domingo, 29 de setembro de 2019

ÁLBUM AMARELADO


Adão de Souza Ribeiro

                                   De repente, nada mais que de repente... o passado descortina-se à nossa frente. Por mais que queiramos ser futuristas, o ontem nos persegue impiedosamente. Marcando nossa vida, deixa sinais indeléveis, como o ferrete cravado na hipoderme dos animais. Depois de marcados para sempre, não há como esconder nossa origem, história e DNA. A cidade natal e os lugares por onde passamos, é apenas o habitat natural, onde vamos desenvolver nosso enredo. Por isso, temos que nos cuidar para redigir o que há de melhor no nosso interior.
                                   Mas e o futuro, o que dizer dele? Não passa de uma incógnita e uma quimera. Por isso, nossa língua é riquíssima ao descrever o seu tempo verbal, isto é, passado, presente e futuro. E Deus, antes mesmo da nossa língua existir e de balbuciarmos as primeiras palavras, criou as fases da vida, ou seja, infância, adolescência, juventude, adulta e velhice. Quer queira e quer não, somos forjados a entender, que para tudo no tempo, tem seu tempo. E assim há de ser até o fim dos tempos.
                                   Num dia desses, quando vaga o tempo e descansa a vida um pouco, resolvi fuçar no baú empoeirado da minha história, onde o passado e o presente se se cruzam e se misturam. De vez em quando, num momento de nostalgia, somos levados a desterrar lembranças adormecidas e empoeiradas pelo esquecimento. Dentre tantas quinquilharias, carcomidas pelos longos anos de abandono, deparei-me com um velho álbum de família. A ausência de ventilação e umidade desfigurou sua capa e, por pouco, não apagou as imagens de registros importantes.
                                   Aos poucos e ad cautelam, passei a manusear suas folhas, onde se encontravam uma infinidade de fotos, com os mais variados tamanhos e cores. Quem me visse ali, introvertido naquela lida, notaria mudanças bruscas do meu semblante, Ora alegre, ora surpreso e, por vezes, ora pesaroso, por tentar compreender o que fez a mão pesada do tempo. Ver que as pessoas do parentesco ou da amizade transformarem-se ao longo da vida, custando-me muito a identificá-las, era por demais, entediante.
                                   Com pesar, pude observar que muitos já partiram para a mansão do amanhã e que outros, na sua maioria, após ganharem forma adulta, seguiram por caminhos longínquos e para onde não sei. Cada foto, que apanhava e observava com maior esmero, transportava-me a um momento de doce lembrança.  Todas elas tinham uma razão de ser. E para ser sincero, ressuscitaram passagens maravilhosas, registradas na longa estrada da vida. Além dos rostos nelas contidos, também haviam registros de  ruas, praças, casas e comércios, destruídos pela modernidade e pela falta de respeito ao patrimônio histórico.
                                   Em que pese à tecnologia de hoje, com modernos aparelhos, os quais captam imagens com tamanha precisão, posso afirmar isso sem sombra de dúvida, que aquelas dos tempos de outrora, tinham uma magia indescritível. A fotografia em preto e branco sussurrava aos ouvidos e mostrava aos olhos de quem a contemplava, que o tempo passou e eternizou o que sempre foi belo. Prova disso, era a ternura e a simplicidade de que quem, voluntária ou involuntariamente, pousava para a câmera. Como sou um saudosista irrecuperável, não pude conter as lágrimas, presas no coração dilacerado pelos anos que se passaram.
                                   Na minha terra natal, havia um único retratista (assim era conhecido) oficial para todos os eventos, sagrado ou profano, o qual fora responsável por boa parte do meu acervo. Ele era um japonês, que amava a arte de registrar, através das lentes de uma máquina pré-histórica, todos os momentos inesquecíveis do povo. Os casamentos, batizados, aniversários, festas populares e religiosas, jogos futebolísticos, comícios políticos e até velório, não fugiam das incansáveis lentes, daquele filho do “sol nascente”. Bastava o freguês chamar o japonês e lá estava ele. De olho no lance, não perdia um flash.
                                   Cada momento precioso de nossas vidas, registrado em fotos coloridas ou não, representa a eternização de um passado vivo em nossas memórias. Através delas, os nossos herdeiros conhecerão a história viva da família, da qual pertencem e que, por isso, deverão amá-la e respeitá-la. Também aprenderão a admirar e respeitar o seu torrão natal, onde nasceu e por onde passaram seus ancestrais.
                                   Por onde andam as pessoas do meu tempo, não sei. Sei apenas que ainda estão ali, ao alcance das minhas mãos. Num relance, ao admirar por longos e prazerosos momentos, aquelas relíquias, guardadas no fundo do baú, senti-me “de volta ao passado”. Só aquele álbum amarelado e carcomido pelo tempo, foi capaz de tamanha magia.

