sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

O LÁPIS E A BORRACHA

                             Todas as manhãs, após tomar um cafezinho simples com leite, regado com uma fatia de pão e manteiga, eu e meus cinco irmãos, rumávamos para o Grupo Escolar “José Belmiro Rocha”. Nas mãos, uma mochila contendo a cartilha “Caminho Suave”, um caderno brochura, um lápis e uma borracha. Caminhávamos felizes pelas ruas ainda sonolentas, feitos soldadinhos marchando e cantando hinos patrióticos. Aquela rotina escolar haveria de marcar para sempre, as nossas vidas. Doces lembranças!
                                   Pelo caminho, juntavam-se a nós, outros amiguinhos, os quais somavam à nossa alegria e reforçavam as cantorias intermináveis, ora patrióticas ora folclóricas. Aqui e acolá, ouviam-se galos matutinos convidando para mais um dia, com seus cantos roucos e repetitivos. Duque, um cachorro magricelo, abanava o rabo em tom de felicidade, quando nos via passar, como de rotina. Mais adiante, uma senhorinha, vestida com roupa de chita e de alpercata no pé, varria a calçada com uma vassoura de piaçava. Eu pensava: “Velho tem mania de acordar cedo, mesmo”.
                                   Já dentro da escola, a felicidade redobrava. Não queria que as horas passassem tão depressa. Era lindo ser criança. Antes de adentrar à sala, a fim de receber os ensinamentos de dedicados mestres, ficávamos enfileirados no pátio e cantávamos hinos de amor à pátria (nacional, bandeira, independência, dentre outros). Na sala, sentávamos de dois em dois, em carteiras duplas de madeira, onde acomodávamos o material didático. A frente do quadro negro, a professora amada e respeitada por todos nós, cumpria o sacrossanto ofício de nos preparar para o futuro.
                                 Como uma paciência divina, atendia o chamado de cada aluno e ia de carteira em carteira, atender a dificuldade de aprendizado e, principalmente, afagar a carência de seus pupilos. Sentia-me orgulhoso, quando ela chamava-me para ir à lousa, com a missão de escrever uma palavra com giz ou apagar uma frase com apagador. Foi ali, no Grupo Escolar “José Belmiro Rocha”, que aprendi o significado da palavra amizade (sociedade) e, em especial, o gosto pela palavra escrita.
                           Quando chegava a hora do recreio, a dona Coquinha, uma funcionária baixa e franzina, badalava com tanta intensidade sino, que era ouvido ao longe, até mesmo da minha casa, que distava umas quatro quadras dali. Então, todos nós da classe, meninos e meninas, saímos em desabalada carreira. Primeiro, tomávamos leite achocolatado ou sopa no refeitório ali existente. Depois, cada um juntava-se ao amigo ou amigos mais afins e confabulavam longas conversas. Ou então, íamos para debaixo dos pés de eucaliptos, onde jogávamos bolinhas de gude. Outros iam para quadra descoberta, onde jogavam bolas ou brincavam de “pega-pega”.
                              Quando fazíamos travessuras ou desrespeitávamos o professor, éramos conduzidos à diretoria, onde o “seu” Geraldo – um homem forte e carrancudo, de poucas palavras, “passava um sabão” e, muitas vezes, deixava-nos de castigo. Depois, voltávamos todos murchinhos para sala de aula. Minha mãe ficava orgulhosa, quando nas reuniões de pais e mestres, ouvia por parte do corpo docente, elogios a meu respeito. Eu pensava: “Estou no caminho certo”. Ficava triste, quando terminava a aula. Sabia que os amigos e amigas da classe, partiam cada uma para suas casas e eu só ia vê-los no dia seguinte. Parecia que iria demorar uma eternidade, o novo encontro.
                                   Foi com o lápis, cuidadosamente apontado, que aprendi a desenhar a história da minha vida e de meu povo tão simples e tão belo. Estou certo de que, ao rabiscar letra por letra e palavra por palavra, gravei para sempre no caderno da existência, o valor das pessoas, a importância dos lugares e patrimônios históricos. Um povo sem história e sem passado, não passa de letras mortas. Tenho por mim, que sou um saudosista nato, irrecuperável e sem cura. O amor que tenho pelo povo e por cada centímetro da minha terra natal, é algo indecifrável.
                               Outro dia, caí em prantos, derramei em lágrimas, ao saber que arrancaram o nome do meu grupo escolar, berço sagrado do meu conhecimento, das minhas primeiras descobertas do mundo, e levaram não sei para onde. Ao rever a foto daquele prédio tão puro e tão sagrado, que me acolheu por cinco anos, sem o nome original, senti uma apunhalada no peito. Não me importa de onde partiu a ordem de matar a minha história e o meu passado, mas é certo de que senti sepultado, com a perda da identidade do lugar onde desenhei e acalentei os meus sonhos.
                             Sem que eu esperasse, a borracha fria do poder, usada por pessoas insensíveis, apagou para sempre, o que o lápis tão humilde e tão amoroso, escreveu ao longo dos anos de existência de uma escola que se doou por inteira, sem pedir nada em troca. Mas ninguém, nem mesmo a borracha impiedosa do progresso, há de apagar de nossa memória a imagem indelével do nome Grupo Escolar “José Belmiro Rocha”, localizado defronte a Cooperativa Agrícola Sul Brasil.
                                   Amanhã de manhã, vou apanhar a mochila e, dentro dela, o caderno brochura, a cartilha “Caminho Suave”, o lápis e a borracha. Em seguida, junto com meus cinco irmãos e os amigos, vou para a escola. Quero rever os galos matutinos, com seus cantos roucos; o cachorro Duque, abanando o rabo, como sinal de alegria; a senhorinha vestia de roupa de chita e alpercata no pé. Pelo caminho, a cidade bucólica, saudando as crianças na rotina escolar. Não importa agora, que isso seja apenas um sonho. Nenhuma borracha vai apagar essa minha ilusão. Sou um saudosista inveterado.

