terça-feira, 2 de abril de 2019

A PATRICINHA DO IMBORNÁ

                             Desde que me entendo por gente, as fêmeas sempre gostaram de serem cortejadas e disputadas pelos machos da sua espécie. Seja do reino humano ou animal, todas queriam ser desejadas. A natureza é a maior escola, para se observar isso, pois ela nos dá grandes lições de vida. E esse instinto do ser vivente, faz com que se aproximem e a espécie prolifere. Tem a chamada dança do acasalamento, mas deixa para lá. Isso fica para outro momento, para uma prosa mais detalhada.
                                   Para atrair o macho, usam todos os recursos disponíveis no universo. Derramam todo charme e se fingem de difíceis, para valorizarem a conquista. Ao final do rito sedutor, só se entregam para o mais galanteador e ousado. Aquele que enfrenta os rivais, sem medo, leva o prêmio almejado. Para elas, nada mais belo e romântico, do que serem disputadas por dois sanguinários e famintos gladiadores.
                                   Não importa se os pretendentes são ricos ou pobres, lindos ou feios, inteligentes ou ignorantes, mas, na realidade, serem desejadas é o ápice de tudo. E para que isso tenha seu glamour, o cenário pode ser um resort, um clube, um cruzeiro marítimo ou simplesmente o jardim da praça matriz. Basta um coreto, canteiros de flor, noite enluarada e um barzinho aconchegante, do outro lado da rua, como a “Cantina do Padre”.
                                   Naquele rincão, encravado no interior do Estado, nas noites enluaradas dos finais de semana, as moçoilas desfilavam garbosamente pela praça matriz. Todas aquelas beldades, vestidas em suas roupas de gala, cabelos delicadamente penteados, rostos maquiados e lindos sapatos de princesas, eram flertadas pelos rapazes do lugarejo. As de afortunadas e as menos abastadas misturavam-se em grupos diversificados.
                                   Durante a semana, todas as manhãs e antes do nascer do sol, as de poucas posses, embarcavam em caminhões de boia-fria ou á pé, rumo às lavouras de sítios e fazendas ao derredor da cidade. Chapéu de palha, chinelo surrado, roupas de chita, adornavam o corpo. Uma enxada e um facão, acrescidos de um imborná, desenhava a simplicidade delas e dos rapagões da minha terra. No imborná, uma marmita de alumínio, uma colher, um cantil de água, uma garrafa de café e um pedaço de pão amanhecido. Um alimento simples, para simples trabalhadores rurais.
                                   No sol a pino, capinavam o mato da terra ou faziam a colheita nas lavouras. O corpo quente e suado, a mão calejada, o pé inchado, as dores nas costas, enriqueciam os patrões. Só ao cair da tarde, retornavam aos lares. Depois de um banho demorado e, ainda, após degustar uma comida simples, cozida no fogão à lenha, repousavam o corpo carcomido pelo tempo, em colchões de palha. Assim era a rotina cotidiana daquelas moças, que no final de semana, desfilavam pela praça matriz, derramando seus charmes, em roupas de gala, a fim de conquistarem seus pretendentes.
                                   Às vezes, os rapazes frequentavam a cidade vizinha e vice-versa. Naquelas idas e vindas, os encontros podiam terminar em briga entre os machos, isso em razão da disputa por uma fêmea ou nas bebedeiras fora de controle. Quando os machos da cidade vizinha visitavam a nossa, as fêmeas arrastavam as asas para o lado deles, ignorando os pratos da casa. Menosprezam os meninos que, em companhia delas, lidavam na lavoura e comiam o pão que o diabo amassou com o rabo. E isso causava ira e ciúmes. Sabiam que, um dia, ou melhor, que uma noite, isso não iria terminar bem. Macho sabe como é.
                                   Patrícia era a mais atinada e a que, dentre as outras, esnobava sem escrúpulos os meninos. Certa feita, Lucas resolveu vingar-se daquela menina, de tal forma que ficasse marcado para sempre. Lá na roça, depois do almoço, sem que percebessem, ele escondeu o imborná, com tudo que havia dentro. Ao término da lida, ela procurou até a exaustão e, não encontrando, deu-se por vencida. Entristecida, providenciou outro para o dia seguinte. Aos poucos, foi esquecendo-se do velho e saudoso imborná. O que teria acontecido? Perdeu o adereço, mas não a coragem de continuar trabalhando como boia fria, na lavoura de café do seu Tanaka.
                                   E lá se foram tantos finais de semana. Continuaram os passeios na praça matriz e flertes inocentes com os meninos da cidade, ou melhor, com os pratos da casa. Tudo seguia, conforme mandava o roteiro. A alegria estava estampada no rosto de todos. Mas numa bela noite, estando os jovens da cidade vizinha flertando com nossas moçoilas, a velha cena se repetiu. Lideradas por Patrícia, colocaram os nossos pratos da casa, para escanteio.
                                   De repente, sem que se esperasse, Lucas surgiu do nada e trazia consigo, o imborná. Estando um pouco distante do grupo, rodeado pelos rapazes da cidade vizinha, onde Patrícia derramava o seu charme, sem dar a merecida atenção aos da casa, Lucas balançou fortemente os apetrechos da menina. Ouvia-se o barulho da marmita, da colher, do cantil e da garrafa de café. O som ecoou por toda a praça e pairou um silêncio estonteante.
                                   Em seguida, Lucas gritou em tom provocador: “Patrícia, aqui está o seu imborná, que esqueceu lá na roça”. Os meninos da cidade caíram numa gargalhada incontrolável e os visitantes, nada entenderam. Estarrecida, Patrícia derramou em choro e não mais em charme. A sua roupa de gala não conseguiu esconder tamanha humilhação. Naquele momento, diante de seus pretendentes, deixou de ser uma patricinha, uma falsa filha demadame, para ser simplesmente, uma menina simples como todas as outras de sua cidade. Sentiu na pele, a dor de ser humilhada. O aprendizado veio às duras penas.
                                   A história foi além das fronteiras da praça matriz, para transforma-se em chacota. Daquele dia em diante, Patrícia passou a ser conhecida no lugarejo, como “Patricinha do imborná”.  No dia seguinte, vestiu-se de boia-fria e foi desfilar seu charme, nas ruas do cafezal do seu Tanaka ou do milharal do seu Yamashiro. Até as meninas de posse, aprenderam a lição e passaram a tratar todos os rapazes, ou melhor, os pratos da casa, com a mesma deferência, que dispensavam aos visitants.
                                   Até hoje, andando pelas praças e ruas das cidades grandes, deparo-me com tantas “Patricinhas do imborná”. As de hoje, assim como as de minha infância, não entendem que a riqueza não está nas roupas de gala, que embeleza o corpo escultural e nem na maquiagem, que esconde a repugnante arrogância, mas, sim, na simplicidade que cada uma traz dentro do seu imborná, chamado coração.

P.S: Os nomes são fictícios e a semelhança trata-sede mera coincidência.

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