Peruíbe SP, 29 de setembro de 2019.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O ROUXINOL E EU


Adão de Souza Ribeiro

                          Todas as manhãs, antes mesmo do nascer do sol, eu era carinhosamente acordado com o cantarolar melódico de um lindo rouxinol. Cantar junto à janela do quarto, tornou-se uma rotina daquela ave de plumagem exuberante. Se durante a noite, o sono fora conturbado, fruto de grande estresse diurno, a cantoria hipnotizava o pensamento fatigante. Naquelas cenas matutinas, ao pousar no batente da janela de madeira, fitava-me deitado no colchão de palha, como que dizendo: “Acorda, menino, vem saudar a natureza comigo!”.  
                                   Um dia, com a permissão da natureza que o concebeu, passei a chamá-lo de “Miudinho” e ele, humildemente entendeu que não se tratava de apelido pejorativo. Por tamanho amor que nutria por ele, ofertava-o um banquete de frutas cítricas, cuidadosamente colocadas no peitoril da janela. Ali da cama preguiçosa, contemplava-o no seu alimentar e no seu bailar de felicidade. De onde vinha tamanha disposição de acordar tão cedo e aquele imenso prazer de cantarolar para mim?
                                   De repente, quando menos esperava, fugia de mim. Batia suas asas para lugar incerto, como que querendo brincar de esconde-esconde. E eu fazia de conta que não me importava com sua ausência. Não demorava e ouvia seu cantar entre os galhos de um frondoso pé de ipê. Tentava divisá-lo, sobre os galhos, por entre as flores, mas era em vão. “Miudinho” sabia disfarçar e a camuflagem de seu corpo pequenino se misturava com a beleza das flores daquela arvore imponente.
                                   Não sei o porquê, mas havia uma eterna cumplicidade entre nós. Era bonito de ser ver nossa amizade tão sincera. Quando no seu dom de voar, ele partia para sua lida diurna, em busca de aventuras distantes, eu ficava preso ao limite do meu corpo. Como ser pensante, eu corria para lá e para cá, a fim de cumprir minha missão e obrigação de viver e sobreviver. Minuto a minuto, lutava para vencer as procelas da vida. Enquanto eu obedecia à lei da gravidade, o meu amigo “Miudinho” desafiava todas as leis impostas pela natureza. Voar era a prova de que ele não tinha limites.
                                   O dia parecia ter uma eternidade de horas, longe do querido amigo “Miudinho”. Quando a noite chegava, abria-se uma cratera profunda no meu coração, diante do silêncio e da ausência daquele pássaro cantante. Nos meus momentos de solidão, debruçava na janela e, diante da escuridão, contemplava o firmamento. Lá distante, a lua olhava dentro dos meus olhos e via o meu pesar que, de tão pesaroso, era só lágrima e só choro. Por onde andava o meu querido rouxinol?
