sábado, 30 de maio de 2020

SEDUTORA AFRODITE


Adão de Souza Ribeiro


Lá vem Afrodite cantando hino,
A falar de amor, coisa sem nexo.
Mas ali, ainda feito um menino,
De nada sei, que é desejo e sexo.

Calma e sedutora, por ser mulher,
Vem e se enrola no meu pescoço.
Oferece-me tudo o que bem quer
Eu não posso e fico em alvoroço.

Hipnotizado com tamanha beleza,
Caio nos braços, perco virgindade.
Amor perdoa o erro, louvado seja.
E lá se vai a pureza e a mocidade.

Se um dia, quis fugir de Afrodite,
Do seu corpo ardendo em chama.
Ela toda nua e com dedo em riste,
Disse: “Menino volta já pra cama”

Peruíbe SP, 31 de maio de 2020.



terça-feira, 26 de maio de 2020

MINHA SINA


Adão de Souza Ribeiro
O amor bateu à minha porta
Meu coração distraído abriu
Nada disso mais me importa
Se é avassalador como o rio.

E sem que se espere, surge.
De tudo vai tomando conta,
Como sentimento que urge
Deixando a vida meio tonta.

Não devia ter dado o abrigo,
E sem dó mandado embora
Só assim não corria o perigo
De sofrer como sofro agora.

Se sofrer é o meu desalento,
E amar é a minha triste sina.
Vou ser feliz ainda é tempo,
Nos braços daquela menina.

Peruíbe SP, 26 de maio de 2020.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

