Todas as manhãs,
após tomar um cafezinho simples com leite, regado com uma fatia de pão e
manteiga, eu e meus cinco irmãos, rumávamos para o Grupo Escolar “José Belmiro
Rocha”. Nas mãos, uma mochila contendo a cartilha “Caminho Suave”, um caderno
brochura, um lápis e uma borracha. Caminhávamos felizes pelas ruas ainda
sonolentas, feitos soldadinhos marchando e cantando hinos patrióticos. Aquela
rotina escolar haveria de marcar para sempre, as nossas vidas. Doces lembranças!
Pelo caminho, juntavam-se a nós,
outros amiguinhos, os quais somavam à nossa alegria e reforçavam as cantorias
intermináveis, ora patrióticas ora folclóricas. Aqui e acolá, ouviam-se galos matutinos
convidando para mais um dia, com seus cantos roucos e repetitivos. Duque, um
cachorro magricelo, abanava o rabo em tom de felicidade, quando nos via passar,
como de rotina. Mais adiante, uma senhorinha, vestida com roupa de chita e de
alpercata no pé, varria a calçada com uma vassoura de piaçava. Eu pensava: “Velho
tem mania de acordar cedo, mesmo”.
Já dentro da escola, a felicidade
redobrava. Não queria que as horas passassem tão depressa. Era lindo ser
criança. Antes de adentrar à sala, a fim de receber os ensinamentos de
dedicados mestres, ficávamos enfileirados no pátio e cantávamos hinos de amor à
pátria (nacional, bandeira, independência, dentre outros). Na sala, sentávamos
de dois em dois, em carteiras duplas de madeira, onde acomodávamos o material
didático. A frente do quadro negro, a professora amada e respeitada por todos
nós, cumpria o sacrossanto ofício de nos preparar para o futuro.
Como uma paciência divina, atendia
o chamado de cada aluno e ia de carteira em carteira, atender a dificuldade de
aprendizado e, principalmente, afagar a carência de seus pupilos. Sentia-me
orgulhoso, quando ela chamava-me para ir à lousa, com a missão de escrever uma
palavra com giz ou apagar uma frase com apagador. Foi ali, no Grupo Escolar “José
Belmiro Rocha”, que
aprendi o significado da palavra amizade (sociedade) e, em especial, o gosto
pela palavra escrita.
Quando chegava a hora do recreio, a
dona Coquinha, uma funcionária baixa e franzina, badalava com tanta intensidade
sino, que era ouvido ao longe, até mesmo da minha casa, que distava umas quatro
quadras dali. Então, todos nós da classe, meninos e meninas, saímos em
desabalada carreira. Primeiro, tomávamos leite achocolatado ou sopa no
refeitório ali existente. Depois, cada um juntava-se ao amigo ou amigos mais
afins e confabulavam longas conversas. Ou então, íamos para debaixo dos pés de
eucaliptos, onde jogávamos bolinhas de gude. Outros iam para quadra descoberta,
onde jogavam bolas ou brincavam de “pega-pega”.
Quando fazíamos travessuras ou
desrespeitávamos o professor, éramos conduzidos à diretoria, onde o “seu”
Geraldo – um homem forte e carrancudo, de poucas palavras, “passava um sabão”
e, muitas vezes, deixava-nos de castigo. Depois, voltávamos todos murchinhos para sala de aula. Minha mãe ficava orgulhosa, quando nas reuniões de pais e
mestres, ouvia por parte do corpo docente, elogios a meu respeito. Eu pensava: “Estou
no caminho certo”. Ficava triste, quando terminava a aula. Sabia que os
amigos e amigas da classe, partiam cada uma para suas casas e eu só ia vê-los
no dia seguinte. Parecia que iria demorar uma eternidade, o novo encontro.
Foi com o lápis, cuidadosamente
apontado, que aprendi a desenhar a história da minha vida e de meu povo tão
simples e tão belo. Estou certo de que, ao rabiscar letra por letra e palavra
por palavra, gravei para sempre no caderno da existência, o valor das pessoas,
a importância dos lugares e patrimônios históricos. Um povo sem história e sem
passado, não passa de letras mortas. Tenho por mim, que sou um saudosista nato,
irrecuperável e sem cura. O amor que tenho pelo povo e por cada centímetro da
minha terra natal, é algo indecifrável.
Outro dia, caí em prantos, derramei
em lágrimas, ao saber que arrancaram o nome do meu grupo escolar, berço sagrado
do meu conhecimento, das minhas primeiras descobertas do mundo, e levaram não
sei para onde. Ao rever a foto daquele prédio tão puro e tão sagrado, que me
acolheu por cinco anos, sem o nome original, senti uma apunhalada no peito. Não
me importa de onde partiu a ordem de matar a minha história e o meu passado,
mas é certo de que senti sepultado, com a perda da identidade do lugar onde desenhei
e acalentei os meus sonhos.
Sem que eu esperasse, a borracha
fria do poder, usada por pessoas insensíveis, apagou para sempre, o que o lápis
tão humilde e tão amoroso, escreveu ao longo dos anos de existência de uma
escola que se doou por inteira, sem pedir nada em troca. Mas ninguém, nem mesmo
a borracha impiedosa do progresso, há de apagar de nossa memória a imagem
indelével do nome Grupo Escolar “José Belmiro Rocha”, localizado defronte a Cooperativa Agrícola Sul Brasil.
Amanhã de manhã, vou apanhar a
mochila e, dentro dela, o caderno brochura, a cartilha “Caminho Suave”, o lápis
e a borracha. Em seguida, junto com meus cinco irmãos e os amigos, vou para a
escola. Quero rever os galos matutinos, com seus cantos roucos; o cachorro
Duque, abanando o rabo, como sinal de alegria; a senhorinha vestia de roupa de
chita e alpercata no pé. Pelo caminho, a cidade bucólica, saudando as crianças
na rotina escolar. Não importa agora, que isso seja apenas um sonho. Nenhuma
borracha vai apagar essa minha ilusão. Sou um saudosista inveterado.
Peruíbe SP, 18
de janeiro de 2019.