quinta-feira, 25 de abril de 2019

A LIBELULA: VOO E QUEDA

Adão de Souza Ribeiro

                                   Felizardo Feliciano da Graça, o glorioso “Canarinho”. Assim era conhecido o protagonista da história que ora pretende-se contar. O cenário, claro, é de uma cidadezinha interiorana, encravada no interior do Estado. Como de costume, lá acontecia de tudo e, por isso, tornava-se motivo de chacota ou de lenda, com o passar do tempo. Não era à toa, que havia muitos observadores de fatos pitorescos. Dentre eles, esse contador de histórias, que agora se atreve a narrar e espera que todos acreditem.
                                   Canarinho nascera mirrado e dona Joana, a parteira, não acreditava que ele vingaria. Experiente em trazer à vida, centenas de cidadõeszinhos, profetizava que o fedelho não passava da primeira semana de vida. A natureza não o agraciara com beleza e, por isso, desde muito cedo era considerado o patinho feio, dentre os seis irmãos. Por ter nascido no seio de família desprovida de posse, não era percebido pelos moradores do lugarejo. Por muito tempo, padeceu de rejeição.
                                   Mas uma vizinha de nome Georgina, já muito idosa, confortou a genitora, dizendo: “Menino quando nasce feio, fica lindo com o tempo. Já menino que nasce lindo, o tempo enfeiura ele”. Longe de se entristecer, a mãe de Canarinho procurou criar e educar todas os rebentos, com muita responsabilidade e amor. O tempo passou... passou o tempo. Aos poucos, a natureza encarregou de desenhar um menino de beleza estonteante e de uma inteligência invejável. Uma libélula em busca do desconhecido.
                                   Já na puberdade, despertava o interesse incontrolável das fêmeas de sua idade. O patinho feio, preso na casca do desprezo, saíra da clausura e voava garbosamente, feito uma águia, para ser dono do seu próprio destino. Não demorou, para que, as pessoas do lugarejo percebessem o dom de empatia, liderança, conquista e de humanismo daquele menino, que não se vingaria nos primeiros dias de vida. Sem que percebessem, os passos de Canarinho, já estavam inseridos no dia a dia da cidadezinha, encravada no interior do Estado.
                                   Canarinho, com sua alegria e simpatia contagiante, era presença marcante em todos os lugares e eventos da cidade. Não bastasse isso, era disputado palmo-a-palmo, entre as moçoilas, tanto ricas e pobres daquela cidade, onde aconteciam fatos pitorescos. Com voz adocicada e olhar sedutor, aquele violeiro talentoso, levava as pretendentes ao delírio. Entre as rodas de amigos e, principalmente, amigas fogosas e fogueteiras, o nome dele era destaque. Apesar de tudo isso, não sofria de narcisismo.