PITOCO, O PENSADOR


Adão de Souza Ribeiro

                   Meu nome é Pitoco. Sou da raça canina, mas de classe social pobre. Por ser ralé, chamam-me de “vira-lata” ou modernamente de “fura-saco”. Não me abalo pelos estereótipos, nos quais me matriculam. É bom que se diga que, “vira-lata” é fruto de uma miscigenação de raças. Num país onde não se tem uma raça humana pura; no mundo animal, não haveria de ser diferente. Como medir um cachorro pelo formato do focinho, aparência do pelo ou da beleza da cauda. Concordam?
                   Ao pesquisar minha genealogia e meus antepassados, descobri que do lado paterno sou da raça bull terrier e que, do materno, sou da raça pastor de shetland. No seio da família, conta à lenda que meu bisavô materno, de nome Serguei, era um lord do Império Czarista e que minha bisavó paterna, de nome Mayla, era arquiduquesa do Império Austríaco. Vê-se, portanto, que embora um vira-la, na minha veia, corre sangue nobre.
                   É sabido que a vida de cão não é fácil. Vigiar a casa, enquanto os donos dormem o sono dos anjos; comer as sobras do almoço, colocadas num pote sujo e fétido; dormir na varanda destelhada, em noites de chuva e frio; lutar contra as pulgas e carrapatos, numa coceira interminável; latir até perder a voz, para afugentar as visitas indesejáveis, não é para qualquer um. Por isso é que vivo cãosado dessa vida canina.
                   Vivo preso nesse corpo que não é meu. Queria ter nascido um leão, pois tenho sonho de ser rei dos animais. Ou então, o sabiá-laranjeira, de coloração simples e canto e melodioso, para representar minha pátria amada. De verdade, se pudesse escolher, sem medo de ser feliz, queria ser um falcão- peregrino, para fugir das mesmices do dia a dia, numa velocidade descomunal, como num toque de mágica. Dói só de pensar que serei um cachorro até morrer. E o que é pior, eu morro de raiva em pensar que minha sina é latir incansavelmente. Um vira-lata, pasmem!
                   Não queria ter vindo nessa terra. Poderia ter nascido noutro planeta ou galáxia e estaria livre de tudo isso. Não passaria fome e nem sofreria chacotas, sendo chamado de magricelo ou pestilento. Chute na bunda dói e como dói! Se eu durmo o dia inteiro, para fica atento à noite, levo chute e sou chamado de preguiçoso. Se lato á noite, para proteger os donos, contra os espectros da escuridão, levo chutes e gritam: “Vai dormir, lazarento!”. A vida de cão não é fácil.
                   Quando Serafim e Filomena, um lindo casal e meus donos desde a infância, saem para passear comigo pela praça, para que eu possa desestressar ou dar minhas “cagadas” e mijadas matutinas, prendem-me a uma coleira, mas sem focinheira. Quanto à coleira, nunca questionei, pois sei que sou meio levado. Posso correr, porque está no meu DNA e me perder pelas ruas do bairro. Até penso que fazem por amor e que não conseguem ficar longe de mim. Até sinto-me lisonjeado.
                   Nos meus desfiles matutinos, onde posso exibir certo charme e meu dom de conquista, eu percebo que outros canis lúpus familiaris, usam focinheira e enforcadores. Entristeceu-me ver aquilo, mas como não tenho voz ativa, apenas canina, nada pude fazer, para tirá-los daquela humilhação. Fiquei bem quieto, pois se latisse em sinal de protesto, poderia ser candidato a usar tais assessórios. Livrai-me desse mal e danei a rezar.
                   Quis saber a razão do uso da tal focinheira. Ao frequentar bibliotecas e sites de informação futurista, descobri que existem leis mundanas, ou melhor, humanas que determinam o uso daqueles assessórios, pois entendem que somos raças violentas e, portanto, de pouca amizade. Podemos atacar os seres humanos, uma vez que somos muito briguentos e antissociais. Quando não temos humanos para atacar, atacamos os nossos conterrâneos.
                   Dizem os humanos, que somos um mamífero carnívoro da família dos canídeos, uma subespécie da família dos lobos cinzentos, que surgiram há mais de cem mil anos no continente asiático, e talvez o mais antigo animal domesticado pelo ser humano. Também, que somos ferozes e vorazes, portanto, indomáveis. Então se somos tudo isso, a culpa é dos seres humanos e não nossa. Os humanos matam seres da mesma raça, diferente dos animais que só matam de outras raças e com o único desejo de saciar a fome. Revoltado, pensei: “Quem devia usar a focinheira eram eles!”.
                   Dia desses, ao fazer o passeio matutino para meu relaxamento corriqueiro, com minhas “cagadas” e mijadas de praxe, fiquei estupefato, ao ver meus donos e todos os seres humanos do planeta, fazendo uso de focinheira. Isso causou um rebuliço na mente. Serão que eles passaram a se atacar ferozmente e, por isso, leis humanas determinaram o uso constante de tal assessório? Creio que a partir de agora, em que pese o motivo, entenderão o desconforto e a humilhação de andarem com essa “tranqueira” para lá e para cá. Não tardará e serão obrigados a usarem coleira e enforcador, do modelo Fica em Casa.
                   Vão pagar tim tim por tim tim, todas as maldades que fizeram comigo e com meus conterrâneos. Cumprirão a pena de se sentirem sufocados com a focinheira e de não poderem demonstrar seus sentimentos através da expressão facial. Vão sentir na pele como é dura a clausura de ficarem presos em casa e usarem focinheira na rua. Hão de entender que vida de cão não é fácil não.
                   Melhor é eu parar de ficar pensando nisso, senão fico louco.

Peruíbe SP, 21 de maio de 2020.

sábado, 16 de maio de 2020

O VOO DA FELICIDADE


Adão de Souza Ribeiro

Felicidade é um pássaro tão vagabundo,
Voa por ai, assim sem bússola e destino.
Sobrevoa universos ou mares profundos
Plana livre e leve como sonho de menino.

Não se prende a nada do que há na terra
Nela se encerra a nossa maior perfeição.
Sem ela, nós vivemos mais longa guerra,
Que sufoca a paz, que mora no coração.

Pássaro que não prende e nem se doma,
Que flutua por ai, sem regra e sem ninho.
E não sobrevive dentro da velha redoma,
Construída num coração tão mesquinho.

