                   No final da história, foi desfeito o erro e enterro transcorreu em paz. A viúva e a intrusa se entenderam e o de cujus partiu para sua viagem derradeira. E pensa que o contador de história, parou de contar suas asneiras? A conversa não morre aqui. Espera para ver!


Peruíbe SP, 18 de maio de 2019.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

HEROÍNA ANÔNIMA

Adão de Souza Ribeiro

                                   Um corpo franzino, estatura mediana, cabelos crespos, rosto delicado, olhos miúdos, mãos carinhosas e andar cadenciado, eis, aí, os traços de uma heroína anônima. Transita garbosamente pela casa, pelo quintal e pelo mundo, sem ser notada. Não ostenta qualquer tipo de adereço, a não ser o divino orgulho de ser mãe. Diante de tanto sacrifício, nada pede em troca; mas em troca do olhar angelical do filho no berço, se entrega por completa.
                                   Por quantas madrugadas frias, enquanto todos dormiam, inclusive, o esposo, ela levantava para cobrir os filhos ou dar remédios caseiros, para curar doenças infantis. Velava o sono, daqueles que foram gerados em seu ventre, para que os espectros da noite, não os amedrontassem ou espantassem os seus sonhos angelicais. Nada havia de mais belo, do que vê-la sentada à beira da cama, com o terço na mão, em longas orações repetitivas, clamando por cura e por paz, daqueles que tanto ama. Mãe é algo que não se descreve, apenas sente.
                                   Antes do alvorecer lá esta ela a preparar o café matinal. Acorda os filhos com delicadeza e os prepara para irem ao grupo escolar. Orgulha de vê-los uniformizados e, do portão de madeira, cuida com seus olhos, até eles desparecerem na esquina. Enquanto eles estão na escola, ela cuida dos afazeres domésticos, para que, quando ao chegarem famintos, os pratos estejam prontos à mesa.
                                   Conhece na palma da mão, os costumes e os gostos de cada um. Por conhecê-los amiúde, lida tranquilamente com suas personalidades. Sabe acariciar, quando precisam de chamego, mas, também, não poupa puxões de orelhas, quando fazem por merecer, diante de uma traquinagem ou malcriação. Sabe corrigir na medida certa. Lança mão de um ramo de margoso. É correção e não tortura. Em futuros não muito distantes, eles guardarão doces lembranças do ensinamento com amor.
                                   Uma heroína, num corpo mirrado, mas que tem a força e a coragem de uma leoa, quando precisa defender seus filhotes. Luta contra os monstros, os quais, fora do seu território, queiram devorar ou subestimar o valor que os filhos têm, no seu coração materno. Quantas vezes surpreendi aquela mulher calada num canto, preocupada com o futuro de seus rebentos. Outras vezes, chorando por saber que um dia, por força da natureza irá partir para a mansão do amanhã e terá que deixa-los à mercê da sorte.
                                   Sem perceber que o tempo foge pelos dedos, ela se anula em busca do bem estar de cada um deles. O peso da responsabilidade materna curava-lhe as costas e abrevia os seus anos de vida. Mas nada disso importa e nem a amedronta. Para ela, a eternidade não se conta na folhinha pendurada na parede, mas, sim, na honra de vê-los crescidos e formados doutores. Saber que lhes darão netos, bisnetos e tataranetos.
                                   Mãe é algo que não se descreve, se sente. No percurso íngreme de sua missão, pode ser surpreendida por doenças traiçoeiras, tais como, Alzheimer, Parkinson, esclerose múltipla e tantos outros males impiedosos. E então, sem percebermos, lá estamos nós a cuidar dela, com todo carinho, como nos cuidou por longos e longos anos, sem nada pedir em troca. Hoje, como no inicio de nossas vidas, ela caminha para lá e para cá, em passos cadenciados. Ao invés de seus olhos clamarem por piedade, eles transbordam de felicidades, por saberem que aquele corpo franzino, abriga uma heroína anônima, que se orgulha de ser mulher, esposa e mãe.   
                                   Por isso, todas às vezes, que caminho pelas ruas apressadas desse mundo distante da minha cidadezinha interiorana e deparo-me com mulheres mirradas e desprovidas de vaidade, reporto-me a imagem divina e doce de minha mãe. Vejo nelas, a mulher guerreira, a leoa que ainda defende de unhas e dentes os seus filhos já crescidos e desmamados. E que, embora crescidos e desmamados, não se distanciam do colo macio e dos seios sempre prontos para darem vidas aos meus sonhos e de meus irmãos.  
                                   Mãe é algo que não se descreve, apenas sente. A minha heroína tem nome, chama-se Olindrina. A ela me rendo e peço a sua benção!