                                   Os meninos ricos e belos da cidade, embora nutrissem certa inveja, tinham que se curvar aos encantos de Canarinho e atração que as meninas nutriam por ele. O jeito humilde de ser daquele menino pobre derrubava qualquer tese de vingança, por parte de seus oponentes. Ele sabia, através de seu diálogo agregador, conquistar o amor e o respeito de todos. Uma coisa não se podia negar, por onde passava se destacava no meio da multidão. Tinha uma áurea, um brilho divino.  Não era a toa que os meninos o invejavam e as meninas o idolatravam.
                                   Uma dezena de meninas flertava com ele. Era lindo de se ver. De longe sua genitora observava o bem querer que todos nutriam por Canarinho. Ela enchia-se de orgulho e lembrava-se da profecia de dona Georgina: “Fica lindo com o tempo”. Canarinho tinha o privilégio de escolher com quem estaria nas noites domingueiras e enluaradas, na praça matriz. Aquelas não escolhidas respeitavam a sortuda. E ele, por sua vez, sabia agradar a todas, pois no próximo domingo, outra seria agraciada.
                                   Mas um belo dia, como toda história não é perfeita, algo mudaria para sempre a vida do menino, que nascera mirrado e que o tempo encarregara-se consertar o erro do parto. Sem explicação humana ou transcendental, Canarinho introverteu-se, fugiu do mundo cotidiano da cidadezinha e perdeu o gosto pela vida. Quando as moçoilas o procuravam em sua casa, mandava a mãe dizer que ele não estava. No começo a mãe não botou assunto. Pensou tratar-se de manha de menino. Errou.
                                   Quando viu que o quadro se agravou, a mãe procurou médico, padre, pastor, benzedeira e macumbeiro. Fazia uso de simpatia e todo tipo de remédio convencional e caseiro. Ficou de joelhos, rezou e fez promessa. Cozia todo tipo de comida do agrado do filho e convidava os amigos para visita-lo. Convencia as meninas a dar carinho e reavivar o alter ego do menino adoecido. Buscou a sabedoria da ciência e da tecnologia e até na NASA quis ir. Precisava salvar o filho. Não queria vê-lo de novo, mirrado e feio.
                                   Canarinho, menino alegre, cantador e conquistador de corações femininos, não queria mais falar, fugiu da escola e introverteu. A mãe perguntava o que o afligia tanto e ele limitava-se a dizer: “São coisas do destino”. Se pudesse trazê-lo de volta ao ventre e protege-lo, faria. Em suas orações, segurando um terço sagrado, pedia que Deus iluminasse e dissesse o que acontecia com o menino. Foi assim, que num delírio noturno, sem que desse conta, o menino resmungou algo inteligível: “Por que, minha linda Mariazinha, fizestes isso comigo? Por que me desprezastes perante a todos e recusaste o meu amor sincero e puro? Hoje, meu coração não tem mais força de lutar  por você?”  
                                   Foi então que a mãe entendeu que o filho padecia de uma doença grave, degenerativa e irreversível. O filho foi infectado de um vírus agressivo, chamado amor incompreendido e não correspondido. O vírus do amor, afeta diretamente o coração dos menos avisados e dos incautos. Mariazinha era o único antidoto contra o veneno do desprezo e, portanto, só ela poderia devolver-lhe o prazer de viver. Fim!

