Numa cidade, onde nada
acontecia de novo, as noites eram presenteadas com as mesmices de sempre. Durante
a semana, todos enfurnados em seus lares, dormindo o sono dos anjos ou
assistindo novelas, as quais pregavam um desserviço às famílias. Ao andar na
rua, não se via uma viva alma, apenas a lua reluzente, como única companheira.
Para as crianças, depois de um dia cansativo
de tantas brincadeiras, não tinha outra alternativa, senão dormir. Assim
fazíamos, logo depois do jantar. O amanhã era um novo dia. Por falar em dormir,
sonhávamos todos os sonhos possíveis durante o sono. Afinal de contas, o mundo
da criança é repleto de pureza, onde só adentra nele, os retos de coração.
Eu via nos meus amigos de infância, esta
simplicidade e esta inocência impar. Eu posso afirmar que José Marivaldo, meu
colega do Grupo Escolar “José Belmiro Rocha”, era um deles. Certa feita, eu
lembro que aportou na terra natal, um parque de diversões, denominado “Reino
Encantado”. Só a notícia da chegada, foi uma grande festa. Era algo novo, que
acontecia e a cidade sairia daquela mesmice de sempre.
Passado o período da montagem, isto é, num
terreno baldio, onde hoje está fincado o hospital, até que enfim, chegou à
noite de estreia. Durante o dia, um fusca lata-velha, com seu alto-falante, percorreu
rua por rua, anunciando a inauguração. Aquilo chegou aos ouvidos de José Marivaldo.
De repente, nada mais que de repente, ele estourou o porquinho (cofrinho de
vidro, para guardar moedas), de dona Georgina, sua mãe, e surrupiou o que ela
tinha economizado. Quando o parque de diversão ou circo se instalava na cidade,
abria-se a temporada de caça às moedas.
Na noite de estreia, as dezenas de luzes, o
som em enormes decibéis dos alto-falantes, os brinquedos coloridos, em
movimento, chamavam atenção. Aquilo tudo era um convite para os conterrâneos saírem
de suas clausuras. Por algum tempo, seria ponto de encontro da sociedade rica
ou pobre.
Lá estava José Marivaldo, encantado com tudo
aquilo, pois seus olhos brilhavam ao ver o chapéu mexicano, o tobogã, a roda
gigante, os carros bate-bate, o quarto do terror, o barco enorme pra lá e para cá
e a montanha russa. Isso sem contar com a barraca de tiro ao alvo, cujas balas eram
feitas de cortiças e a pescaria com peixes de papel. Lá também se vendia pipoca,
maçã do amor, pirulito, em forma de guarda-chuva, feito com melaço de açúcar,
algodão doce e tanta coisa, que não me lembro. Afinal de contas, minha infância
se vai longe.
José Marivaldo, meu amigo de infância, estava
com dinheiro no bolso e não sabia com qual brinquedo iria gastar aquela
dinheirama. Por fim, escolheu a roda gigante. Como se sentiria lá no alto? Das
alturas, poderia visualizar toda a cidade e ver o “José Belmiro Rocha”, o Ginásio
Estadual, a Praça Matriz, o sítio Assae Izaka, a Granja Helvetia, a fazenda Suíça
e o campo de futebol? E se aquela gerigonça quebrasse o que seria dele? Iria se
esfacelar todo, em meio às ferragens e chegar aos pedaços no solo? Tristeza aos
pais, quando soubessem que ele saiu escondido. Sentiu um misto de curiosidade e
medo.
Por ver pessoas sorrindo ao sair dela, criou
coragem e lá foi ele. Todo feliz, viu as pessoas ficarem pequenas à medida que
subia. Seus olhos admiravam a pequena e querida cidade do alto, chegou a ver a
sua casa e quis acenar para família, como se ela pudesse ver sua aventura.
Mas alegria de pobre dura pouco. De repente a
roda gigante parou de girar, no momento exato, que ele estava no topo. Ao
parar, a cadeira balançou. Em frações de segundos, um turbilhão de imagens, inundou
sua mente. Marivaldo sentiu-se caindo e morrendo. Um calafrio tomou conta do
seu corpo e uma tontura imensa, ofuscou sua visão. O Estômago embrulhou e sem
poder dominar os seus instintos físicos, borrou-se (defecou-se) todinho. Quem
estava lá embaixo, pode ver o resultado do medo.
Quando chegou ao solo e muito envergonhado, o
José Marivaldo saiu correndo e fugiu entre a multidão, de cabeça baixa. A
partir daquela noite fatídica, José Marivaldo, o meu amigo de infância e de
classe escolar, recebeu o apelido de “Roda Gigante”. Ele esbravejou, esperneou
e xingou, mas o codinome ficou encravado na sua pele, como a marca de um
ferrão. Para tentar aliviar o peso da chacota, ele dizia que foram bolinhas de
gude, que caíram do bolso.
Quando deparo com parque de diversão, reporto-me
à terra natal e daquele brinquedo, onde o meu amigo José Marivaldo foi
imortalizado com o nome de Roda Gigante. A danada da roda gigante girou e
continuou a percorrer o mundo. Mas o meu amigo continuou ali na terra natal, como história
viva do lugarejo.
“Ao ver a roda gigante, girando sem cessar.
Encontrei momentos felizes, que passei na roda girar, na roda a girar. O povo
se divertia, as crianças a cantar. E a roda gigante girava, girava sem cessar,
sem cessar. Eu também entrei na roda, pensando em me divertir, encontrei com a
garota, que também foi distrair...Compreendi, que não é sempre que o primeiro
amor nos trás, a felicidade santa, ao coração de um rapaz.” – ouça a música “Roda
Gigante”, de Arthurzinho.
Hoje as lembranças giram no meu pensamento,
como aquela roda gigante da velha infância.
Peruíbe SP, 04
de setembro de 2021.