Peruíbe SP, 12 de maio de 2019.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

ZÉ DO MÉ

Adão de Souza Ribeiro

                                   Uma mulher rabugenta, zarolha e manca da perna esquerda. Um filho baitola, que desde muito pequeno, dava sinais de que, não demoraria e iria morder a fronha. Uma filha preguiçosa e que, ao invés de cuidar dos deveres da casa, gostava de ficar num esfrega-esfrega com os meninos da rua. Um homem lutador e honesto, que não conseguia juntar patacas, além daquelas para o seu sustento e da família. Não tinha um pingo de ganância e, muito menos, projetos de vida e de futuro.
                                   A vida rude, fez dele um homem rude. Mesmo diante de tantas penúrias, gostava muito de fazer amizades, contar seus causos, pescar no córrego que banhava a cidade, jogar carteado no clube nipônico. É certo que não dispensava um encontro com os amigos, no boteco do “seu” Shaolin, um japonês magro e desengonçado. O bar do “japa” era escuro, com revoadas de mosquitos sobre o balcão e as mesas. Uma coleção enorme de cachaça, exposta numa estante fixada na parede, caindo os reboques, dava um toque peculiar ao ambiente.
                                   Todos os dias e o dia todo era rotina daquele homem, ir para a roça, antes do nascer do sol e só voltar ao cair da tarde. Ao longo da vida, só conseguiu comprar um cavalo pangaré e uma carroça reformada. A casa era guarnecidos de móveis rústicos e improvisados. As roupas de pano simples e o alimento sem muita variedade. A felicidade de José Cruz da Piedade resumia-se em trabalhar o mês todo e, aos finais de semana, tomar uma cachacinha com os amigos fiéis, no bar do “seu” Shaolin.
                                   Desde muito cedo, aprendeu a lidar com as dificuldades da vida e, também, a tomar gosto pelo consumo da branquinha, como era carinhosamente chamada a cachaça. É certo que, pelo carinho que demonstrava com o consumo da marvada, recebeu o apelido de “Zé do Mé”. Não achava ruim e nem considerava bule (bullying), o jeito carinhoso como era tratado pelos amigos e demais moradores da cidadezinha interiorana.
                                   Para apagar as tristes lembranças do passado e fugir das tribulações do dia a dia, corria para o bar do “seu” Shaolin, onde lá afogaria as mágoas num copo de mé. Lá podia contar e ouvir diversas estórias, reais ou não. Uma cantoria desafinada de viola fazia parte do enredo botecolístico. De vez em quando, um dos frequentadores, exagerava na dose e caía num canto, ficando longas horas, curtindo o coma alcoólico. Enquanto isso, “Zé do Mé” e os amigos continuavam bebendo e conversando.
                                   Mas nem tudo era sempre alegria para aquele homem de vida rude, ali naquele lugar de descontração. Não demorava muito, aparecia não mais de surpresa a esposa dele. Os amigos estranhavam, quando ela não aparecia. Chegava com o diabo no corpo e num escândalo que lhe era peculiar, ela esculachava com o pobre do marido. Depois de vociferar uma dezena de palavras de baixo escalão (baixo calão), completava com tapas e empurrões. Assim agia de forma covarde, pois o pobre do homem, na maioria das vezes, não aguentava sobre as próprias pernas.
                                   Os amigos entristeciam e se revoltavam, mas nada podiam fazer. Afinal de contas, era como dizia um velho deitado, ou melhor, um velho ditado: “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Mas com passar do tempo, a cena engraçada virou rotina. O amigo chegava alegre, bebia até entornar o beiço e, no final, saia esculachado e espancado pela esposa rabugenta, zarolha e manca da perna esquerda. Os companheiros de bebedeira precisavam tomar uma atitude em defesa do amigo ultrajado.
                                   Foi assim que, numa bela tarde de domingo, ali no boteco do “seu” Shaolin, todos se reuniram e em assembleia, regada com muita cachaça, pedaços de torresmo e porções de carne seca. Decidiram por unanimidade, criar uma lei que protegesse José Cruz da Piedade e todos os demais frequentadores, contra a violência praticada por esposas, namoradas, ficantes e amantes, ou seja, as “Teúdas” e “Manteúdas”.
                                   Dentre outras coisas, ficou estabelecido, que elas não poderiam se aproximar a menos de duzentos metros do boteco do “seu” Shaolin e quiçá dos companheiros. Qualquer tipo de agressão quer fosse física ou verbal, ficavam impedidas de chamar o companheiro de “meu negô” e, muitos menos, de convidá-lo para um sapeca ia ia, por no mínimo seis meses. Para que fosse revogada a penalidade, tinhas que ser submetidas ao “Conselho do Boteco”.
                                   A partir daquela data, nunca mais José Cruz da Piedade foi agredido ou sofreu qualquer tipo de humilhação. Todas as mulheres do lugarejo passaram a respeitar e incentivar os momentos de descontração de seus esposos, namorados, ficantes ou amantes. Pelo contrário, quando eles manifestavam o desejo de irem no boteco do “seu” Shaolin, elas eram as primeiras a incentivarem.
                                   A lei proferida e outorgada por todos os presentes, com aprovação unanime, ficou conhecida como a “Lei do Zé do Mé”, em homenagem a José Cruz da Piedade. Revogam-se as disposições em contrário. Não é redundância afirmar, que tudo foi comemorado com muito mé (cachaça).