Peruíbe SP, 25 de abril de 2019

quinta-feira, 18 de abril de 2019

O SÍNDICO DO PRÉDIO

Adão de Souza Ribeiro

                                   Severino, homem de conduta ilibada, é sindico do prédio, denominado “Condomínio Edifício Brasil”. Reeleito em Assembleia Extraordinária, comanda pela segunda vez, um dos prédios mais sofisticados à beira-mar. Aos condôminos (proprietários e/ou inquilinos), o local oferece todo tipo de conforte e luxo, em que pese o alto preço para a manutenção de tais regalias. Ali, na orla da praia, pode-se contemplar a majestade do mar, as ilhas distantes, as chegadas de navios cruzeiros ou mercantes, os turistas e o pousar suave das gaivotas.
                                   Com seus trinta andares, abrigando quatro apartamentos em cada um deles, além do terraço e três tríplex, dispensam comentários no quesito luxo. Extensa garagem, playground, academia, piscina, sauna, sala de jogos e de festa, área de lazer e tudo o que o dinheiro pode oferecer. Zelador, porteiro, garagista, ascensorista, manobrista, vigilante e faxineiro, compõem o quadro de responsabilidades de Severino, o sindico de conduta ilibada.
                                   É de incumbência daquele homem, zelar pela segurança, higiene e moralidade de todos. Manter a ordem e disciplina exige dele, muita firmeza e psicologia. Um general, quando tem que impor a lei e a ordem, mas, ao mesmo tempo, um padre, na hora de aconselhar ou de resolver problemas corriqueiros e de somenos importância. Sabe coordenar o trabalho dos funcionários, com maestria. Por tudo isso, angaria a admiração e o respeito de todos, isto é, dos condôminos e funcionários.
                                   Para assessorá-lo, existe o Conselho Deliberativo e Fiscal. Mensalmente, são realizadas as Assembleias Ordinárias e, em caso excepcional, a Assembleia Extraordinária. É realizado um rateio mensal entre os condôminos, para o pagamento de despesas (manutenção, funcionários e encargos sociais e jurídicos). Todas as ações do prédio, representadas na pessoa do sindico, são estribadas no Regimento Interno. Qualquer alteração de regra pré-estabelecida, deve, antes, ser submetida à apreciação, através de votação de seus moradores.
                                   Nota-se, portanto, que, para que haja uma harmonia, tudo depende do respeito à lei e do principio de amor pelo bem comum. Todos os moradores do “Condomínio Edifício Brasil”, estão compromissados, juntamente com o Severino, o síndico exemplar, de vigiarem diuturnamente pelo bem estar de todos. Quando alguém, voluntária ou involuntariamente, comete um deslize, imediatamente assume a culpa e procura reparar o erro.  O respeito pelo patrimônio, através de sua conservação, bem como, o tratamento cordial entre condôminos e funcionários, são os pilares do progresso e da boa convivência.
                                   Penso que na sociedade, assim como no prédio, todos são responsáveis em cuidar do bem comum. O sindico representa o prefeito, governador e presidente. Os funcionários representam os ministros e secretários. O Regimento interno representa a Constituição. A Assembleia Geral representa a Câmara Municipal, a Assembleia Estadual ou o Congresso Nacional. O Conselho Deliberativo e Fiscal representa o Poder Judiciário. O rateio mensal representa os impostos. Os condôminos representam o povo. Por fim, o prédio representa o país. De uma forma simbólica, o prédio é uma pequena célula de uma grande sociedade.
                                   Se, porventura, algo der errado ali no “Condomínio Edifício Brasil”, quer seja por negligência de algum condômino, quer seja pelo sindico ou algum de seus comandados, há que se assumir a responsabilidade e não transferi-la para o outro. É certo que cada um tem que dar o seu quinhão de colaboração, para que as coisas fluam de forma tranquila e natural. Por exemplo, se no prédio, não zelam pelo elevador, não é justo cobrar o sindico, pelos danos causados. Como administrador, cabe a ele determinar os reparos, mas não a culpa pelo desleixo de quem provocou.
                                   Desta forma, na sociedade, quando a população não zela pela conservação da cidade, como, por exemplo, jogando lixo na rua ou objetos nos rios e valas, agredindo o meio ambiente, depredando o patrimônio público, a culpa não é do administrador. No entanto, se por sua vez, o chefe do executivo não cumpre com seu dever de administrar com seriedade, cabe aos órgãos fiscalizadores e, em especial, a população tomar uma atitude, sempre de forma democrática. Embasada na lei e nunca de cunho pessoal, ferindo a sua integridade física ou moral.
                                   Se não houver uma harmonia entre os administradores e os moradores do “Condomínio Edifício Brasil”, ele tende a desabar a qualquer momento. Nem Deus poderá salvar a derrocada do prédio e todos perecerão. Assim ocorrerá na sociedade onde vivemos, pois, se não haver harmonia e respeito entre os administradores públicos e o povo, a cidade poderá sucumbir do dia para a noite. De que adiantará discutir de quem é a culpa. Não ficará pedra sobre pedra.