                                   O vento, de vez em quando, ao passar por entre as folhas de árvores centenárias, balbuciava algo inteligível, como que querendo dar notícias do “Miudinho”. A mente, por sua vez, pensando em abreviar meu sofrimento, aconselhava-me a colocá-lo numa gaiola, pois, assim, não fugiria mais de mim. De imediato, reprovei a sugestão. Nossa amizade sincera, não permitia isso. Até porque, o alegre rouxinol nasceu para ser livre. Quem ama não prende, não magoa, não escraviza, não se apossa. A alma de quem ama é leve, por isso, não prende, mas liberta.
                                   Cansado da ausência de “Miudinho”, meu rouxinol querido, eu era vencido pelo sono profundo. Durante a noite, perdido em sono profundo e sonhos confusos, eu ficava imaginando como vencer todos os questionamentos de uma vida tão efêmera e tão passageira. Queria ter um corpo pequenino e asas enormes, que pudessem conduzir-me para bem longe dos meus devaneios e das decepções do cotidiano. Meu amigo, de alma tão pura, não sofria dessas mazelas. Eu tinha imaginação e ele tinha asas.
                                   Mas o que confortava o meu espírito, era saber que logo pela manhã, antes mesmo do nascer do sol, lá estava ele, batendo na minha janela e, mais uma vez, convidando-me para saudar a natureza. A esperança de que haveria mais um lindo dia a ser contemplado, chamava-se “Miudinho”. Lembro-me saudosamente do meu pai, quando, em forma de ensinamento dizia: “Meu filho, acorda! Pássaro que não deve nada a ninguém há muito tempo já está acordado”. Acho que o Rouxinol, meu amigo querido, ouvia meu pai dizer aquilo, e, por isso, vinha me acordar primeiro.
                                   Quis o destino que, um dia, pela manhã, antes mesmo do nascer do sol, esperei pelo amigo “Miudinho” e ele não veio. Penso que ele se perdeu em namoricos com uma fêmea de sua espécie. Assim ficou menos dolorido, aceitar a sua ausência para sempre. Tanto ele, como meu pai, foram embora para nunca mais, sem, ao menos avisar-me. Todos os dias, pela manhã, antes mesmo do nascer do sol, deixo a janela do meu quarto, aberta. No peitoril um banquete de frutas cítricas. De repente, quem sabe, ele e meu pai aparecem felizes na janela, dizendo: “Acorda menino, vem saudar a natureza comigo!”. Isso chama-se esperança.

