Adão de Souza
Ribeiro
Desde os primórdios tempos, isto há mais de
300 000 anos, quando ainda erámos Homo
sapiens, com habilidades para caçar, cozinhar carne, usar roupa de peles de
animais e construir lanças e cabanas, eu creio que já gostávamos de uma boa
prosa.
Inevitavelmente a evolução aconteceu e
descobriu-se o Homem de Neanderthal,
na Alemanha, no período de 70 000 a 40 000 anos, sendo baixo e musculoso, com
um cérebro do tamanho do nosso e região cerebral correspondente à fala bem
desenvolvida.
De evolução em evolução, passamos pelo Homo Erectus até chegarmos ao Homem Moderno. Este homem moderno
começa a falar com desenvoltura a partir dos três anos de idade. Brincadeiras à
parte, eu penso que a mulher começa falar bem mais cedo. E como fala meu Deus!
E foi pensando nisso, que compreendi o porquê
de que, quando duas ou mais pessoas se encontram, uma prosinha descontraída é
inevitável. Quer seja na esquina, na praça, no boteco, no churrasco, na
pescaria, no jogo de futebol ou no barbeiro, lá estão os contadores de causos
ou vantagens como, por exemplo, as estórias de pescadores.
Na retina dos meus olhos, revejo a cena
ocorrida na “Barbearia do Silveira”. Antes, porém, é preciso dizer que o “seu”
Silveira era um contador de estória e, pelos quatro cantos, arrotava sua valentia.
Por essa razão, a barbearia estava sempre cheia, pois todos gostavam de ouvir as
deliciosas lorotas, daquele habilidoso profissional.
Ele dizia, sem ficar vermelho, que laçara um
boi bravio e o segurara na unha; nas matas da Fazenda Suiça, lutara a noite
inteira com uma onça enorme, até ela jogar a toalha e se dar por vencida; na
mira da sua espingarda cartucheira, até Virgulino Ferreira da Silva, o lendário
cangaceiro Lampião, tremia feito vara verde.
“Seu”’ Silveira colocava tanto ênfase na
estória, que era difícil de não acreditar. Valente como o *Coronel Pantaleão, só
faltava ele perguntar para sua esposa: “É mentira Terta?”. E ela, por demais
obediente, respondia: “É verdade.”
Normalmente os clientes iam sábados, por ser
final de semana. Mas um dia, a vida - aquela caixinha de surpresas -, iria
pregar-lhe uma peça. Dito e feito. Lá estava fazendo a barba de um assíduo cliente
e com a barbearia lotada, não deixava de contar suas longas estórias de
valentia.
De repente ali chegou “Chiquinho Dedo Mole”
um Sergipano arretado, que não levava desaforo para casa. Aquele homem, aos
berros e com uma Garrucha em punho, apontada para “seu” Silveira, foi logo dizendo:
“Silveira,
cabra
safado, hoje em vim aqui, disposto a acertar aquela velha pendenga.”
O valentão empalideceu, suava frio, emudecera
e a mão tremula denunciava o pavor em que se encontrava. Os clientes que
aguardavam a vez pediam ajuda a todos os Santos de plantão.
Na rua começava a se formar uma aglomeração
de curiosos. O suspense era geral. Será
que Silveira iria por suas habilidades de homem macho em prática e provar que
suas estórias não passavam de lorotas?
O cliente com o rosto e o pescoço ensaboados.
A navalha na carne, ou melhor, garganta, o infeliz do cliente, que estava
sentado na cadeira giratória, só pedia a Deus para sair vivo dali. Pensava ele:
“Por
que fui escolhido para tamanho infortúnio?”
De repente, num rompante de fúria, “Chiquinho
Dedo Mole”, entrou na barbearia, estabelecida na Rua Rui Barbosa. Sempre com a arma apontada para o desafeto, o
agressor dizia: “Fala alguma coisa, seu valentão safado?”.
Num ato de defesa, “seu” Silveira, girou a
cadeira, colocando o cliente como escudo e, involuntariamente, apertou a
navalha na jugular do inocente, o qual chorava baixinho, pois sentia a morte
beijar-lhe o rosto. Com nitidez, lembrava-se da mulher e dos filhos esperando
para o almoço. Estava no lugar e na hora errada.
Aquilo parecia à história de ** “A crônica de
uma morte anunciada”. Um dos clientes que aguardava a vez, com uma voz macia,
como um anjo enviado do céu, conseguiu apaziguar a situação, dizendo para “Chiquinho
Dedo Mole”: “Chiquinho, meu amigo querido, procura resolver a pendenga entre vocês,
com calma. Guarda esta arma. Se atirar e causar uma tragédia, o seu prejuízo
será maior”.
Como se fosse um milagre, “Chiquinho Dedo
Mole” foi se controlando e dominando a sua fúria. “seu” Silveira recobrou a
cor, parando a suadeira e a tremedeira. O cliente ensaboado agradeceu ao Divino
e até sentiu o cheiro do pernil que seria servido no almoço. A plateia curiosa
foi se desfazendo aos pouco, até a rua ficar vazia e voltar o ar de cidade
pacata.
O
episódio se espalhou pela cidade e toda redondeza. A partir de então, aquele
homem falastrão e que impunha medo, pelas estórias que contava, passou a ser
conhecido como “Silveira Borra Botas”. Em tom de caçoada, os clientes diziam: “Vamos
lá na barbearia do Borra Botas”.
Peruíbe SP, 18 de
novembro de 2021.
P.S.: * Personagem de
Chico Anísio; ** Livro de Gabriel Garcia Márquez