Peruíbe SP, 19 de abril de 2019

segunda-feira, 15 de abril de 2019

O BULE

Adão de Souza Ribeiro

                                   Lá na roça, ao romper do sol, era costume tomar um cafezinho, antes de rumar para a lavoura. Sentávamos à beira do fogão à lenha, enquanto dona Quitéria, nossa mãe, despejava num coador de pano, preso à mariquinha, água sobre o pó, enchendo o bule. Embriagados pelo aroma que invadia toda a casa, conversamos demoradamente sobre tudo. E riamos de nós mesmos, dos assuntos e das piadas de nossos irmãos. Tempo bom aquele.
                                   Serafim, nosso irmão mais velho, tinha assunto para tudo. O tal do cafezinho era sempre acompanhado de um quitute, carinhosamente feito por mamãe. Um bolo de fubá, uma mandioca frita na manteiga, um cuscuz de carne seca, uma fatia de pão caseiro, reforçava o que seria alimento até o meio dia, quando íamos almoçar lá na plantação de café. Uma vida nada fácil, porém, muito feliz.
                                   Enquanto era preparado e durante a degustação, recordávamos das coisas cotidianas de nossa casa e da cidade, que tanto amávamos encravada naquele sertão, sem tecnologia e esquecido do mundo. Conhecíamos as mudanças climáticas e tempo de plantio, através das manifestações da natureza, isto é, das mudanças da lua e das estações do ano. Não havia aparelhos de precisão. Lembro-me que meus pais e meus avós, após olharem para o céu ou ao interpretarem o vento, diziam “vai chover” ou “vai esfriar” e não erravam nunca. Suas intuições, eram os aparelhos de precisão.
                                   Em meio às conversas, engasgamos com o gole ou queimávamos a língua de tanto rir. Antes de tomarmos o café, já havíamos arrumados as tralhas, sem se esquecer de nada e de nenhum detalhe. Durante o labor de lavrar a terra, longe da cidade, não dava para retornar e apanhar o que se esqueceu. Dos assuntos discorridos, guardo lembranças dos apelidos, pelos quais todos eram conhecidos no lugarejo. Se, por exemplo, um forasteiro perguntasse onde morava Antônio José de Oliveira, recebia uma resposta negativa. Mas se perguntasse por “Mula Manca”, indicavam com precisão a morada, como se fossem GPS.
                                   E assim, carinhosamente todos tinham seus codinomes e conviviam harmoniosamente entre si. Nas conversas de boteco, nas peladas de futebol, nas cantorias de viola, nas missas domingueiras, nos cortejos fúnebres, nas churrascadas do vizinho, nas intermináveis pescarias, nas folias de reis, onde quer que estivessem, ninguém chamava o outro pelo nome de batismo, mas, sim, pelo apelido. Se fossemos declinar aqui, todos os apelidos daquela cidade, daria para formar mais de duas centenas de time de futebol.
                                   Por exemplo, tinha Roda Gigante, Patrícia do Imborná, Caga Sebo, Zé Lagarto, Peito de Pomba, Batucada, Zé Padre, Santo, Baiu, Mãozinho, Pescoço de Girafa e por aí se vai. Ninguém ficava dodói, quando eram tratados assim. Naquela cidade e na roça, o sistema era bruto e as pessoas nunca foram criadas com nutella. Minha irmã caçula era chamada de Saracura e, nem por isso, vivia emburrada pelos cantos. Quanto mais bravo a pessoa ficava, mais o apelido pegava. Na escola, tudo era resolvido com a célebre frase: “Vou te pegar na saída”. Melhor era seguir o conselho de uma deputada federal: “Não fica nervoso, relaxa e goza”. Ou melhor, como diz uma música sertaneja: “Aceita que dói menos.
                                   Nos tempos de hoje, importaram um termo americanizado para o apelido, ou seja, bullying. Só sofrem dessa doença estrangeira, as crianças e adolescentes, que ficam trancafiados em seu mundo, escravizados pela tecnologia e viciados em internet e celulares. Não experimentam o contato humano e, por isso, não sabem o valor de um abraço, de um sorriso, de um beijo e de uma brincadeira sadia, mesmo que regada por apelido. Não sabem separar o apelido carinhoso ou maldoso. Mais uma vez, surgem os “ólogos de plantão” a fim de buscarem soluções mirabolantes, para um problema criado pelo progresso e pela tecnologia.
                                   Não quero aqui, nesta humilde dissertação, incentivar qualquer tipo de brincadeira maldosa ou humilhante. Mas, por outro lado, pretendo apenas mostrar que é possível entender, que nem tudo vem revestido de maldade. Na minha infância e adolescência, bem como, no trabalho sempre convivi com pessoas de apelidos diversos e sempre nos demos muito bem. Nunca dei ouvidas as polêmicas e nem a mídia manipuladora. Também, nunca tive que “acertar na saída”.
                                   Lá na roça, no dialeto roceis, esse trem chamado bulluying era conhecido como bule. E o tal do bule, como disse inicialmente, era usado para colocar café. O café mais delicioso do mundo, passado no coador de pano, preso à mariquinha e feito por dona Quitéria, nossa mãe.


Peruíbe SP, 15 de abril de 2019.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