Peruíbe SP, 28 de setembro de 2019.  

sábado, 21 de setembro de 2019

O ENCARCERADO

Adão de Souza Ribeiro

                        “Penso, logo existo”, disse René Descartes, o filósofo francês. Tenho dito e repetido, que a minha mente vive em eterna ebulição e evolução. A mania de pensar, não se aparta de mim, nem de dia e nem de noite. Essa minha inquietação, tem proporcionado momento de intenso questionamento e de angustia. Fico horas e horas, numa briga constante com as coisas que não entendo ou não compreendo. Para amenizar os conflitos internos, busco fuga nas bibliotecas e em intermináveis redações, noite a dentro.
                        Quantas vezes, os professores se depararam com inesperadas perguntas, que eu proferia, vindas do baú empoeirado da minha imaginação. Enquanto os colegas de classe se contentavam com o que estava escrito na lousa (quadro negro), eu queria saber aquilo que o giz não sabia explicar. Também, quantas vezes eu quebrava um brinquedo, com único desejo de saber o que ele tinha por dentro, ou seja, qual era o encanto de sua alma. São por esta e outras razão, que, por vezes, fui incompreendido e creio ter passado despercebido.
                        Desde a tenra idade, o meu espírito aventureiro foi um eterno sonhador. Percorrer as longas estradas do conhecimento e voar nas asas da liberdade, fizeram de mim, um menino inquieto. Desbravei e viajei por mundos insondáveis. Abandonei o corpo físico e transpus o campo da metafísica. A necessidade de compreender as coisas ao meu derredor, alimentou a vida inteira, minha fome de conhecimento. Desnudar o que se esconde por trás dos mistérios do Universo, excita-me por demais. Não sou uma “Maria vai com as outras”. Angariei inimizades por agir assim, mas isso pouco importa.
                        Na vida inteira, tive como dicionário de cabeceira, o princípio da liberdade de agir e pensar. Expurguei ao longo da existência, todo tipo de limitação. Nunca me prendi a conceitos e preconceitos, estabelecidos pela ignorância humana. Fujo daqueles que acreditam na existência da verdade absoluta, como o diabo foge da cruz. Acredito piamente na transitoriedade da vida, embora ninguém seja obrigado a concordar comigo, pois isso chama-se livre arbítrio.
                        Amei incondicionalmente uma menina, que, depois vi que era “uma estrela tão alta e tão fria”, parafraseando o poeta Manuel Bandeira, no poema “A estrela”. Também, amo eternamente a Deus, acreditando que ele é um Ser de eterna bondade e não um Ser vingativo, como professam as religiões mundanas, ao dizerem: “Não faça isso, menino, que Deus te castiga!”  Vê, portanto, caros amigos, que tenho por sina, viver a vida inteira, brigando comigo mesmo, em busca de soluções de coisas, muitas vezes, insolúveis. “Penso, logo existo” e, na maioria das vezes, existir causa-me imensa dor. Por isso, dizem por aí: “Aceita que dói menos”. Mas o fato de doer menos, não significa que estou livre dos bons ou maus pensamentos.
                        Mas o que vem a seguir, é por demais interessante. Ou melhor, cômico para não dizer trágico. Estava debruçado na janela da sala, olhando para o enorme quintal de casa, onde podia divisar arvores frondosas, jardins e um riacho ao fundo. Por ali transitavam garbosamente pássaros e animais, dentre eles, porcos, galinhas, patos, gansos, cabritos e tantos outros animais domésticos. Era bonito de se ver, eles andando para lá e para cá, em busca de alimento e praticando atividades de reprodução. Observar o encanto da natureza, com olhos de inocência e poesia, são privilégios de poucos. Eu tive e, até hoje, sou grato por isso.
                        Mas a triste sina de ser um eterno pensador, tem-me custado caro e muito caro. Ali debruçado na janela da minha infância, veio-me à mente, um pensamento engraçado e, ao mesmo tempo aterrorizador. Divaguei por um instante: “Já pensou seu eu tivesse nascido no corpo de um daqueles animais, os quais viviam naquele quintal?”. O que seria de mim e do meu futuro, ao passar a vida inteira naquele marasmo e naquela mesmice do dia a dia. Levantar antes de nascer do sol, passar o dia em busca de alimento, praticar atos de reprodução e, para os menos afortunados, terminando em cozimento, na panela sobre o fogão a lenha. Sai fora pensamento. Credo em cruz!
                        Se assim fosse, como eu iria compartilhar meus questionamentos e minhas divagações terrenas. Passar os meus dias findos, encarcerado num corpo cheio de limitações. A mente em ebulição e trancafiado numa cabeça pequena e desprovida de raciocínio, obedecendo apenas o instinto de sobrevivência. Ciscar o dia inteiro, carcarejar  e subir no poleiro, como as galinhas; grunhir e chafurdar, como os porcos na pocilga, sem poder expressar meus pensamentos e sentimentos, seria torturante demais para mim.
                        Viver eternamente encarcerado dentro de um corpo que não me pertence, seria melhor não existir. Ainda bem que nasci um pensador, no corpo de um ser humano. Obrigado meu Deus!

Mauá SP, 21 de setembro de 2019.