Peruíbe SP, 18 de janeiro de 2019.

domingo, 6 de janeiro de 2019

A MORTE DO VELHO

                         Ele estava sempre do meu lado. Não se apartava de mim, por nada deste mundo. Fiel companheiro, amigo inseparável. Sempre tinha um conselho pronto, quando percebia algum deslize de minha parte. Conhecia-me por inteiro e bastava um gesto ou um olhar deste mecenas, para notar o que se passava comigo, interna e externamente. Sabia corrigir-me com firmeza e ternura. Procurava não me magoar, porque sabia que a minha estrada a ser percorrida, era longa e íngreme.
                                   Ensinava-me de forma gradativa, a compreender e respeitar o mundo e as pessoas. Quanta vez usava metáforas e sinais da natureza, para descrever os mistérios do mundo e da vida, que eram desenhados à minha frente. Com toda sapiência que lhe era peculiar, conduzia-me pelos mundos insondáveis do universo e da mente. Para ele, a honra e a dignidade eram joias preciosas, as quais jamais deveriam ser tocadas por seres desprezíveis.
                                   Por horas e horas, eu ficava debruçado na janela do tempo, observando o seu caminhar trôpego e sua respiração ofegante, pelos caminhos sinuosos da vida. Brilhava nos olhos, uma luz incandescente, que irradiava esperança àqueles que buscavam alento em seu conhecimento. Conhecia o meu jeito turrão, mas abrandava meu espírito, massageando o meu ego, com palavras dóceis e eivadas de ternura. Os seus cabelos cor de neve, traduziam a certeza de que valeu a pena viver intensamente, cada momento da existência.
                                   Eu sabia que um dia, quando menos se esperasse, ele partiria para a mansão do desconhecido. Por essa razão, eu vivenciava cada segundo do meu tempo ao lado dele. Tinha pressa de beber nos seus lábios, tudo que podia me oferecer de bom e de belo. Exorcizava todos os meus medos, para não me ver chorar. Guardava todos os meus segredos, brincadeiras de infância. Gostava de ouvir sua voz compassada, que sem pressa, balbuciava cada palavra e cada frase. Parece que desejava que cada palavra e cada gesto, ficassem marcados para sempre na minha memória. Como um mestre dedicado, tinha a dimensão exata das minhas necessidades humanas e espirituais.
                                   Como era prazeroso, vê-lo e ouvi-lo falar de fé, vida, amor, esperança, desejo, prazer, gratidão, família, pátria, respeito e de tantas outras coisas, que fazem parte da nossa existência terrena. Dizia que a vida era breve. Lembrei-me do poeta Carlos Drummond de Andrade, quando disse: “A vida tem a forma breve de um coice”. Quando menos esperamos, a morte feito um cavalo bravio, acerta em cheio o nosso peito já carcomido pelas lutas intermináveis, em busca do nada.
                                   Tinha por princípios, não me mimar demais, a fim de não atrapalhar o meu crescimento. Os desafios que enfrentaria, dependiam de amadurecimento pessoal para serem vencidos. A experiência é forjada na bigorna do sofrimento e da luta cotidiana, não de afagos e mimos e ele tinha consciência disso. Se por ventura fraquejasse, lá estava ele pegando em minhas mãos e redirecionando a minha vida. Se partisse antes do combinado, o que seria de mim? Pensamentos que atormentavam e que eu procurava esquecer.
                                   Não tinha vaidade e, por isso, se vestia de uma beleza tão pura e singela, como os lírios do campo. Foi com ele, que aprendi a valorizar as virtudes da alma e do espírito e não do corpo. Em que pese às ingratidões sofridas pelo mundo, representadas pelo ser humano, devolvia em amor e bondade. Conhecia a lei do retorno e me falava sobre isso, dizendo: “Cada um dá, somente o que tem de melhor, dentro de si”.  O seu amor era tão grande, que não cabia no mar.
                                   Acompanhou-me a vida inteira, com tamanha paciência, que me causava espanto. Assim agiu, porque via em mim, uma doce retribuição de carinho e veneração. E assim, entre um momento e outro, foi envelhecendo. O peso da vida curvou-lhe as costas, desfigurou o rosto e ofuscou a visão. A mão ingrata do tempo, só não atrofiou sua mente. Mesmo com a voz embargada, continuava a me ensinar com primazia, às vicissitudes da vida.
                                   Mas como tudo na vida é efêmero, um dia ele partiu ao entardecer, para a mansão do desconhecido. Deixou um vazio imenso dentro do meu peito. Hoje é apenas um quadro amarelado, pendurado na parede dos meus sonhos infantis. O ano velho se foi, morreu. Partir para sempre, pela estrada da vida e não voltou mais. Assim como meu pai, o ano velho passou por mim e não percebi.

Peruíbe SP, 06 de janeiro de 2019.