AS BORBOLETAS

Adão de Souza Ribeiro

                                   Havia uma casa e, ao derredor dela, um quintal enorme. De tão extenso, tinha a dimensão de uma densa floresta, onde a natureza expunha toda sua exuberância. Não havia quem não se encantasse com a paisagem daquele lugar. Os moradores do vilarejo, que por ali passavam, faziam do local, uma parada obrigatória. Embriagavam em contemplar a fauna e a flora. Até parecia um ponto turístico, embora fosse uma propriedade particular e de acesso restrito.
                                   Na casa de madeira e com teto de zinco, morava Manuel Francisco, tratado carinhosamente pela população de “Chiquinho”. Tudo ali era simples, porque a vida da família era simples. Um fogão à lenha; cama com colchão de palha; um rádio de válvula, da marca Invicto; um poço d´água, perto da porta da cozinha; uma mesa de madeira rústica; um guarda-louça, ao lado do fogão; um quadro de Nossa Senhora Aparecida, pendurado na parede da sala; uma lamparina de querosene, em cada cômodo, para afugentar a escuridão da noite.
                                   E Chiquinho era feliz, naquela casa modesta com o quintal ao derredor. As outras casas vizinhas ostentavam luxo e riqueza, mas a dele, vestida com tanta modéstia, ostentava apenas felicidade. Todas as manhãs, ele debruçava no umbral da janela do quarto, de onde podia contemplar o despertar do sol e a natureza do quintal. O cheiro de relva molhada pelo orvalho da noite penetrava pelos seus pulmões e entorpecia a alma. Os seus olhos infantis percorriam o quintal, até alcançar a linha do horizonte. Tudo era belo, tudo era liberdade e tudo era paz.
                                   As árvores, frutíferas ou não; matos rasteiros e de médio porte, plantas diversas e milhares de flores, das mais variadas espécies, desenhavam um mundo cheio de fantasia e encantos aos olhos do menino simples e de vida simples. As horas passavam rapidamente, do outro lado da cerca, mas ali, os sonhos navegavam lentamente pela imaginação de quem vivia em razão da liberdade e da felicidade de ser criança. Não fosse uma música caipira tocando no rádio, podia-se dizer que ele estava na floresta amazônica.
                                   No alto de uma árvore, por entre os galhos, um ninho de sanhaço protegia os filhotes recém-nascidos. Um calango arisco, corria por entre o mato rasteiro, fugindo de algum predador. Num dos extremos do quintal, uma coleirinha cantava sem parar, acompanhada pela canção de um fogo-pagô. As cenas do entardecer era algo indescritível, com o retorno dos bichos e dos pássaros aos seus aconchegos. Quando chovia, o bailar dos galhos e das folhas, ao som da canção do vento, era de arrepiar a epiderme.
                                   Só Chiquinho tinha aquele privilégio. Não por morar ali naquela casa e naquele quintal, mas, sobretudo, por ter a sensibilidade de entender a natureza e seus encantos. Por respeitar a fauna e a flora e toda a sua biodiversidade, recebia tudo aquilo de presente. Nem imaginava o que era um biólogo, mas agia como tal. De vez em quando, seus pais o surpreendiam divagando e com os olhos fitando o inimaginável. Cuidava da natureza, como quem cuidava de uma criança indefesa no berço. Um menino que vivia além do seu tempo.
                                   Mas o que mais encantava os olhos dele eram as borboletas que bailavam para lá e para cá, naquele quintal imenso. Ora pousavam por entre as folhas de uma arvore frondosa, ora nas flores de pétalas desabrochadas. De diversos tamanhos e cores, davam um ar de leveza, pela forma que desfilavam com suas asas encantadoras. O que mais chamava a atenção de Chiquinho eram os milhares de desenhos, estampados em suas asas. Muitas delas ao abrirem ou fecharem suas asas, formavam desenhos diferentes e aquilo encantava deveras os olhos do menino.
                                   O seu fascínio pelas panapanãs, insetos da ordem da Lepidoptera, nome científico das borboletas, fazia lembrar-se de Dirceu Borboleta, o chefe de gabinete do prefeito Odorico Paraguaçu, da cidade de Sucupira. Ele (Dirceu Borboleta) era obcecado pelo estudo e pela coleção de borboletas. De vez em quando, fugia da prefeitura para caçar suas borboletas. Diferente de Dirceu Borboleta, o Chiquinho apenas cotemplava e se deliciava ao vê-las desfilando e bailando para lá e para cá.
                                   Um dia, quis o destino que Chiquinho crescesse e dali se mudasse. Foi correr o mundo e embrenhar-se pelo desconhecido. No lugar do quintal, deparou-se com arranha-céus. Porém, nunca fugiu da retina de sua memória, o enorme quintal de sua casa e o encanto pelo bailar exótico das borboletas multicores. De vez em quando, sentava-se numa praça qualquer da cidade grande e ali, longe do corre-corre do dia a dia, para navegar em pensamentos de outrora. Lá vinha a imagem das borboletas.  Doces lembranças campesinas dos tempos remotos da infância.
                                   Deixai voar as borboletas e, nas asas multicores e de desenhos fascinantes, todos os sonhos infantis de felicidade e de liberdade, do menino Chiquinho..