sábado, 14 de setembro de 2019

ELO QUEBRADO


Adão de Souza Ribeiro

                                   De vez em quando, tenho a mania de recolher-me para dentro de mim. Durante essa introspecção, divago horas a fio. Uma nuvem de isolamento, ganha forma ao meu redor, como que querendo proteger-me do inconformismo de coisas do cotidiano. Nada me incomoda e não me tira das viagens interplanetárias. Viajo há mil anos luz, em busca de respostas às intermináveis indagações e questionamentos.
                                   Os grandes cientistas, em seus isolamentos pessoais, realizaram grandes descobertas, as quais mudaram o mundo para sempre. A vida agitada rouba-nos as coisas simples do cotidiano. E assim, vamos perdendo a ternura e a sensibilidade, tornando verdadeiros robôs do progresso. Aos perdermos a essência dos valores contidos na alma, deixamos de sermos nós, para tornarmos algo insignificante.
                                   Numa tarde domingueira, sentado à sombra de um abacateiro, ali no quintal de casa, tinha às mãos, uma corrente. Primeiro atentei-me para a sabedoria de que quem a criou. Dirão: “É fácil!”. Mas depois que Colombo colocou um ovo de pé, durante um banquete comemorativo, oferecido pelo Cardeal Mendoza, em sua homenagem, por haver descoberto a América, tudo ficou mais fácil. Depois imaginei que com a invenção dela, muita coisa mudou, a começar pela tração (força aplicada sobre um corpo numa direção perpendicular à sua superfície de corte e num sentido tal que, possivelmente, provoque a sua ruptura).
                                   Mas no caso da corrente em questão, que eu tinha às mãos, estava rompida. Notei que os elos, presos uns aos outros, davam a ela a razão de existir. Unidos, eles outorgavam a corrente, a força para mover os objetos, como por exemplo, motores, catracas de bicicleta, roldanas, etc e tal. Quando um elo se rompeu, abandonando a união e o compromisso de seguir em frente, deixou de ser corrente, para ser um simples objeto, algo sem valor, Por isso, estava jogada ali, sob o pé do abacateiro. Com o passar do tempo, iria enferrujar e desaparecer. São as perguntas que movem o mundo e não as respostas. Logo perguntei: “Para que serve essa corrente, neste estado?”. Perdeu a sua função original, a sua razão de existir.
                                   Assim como a corrente, também são os seres humanos. A nossa força e a razão de ser, são formadas por pequenos elos, adquiridos ao longo dos anos. Eles são representados pela ética, moral, amor, fé, respeito, obediência, educação, gratidão, benevolência e tantas outras preciosidades da alma humana. Se um desses elos deixar de existir, a vida perde seu valor e seu objetivo principal. Não tardará e a ferrugem do progresso, irá corroer todo o corpo e sepultá-lo na vala do esquecimento.
                                   Tenho para mim, que todos os ensinamentos prestados pelos meus antepassados, isso desde os meus tataravôs, também se fazem representados por cada elo dessa corrente, chamada princípios morais e éticos. A preservação da estrutura familiar, da religião e da educação, depende sobremaneira da continuidade das relíquias, ou melhor, dos tesouros de ensinamentos de quem sempre acreditou na dignidade humana. É certo que o progresso e o avanço da tecnologia, tem sido importante para o mundo, como por exemplo, na erradicação de doenças. Mas não pode e não deve, nos tornar máquinas, a serviço de um consumismo desenfreado, que cultua apenas o dinheiro e a beleza.
                                   Por ser um observador nato e um crítico desbocado, tenho notado que as crianças e a juventude de hoje, perderam a noção de respeito, começando dentro de seus próprios lares, onde tratam os seus pais e os idosos, sem as deferências necessárias. Não obedecem as leis constituídas do país e não cuidam do bem comum. Fazem da relação sexual e do uso de drogas ilícitas, uma rotina cotidiana. Tudo desejam e tudo podem, mas não querem obedecer a regras pré-estabelecidas, Confundem liberdade com libertinagem. Elas são uma corrente jogada ao pé do abacateiro, fadada ao esquecimento.
                                   Na minha parca visão de tudo isso, tenho a dizer que em tempos remotos, alguém recebeu de seus antepassados, todos os ricos ensinamentos da boa convivência com o mundo e com as pessoas e não os repassou às gerações futuras. Aquela pessoa ou uma geração irresponsável desprendeu-se dos outros elos, rompendo o compromisso da continuidade. Um dos elos se rompeu, por isso, a corrente do amor e respeito ao próximo perdeu a sua força e a sua razão de existir. Assim, a ferrugem da maldade há muito tempo, já corroeu a corrente (sociedade) e nada mais resta, a não ser esperar o fim dos tempos.
                                   O elo foi quebrado e não há mais conserto. Oremos!

Peruíbe SP, 14 de setembro de 2019.