Peruíbe SP, 08 de maio de 2019.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

CIRCU DU SÔ ZÉ

Adão de Souza Ribeiro

                                   Uma cidade pequena, um povo humilde, uma dezena de crianças e um terreno baldio. Eis ai, os quesitos necessários, para se instalar um circo. Não há nada mais belo e divertido, do que ver a chegada dele, num lugar pacato e de costumes campesinos. As mesmices do dia a dia deixam as pessoas enfadonhas, principalmente, os infantes. É certo que ao aportar ali, o ar do vilarejo ganha um brilho diferente.
                                   De início, contemplam-se os caminhões chegando com o material e, em seguida, a montagem gradual. Os trabalhadores suados vão colocando cada peça em seu lugar. Bate estaca aqui e acolá. Cria-se o esqueleto da casa de espetáculo e, por fim, levanta-se a lona. No entorno, estão as barracas ou trailers, que abrigarão os artistas, com seus familiares ou não. Uma vez pronto para o espetáculo de estreia, um carro com alto falante, sai às ruas anunciando a boa nova.
                                   Os pequeninos entram em alvoroço e os pais em desespero, pois tem que quebrar o porquinho e rapar até a última moeda. A diversão tem um preço. Quando não tem dinheiro e nem cofrinho para quebrar, eles usam outros recursos. Passam por baixo da lona, escondidos dos fiscais. Ou vendem doces em forma de guarda-chuva, feitos com melaços de açúcar, entregues pelos donos do circo. Não podem faltar os saquinhos de pipocas. O pagamento é o ingresso de graça, claro!
                                   No interior, a arquibancada de madeira rustica e a ala vip, são compostas de cadeiras de ferro. Ao centro, o picadeiro forrado de palha de arroz, sob um tapete. No alto, o trapézio e ao fundo, o palco com seu tablado barulhento. A iluminação, como não poderia deixar de ser, meio opaca e com ligações em gambiarras. Uma pessoa mais observadora notará que a cobertura está repleta de remendos. Tudo parece improvisado, mas não deixa de ser um circo. Um lugar para encantar os adultos e hipnotizar as crianças.
                                   As brincadeiras no picadeiro, com palhaços engraçadíssimos e de roupas desengonçadas; os melodramas no palco, regados com comédia; casais se arriscando no trapézio, para lá e para cá; animais rigorosamente adestrados, agindo como se fossem espontâneos. Belas mulheres, à custa de maquiagem, atiçando o imaginário masculino e homens insinuando erotismo, aos olhares das casadas discretas. Alheia a tudo isso, as crianças se divertem demasiadamente. O que importa se tudo é improvisado, inclusive, a construção? Para elas, o encanto está na forma simples de se divertir.
                                   “Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo!”, anuncia o locutor de um vozeirão invejável, no sistema de som. Por ser uma casa de espetáculo muito simples, não há recursos eletrônicos e nem efeitos especiais. Tudo é feito na raça e com o talento de cada um de seus apresentadores. Usando seus dons especiais, os palhaços chamam o público para interagir com suas peraltices. Criam situações engraçadas e de suspense. Isso para aquela cidade pequena e de povo simples, faz toda a diferença. Levam as pessoas a viajarem por um mundo encantado e sem limites de felicidade.  
                                   Ao fim do espetáculo, todos rumam para suas casas. As crianças embriagadas de alegria sabem que amanhã tem mais. Durante o dia, notam-se os artistas dormindo em suas barracas e o circo descansando em silêncio. Por quanto tempo ele permanecerá ali? E quando for embora, como ficarão as fantasias das criancinhas do lugarejo? Passar por baixo da lona, vender bandeja de guloseimas, fugir do palhaço brincalhão, serão apenas lembranças, nada mais.
                                   Dói na alma e sente-se um aperto no coração, quando se vê aqueles homens suados, retirando de forma lenta cada peça daquela casa de espetáculo, Ao descerrar a lona e expor o esqueleto, percebe-se tristemente que o circo não mais existe. Fica um vazio no terreno e na mente. Como um eterno retirante, vai partir para outro lugar, levando alegria e espalhando fantasias para outras crianças, em províncias desconhecidas. Esta é a sina de quem nasceram para espalhar encanto às pessoas enfadonhas.
                                   No mundo moderno, as pessoas enfrentam longas filas, para adquirirem ingressos, a fim de assistirem espetáculo cheio de recursos tecnológicos. Lá os artistas obedecem a pontos eletrônicos de seus diretores, como se fossem robôs. A parafernália de efeitos especiais (luzes, sons e etc), distancia o público de seus apresentadores. Não que lá não se vislumbre beleza e encantamento. Já no circo improvisado da cidadezinha pacata e de gente humilde, em razão da interação, não se sabe quem é palhaço e quem é público. Sabe-se até que o dono do circo fora registrado e batizado pelo nome de José das Graças Divina.
                                   Não é por acaso, que as crianças, em conversas infantis, dizem: “Hoje vamos assistir as palhaçadas no Circu du sô Zé”. Elas nem imaginam que troço é o tal do “Cirque du Soleil”.
                                   A história chega ao fim. Por isso, “Fecham as cortinas e termina o espetáculo!”.


Peruíbe SP, 01 de maio de 2019.