Peruíbe SP, 13 de abril de 2019

terça-feira, 9 de abril de 2019

O CAPIM E A CABRA

Adão de Souza Ribeiro

                                   Quando Deus, num momento de divina inspiração, criou o mundo, estou certo de que desenhou de tal forma, que tudo seguisse o curso natural da vida. Pensou e repensou cada detalhe, para que não houvesse necessidade de retoques futuros. Tudo teria que se encaixar perfeitamente, para que a natureza das coisas desse certo e justificasse todo o esforço do Criador. Diz a Sagrada Escritura: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”.
                                   Maravilhado com a sua obra, notou que tudo teria que ser contemplado e disse; “Faça-se a luz”. Assim tirou a terra da escuridão. Passo a passo, foi desenhando o que achava bom e belo, isto é, o mar, a vegetação, o sol, a lua, os animais terrestres e aquáticos e as aves. Vendo que tudo estava bom, criou o homem dizendo que ele deveria dominar a terra e tudo o que nela existia. Por fim, para que ele não morresse de tédio, criou a mulher e deu de presente a ele.
                                   Passaram-se os anos ou milhares de anos, sei lá, quando o primeiro homem, cujo nome me dá arrepios, em desobediência ao Criador, resolveu fazer um “sapeca ia ia” com sua fêmea e gerou filhos. Daquele tempo em diante, a terra infestou-se de homo sapiens e ninguém mais teve sossego, nem a terra e nem seus habitantes.  Até então, tudo era beleza, harmonia e paz. Deus cuidava em suprir as necessidades de tudo que havia sobre a terra. Não havia intriga entre os seres vivos e a natureza não sofria os solavancos da destruição.
                                   E assim, sem que percebêssemos, a terra amanhecia e anoitecia todos os dias e, em razão disso, os anos foram se passando, até chegarmos aos tempos atuais. Como Deus ordenou que o homem devesse dominar a terra e tudo que nela existisse, deu no que deu. Penso que ele disse dominar no sentido de cuidar e administrar, mas não de mandar e destruir. Hoje vejo que tudo aquilo que desenhou com carinho, o homem veio e passou uma borracha por cima, apagando tudo de bom que Ele nos ofereceu em sua divina bondade.
                                    Hoje a terra, primeira manifestação do poder divino, está sendo destruída e cobrando tudo o que foi tirado da natureza. Os homens, ao invés de cuidarem de tudo o que foi dado de graça e, acima de tudo, de se amarem e se respeitarem, estão se auto devorando. Não se pratica mais o amor, respeito, benevolência, fé e outras tantas manifestações da alma e do coração. A ganância, madrasta de todo desentendimento, vem se perpetuando a cada dia. A natureza está na UTI e com seus últimos momentos de vida, contados. O homem, feito a imagem e semelhança do Criador, há muito tempo deixou de dominar (administrar/cuidar) a terra. Triste fim!
                                   Chegamos a um ponto em que os homens (homem e mulher) não se entendem mais. Quando Deus, em seu divino poder, criou a mulher, disse: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele” (Genesis 2:18). Hoje, deixou de ser uma ajudadora para ser uma inimiga voraz, isso por influência do progresso pernicioso e de uma mídia inescrupulosa. Deus disse uma coisa “far-lhe-ei uma ajudadora idônea” e o mundo avançado de hoje diz: “far-lhe-ei uma inimiga mortal”.
                                   Não bastasse isso, os filhos atuais, descendentes dos filhos do primeiro sapeca ia ia, daquele casal do Jardim do Eden, também estão se revoltando contra os seus genitores. Não os tratam com deferência, chamando-os de senhor e senhora; não tomam benção ao se levantarem ou deitarem; não escutam conselhos quando erram; não tratam com amor e respeito os mais velhos ou idosos, enfim, parecem que nasceram de uma chocadeira.
                                   Outro dia, assistindo por acaso, um programa de televisão, que versa formar opinião distorcida da realidade, fiquei estarrecido com o que vi e ouvi. Dizia que os filhos podem e tem o direito de processar os pais, quando eles (pais) agem contra as suas vontades (filhos). Os pais não podem monitorar os filhos por onde andam e com quem se relacionam, não podem verificar o que trazem em suas bolsas ou o que postam nas redes sociais, através de seus celulares e mais um monte de asneiras, porque isso é quebra de privacidade. Já jogaram a esposa contra o marido e agora querem jogar os filhos contra os pais.
                                   Disse o Criador com relação aos filhos, principalmente os rebeldes: “Ensina a criança no caminho em que deve andar e, ainda, até quando envelhecer não se desviará dele”. (Provérbios 22:6). Ora diante do ensinamento divino, conclui-se que a criança deve obediência aos pais e não ao contrário, como se pretende ensinar o mundo moderno, representado por uma mídia nociva e pecaminosa. A mídia quer criar um novo mundo desequilibrado e não com tudo perfeito e harmonioso, como fez o Criador Eterno, num momento divino de inspiração.
                                   Diante de tudo o que se apresenta, neste mundo moderno, vejo que o capim está comendo a cabra e não a cabra comendo o capim, conforme foi desde o início dos tempos.