domingo, 1 de setembro de 2019

DEDINHO DE PROSA

Adão de Souza Ribeiro

                                   Nada mais prazeroso do que conversar. Passar momentos ou horas a fio, numa roda de amigos, trocando conhecimentos, através de um diálogo cortes e sadio. Lá no berço da minha infância, em noites enluaradas, sentava-me na calçada e ficava até altas horas, conversando com as crianças de minha idade. Brincávamos e riamos até cansar. Ali dávamos asas as nossas fantasias inocentes, cujas imagens e fatos, ganhavam formas e permaneciam para sempre, em nossas memórias.
                                   Creio que ali, sentado ao meio fio, interagindo com os amiguinhos, foi o embrião daquilo que mais gosto de fazer hoje: contar histórias tresloucadas, sem compromisso com a verdade. Não conto mentiras, eu apenas fantasio e dou algumas pitadas de humor, nada mais. Agindo assim, torno menos enfadonho a quem devora a leitura. Quando rodeado de amigos, já na tenra idade, brincava de realidade, nas conversas folclóricas, da minha fértil imaginação.
                                   Por isso, sempre achei prazeroso demais, conversar. Em cada assunto que vinha à baila, dava as leve pinceladas e um colorido inexplicável. Discorria sobre todos os temas, sem me aprofundar. Eu ficava encantado com os meus interlocutores, que embalavam em debates deliciosos. Mesmo sem a experiência madura dos adultos, discorríamos sobre fatos interessantes, que, pela firmeza na fala, davam conotação de realidade. Quem tinha o dom da oratória, permanecia mais tempo, dominando o assunto. Mas naquela democracia infantil, todos tiram o direito do contraditório.
                                   Recordo que ali, falávamos da última pelada de futebol, no terreno baldio; do lobisomem que, durante certa madrugada, aterrorizou a família de um dos amiguinhos; das briguinhas inconsequentes, durante o recreio na escola “José Belmiro Rocha”; das broncas do padre octogenário, nas aulas de catecismo; das corridas desembestadas, para fugir do cachorro Mike Tayson; das arapucas que montámos, para apanhar pássaros distraídos; das frutas apanhadas sem autorização, no quintal do “seu” Tanaka, um japonês de poucos amigos; das provocações ao “Cido Bobo”, um menino lendário, só para despertar a sua fúria, e por ai se vai.  
                                   No nosso cotidiano, agíamos de forma descompromissada com o mundo. Os fatos eram desenhados naturalmente para que à noite, pudessem se transformar em intermináveis histórias de fantasia e beleza. Volto a reafirmar que sempre gostei de conversar, sobre todo e qualquer assunto. Discorrer sobre religião, futebol, política, sexo, natureza, transitoriedade da vida, sentimentos humanos, transcendentalismo, mistérios do universo, muito me apraz.
                                   Outro dia, fui surpreendido por uma amiga de infância, numa conversa realizada com os recursos distantes, patrocinados pela frieza da tecnologia. De um jeito sutil, em meio a diálogo, ela foi buscando no baú empoeirado do passado, um assunto por demais delicioso de se discorrer. Entre as doces lembranças, por ela despertada, estava um dos mais nobres sentimentos do ser humano: o amor. Esquivei-me em falar sobre ele, não por medo, mas porque sempre esteve adormecido, na suíte presidencial do meu coração, já envelhecido e cansado. Não queria ressuscitar o que nunca passou de um sonho, de uma quimera. Lutei até o fim, mas tive que admitir que, um dia, existiu. A única vitória que tive com a interlocutora amiga, foi não batizar o nome daquele amor, ou seja, quem era o verdadeiro amor platônico.
                                   Consegui extrair da minha amiga, sem que ela percebesse, que há uma grande especulação e, acima de tudo, uma doce curiosidade, sobre quem foi o grande amor impossível, que habitou o meu coração, na minha tenra infância. No rastro da ética, eu não quis saber quais os nomes, que estavam entre os possíveis, que realmente representa o meu verdadeiro amor platônico. A amiga e eu, conversamos e rimos muito sobre o assunto. Mas, para ela, continua no imaginário e na curiosidade feminina, embora afirme que conhece o amor da minha infância.
                                   Sempre senti um prazer imenso em conversar sobre todo e qualquer assunto. Além desse prazer, adquiri outro, o qual, também me causa um prazer imenso: escrever. É certo que juntou a fome e a vontade de comer. Quando me sinto saudosista ou meio enfadonho, descambo-me a escrever. Ao viajar para dentro de mim, externo aquilo que sinto e penso. “Cogito, ergo sum”, no original francês “Je pense, donc je suis”, ou seja, “Penso, logo existo”, pensamento do filósofo francês René Descartes e está no livro Discurso do Método, de 1637.
                                   Ao discorrer com minha amiga, sobre o mais nobre do sentimento humano, senti-me honrado e lisonjeado. Sou meio arredio, quando o assunto é o meu inesquecível e eterno amor platônico. Mas assim o fiz, nesse dedinho de prosa, para “Não dizer que não falei de amor!”.


Peruíbe SP, 01 de setembro de 2019.