Peruíbe SP, 09 de abril de 2019. 

quinta-feira, 4 de abril de 2019

TEMPO DE ESPERANÇA

Adão de Souza Ribeiro

O tempo passou

Passou o tempo

Com o vento

Então ele voou.

Fez meu sonho

Ficar para traz

Isso não se faz

E fiquei tristonho.

A amada partiu

E nada disse

Chorei tão triste

A beira do rio.

Aprendi na vida

Que tudo passa

Até acho graça

Do que ainda fica.

Fica a lembrança

Do que é belo

E do castelo

Da minha esperança.


Peruíbe SP, 03 de abril de 2019

terça-feira, 2 de abril de 2019

A PATRICINHA DO IMBORNÁ

                             Desde que me entendo por gente, as fêmeas sempre gostaram de serem cortejadas e disputadas pelos machos da sua espécie. Seja do reino humano ou animal, todas queriam ser desejadas. A natureza é a maior escola, para se observar isso, pois ela nos dá grandes lições de vida. E esse instinto do ser vivente, faz com que se aproximem e a espécie prolifere. Tem a chamada dança do acasalamento, mas deixa para lá. Isso fica para outro momento, para uma prosa mais detalhada.
                                   Para atrair o macho, usam todos os recursos disponíveis no universo. Derramam todo charme e se fingem de difíceis, para valorizarem a conquista. Ao final do rito sedutor, só se entregam para o mais galanteador e ousado. Aquele que enfrenta os rivais, sem medo, leva o prêmio almejado. Para elas, nada mais belo e romântico, do que serem disputadas por dois sanguinários e famintos gladiadores.
                                   Não importa se os pretendentes são ricos ou pobres, lindos ou feios, inteligentes ou ignorantes, mas, na realidade, serem desejadas é o ápice de tudo. E para que isso tenha seu glamour, o cenário pode ser um resort, um clube, um cruzeiro marítimo ou simplesmente o jardim da praça matriz. Basta um coreto, canteiros de flor, noite enluarada e um barzinho aconchegante, do outro lado da rua, como a “Cantina do Padre”.
                                   Naquele rincão, encravado no interior do Estado, nas noites enluaradas dos finais de semana, as moçoilas desfilavam garbosamente pela praça matriz. Todas aquelas beldades, vestidas em suas roupas de gala, cabelos delicadamente penteados, rostos maquiados e lindos sapatos de princesas, eram flertadas pelos rapazes do lugarejo. As de afortunadas e as menos abastadas misturavam-se em grupos diversificados.
                                   Durante a semana, todas as manhãs e antes do nascer do sol, as de poucas posses, embarcavam em caminhões de boia-fria ou á pé, rumo às lavouras de sítios e fazendas ao derredor da cidade. Chapéu de palha, chinelo surrado, roupas de chita, adornavam o corpo. Uma enxada e um facão, acrescidos de um imborná, desenhava a simplicidade delas e dos rapagões da minha terra. No imborná, uma marmita de alumínio, uma colher, um cantil de água, uma garrafa de café e um pedaço de pão amanhecido. Um alimento simples, para simples trabalhadores rurais.
                                   No sol a pino, capinavam o mato da terra ou faziam a colheita nas lavouras. O corpo quente e suado, a mão calejada, o pé inchado, as dores nas costas, enriqueciam os patrões. Só ao cair da tarde, retornavam aos lares. Depois de um banho demorado e, ainda, após degustar uma comida simples, cozida no fogão à lenha, repousavam o corpo carcomido pelo tempo, em colchões de palha. Assim era a rotina cotidiana daquelas moças, que no final de semana, desfilavam pela praça matriz, derramando seus charmes, em roupas de gala, a fim de conquistarem seus pretendentes.
                                   Às vezes, os rapazes frequentavam a cidade vizinha e vice-versa. Naquelas idas e vindas, os encontros podiam terminar em briga entre os machos, isso em razão da disputa por uma fêmea ou nas bebedeiras fora de controle. Quando os machos da cidade vizinha visitavam a nossa, as fêmeas arrastavam as asas para o lado deles, ignorando os pratos da casa. Menosprezam os meninos que, em companhia delas, lidavam na lavoura e comiam o pão que o diabo amassou com o rabo. E isso causava ira e ciúmes. Sabiam que, um dia, ou melhor, que uma noite, isso não iria terminar bem. Macho sabe como é.
                                   Patrícia era a mais atinada e a que, dentre as outras, esnobava sem escrúpulos os meninos. Certa feita, Lucas resolveu vingar-se daquela menina, de tal forma que ficasse marcado para sempre. Lá na roça, depois do almoço, sem que percebessem, ele escondeu o imborná, com tudo que havia dentro. Ao término da lida, ela procurou até a exaustão e, não encontrando, deu-se por vencida. Entristecida, providenciou outro para o dia seguinte. Aos poucos, foi esquecendo-se do velho e saudoso imborná. O que teria acontecido? Perdeu o adereço, mas não a coragem de continuar trabalhando como boia fria, na lavoura de café do seu Tanaka.
                                   E lá se foram tantos finais de semana. Continuaram os passeios na praça matriz e flertes inocentes com os meninos da cidade, ou melhor, com os pratos da casa. Tudo seguia, conforme mandava o roteiro. A alegria estava estampada no rosto de todos. Mas numa bela noite, estando os jovens da cidade vizinha flertando com nossas moçoilas, a velha cena se repetiu. Lideradas por Patrícia, colocaram os nossos pratos da casa, para escanteio.
                                   De repente, sem que se esperasse, Lucas surgiu do nada e trazia consigo, o imborná. Estando um pouco distante do grupo, rodeado pelos rapazes da cidade vizinha, onde Patrícia derramava o seu charme, sem dar a merecida atenção aos da casa, Lucas balançou fortemente os apetrechos da menina. Ouvia-se o barulho da marmita, da colher, do cantil e da garrafa de café. O som ecoou por toda a praça e pairou um silêncio estonteante.
                                   Em seguida, Lucas gritou em tom provocador: “Patrícia, aqui está o seu imborná, que esqueceu lá na roça”. Os meninos da cidade caíram numa gargalhada incontrolável e os visitantes, nada entenderam. Estarrecida, Patrícia derramou em choro e não mais em charme. A sua roupa de gala não conseguiu esconder tamanha humilhação. Naquele momento, diante de seus pretendentes, deixou de ser uma patricinha, uma falsa filha demadame, para ser simplesmente, uma menina simples como todas as outras de sua cidade. Sentiu na pele, a dor de ser humilhada. O aprendizado veio às duras penas.
                                   A história foi além das fronteiras da praça matriz, para transforma-se em chacota. Daquele dia em diante, Patrícia passou a ser conhecida no lugarejo, como “Patricinha do imborná”.  No dia seguinte, vestiu-se de boia-fria e foi desfilar seu charme, nas ruas do cafezal do seu Tanaka ou do milharal do seu Yamashiro. Até as meninas de posse, aprenderam a lição e passaram a tratar todos os rapazes, ou melhor, os pratos da casa, com a mesma deferência, que dispensavam aos visitants.
                                   Até hoje, andando pelas praças e ruas das cidades grandes, deparo-me com tantas “Patricinhas do imborná”. As de hoje, assim como as de minha infância, não entendem que a riqueza não está nas roupas de gala, que embeleza o corpo escultural e nem na maquiagem, que esconde a repugnante arrogância, mas, sim, na simplicidade que cada uma traz dentro do seu imborná, chamado coração.

P.S: Os nomes são fictícios e a semelhança trata-sede mera coincidência.