Pássaro vagabundo, chamado felicidade,
Voa por uma eternidade ou um segundo.
A doce beleza de suas asas tem a idade,
Do menino sonhador de nome Raimundo.

Peruíbe SP, 16 de maio de 2020.  

quinta-feira, 14 de maio de 2020

MINHAS INCABULÂNCIAS



Adão de Souza Ribeiro

Ultimamente, ando meio enfadonho,
Encabulado por tudo o que acontece.
Nas solitárias madrugadas até sonho,
Com mundo do além e extraterrestre.

Tem sido assim, uma vida de açoite,
Na luta desigual e flagelos sem fim.
E por quanto tempo passarei a noite
Afugentando os monstros de mim?

Monstros que na infância eu não tinha
E se tinha eram levados na brincadeira,
Às vezes eu passava à tarde inteirinha,
Brincando de criança, correndo ladeira.

Entregar a infância ao mundo moderno
Certo é que foi a pior loucura que eu fiz
Então vou virar a página deste caderno
Para de manhã, possa voltar a ser feliz.

Peruíbe SP, 14 de maio de 2020.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

PACOTE DE GRATIDÃO


Adão de Souza Ribeiro

Maria, a minha doce irmã,
Adorava em ir ao mercado.
Então ia todas as manhãs,
Como se fosse rito sagrado.

Chega com o pacote cheio,
De coisas que eu não sabia
Bem curioso e sem rodeio,
Dizia: O que é isso Maria?

Isso tudo para o sustento,
Que corpo e alma precisa.
E não se vive a contento,
O que se nega nesta vida.

As graças da irmã Maria,
De nome Maria da Graça.
Com o pacote de iguaria,
Era só atravessar a praça.

Trazia na mão a bondade,
E o que cabia no coração.
Só não sabia a sua cidade
Era o pacote de gratidão!!

Peruíbe SP, 11 de maio de 2020.

sábado, 9 de maio de 2020

AMOR DE BERÇO


Adão de Souza Ribeiro

Quando eu era pequeno
E nem gatinhar eu sabia.
Ela de olhar tão sereno,
Cuidava com sabedoria.

Afugentava o pesadelo,
Que rondava meus dias.
Tinha tanto amor e zelo
As dores nem percebia.

E eu cochilava no berço,
Mas ela rezava por mim.
Fracionada no seu terço,
Em tantas noites assim.

Se foram tantas manhãs.
Eu sei que o tempo passa
Mas continua minha mãe
E para mim só isso basta.

Peruíbe SP, 09 de maio de 2020.

SONHAR É PRECISO


Adão de Souza Ribeiro

Eu queria ser eterno
De uma vida sem fim
Escrever no caderno
Sonhos só pra mim.

Rabiscar belo verso
Sem métrica e rima.
Assim me despeço,
Logo da minha sina.

Sina de quem sofre,
Deste amor e prazer
E se perde no norte
Lá se vai fazer o quê

Eu queria só queria,
Assim ser tão alegre
Livre como a cotovia
E olhar de até breve.

E na tal da brevidade
Viver só o necessário
E ver que a mocidade
Mora lá no dicionário.                                                                         

Peruíbe SP, 08 de maio de 2020.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

PICUINHAS DE CASAL!


Adão de Souza Ribeiro

- Oi amor, você não presta.
E eu respondia: Tudo bem.
Calmo e sem muita pressa:
Se prestasse graça não tem.

Sem coração é um perdido,
Repetia nervosa e agitada.
E eu sussurrava ao ouvido:
Faço amor de madrugada.

Some agora do meu leito,
Se dormir, mato e esgano.
E eu: Se me der um beijo,
Dou filho no fim do ano.

Não é homem, é moleque,
Vê se cresce e toma tento.
E eu: Para e não aborrece,
Chega aqui e te esquento.

Já inerte, suada e vencida,
Os seios fartos e toda nua,
Eu disse: Tu és minha vida.
E ela: Vem amar, sou tua!!

Peruíbe SP, 06 de maio de 2020.

TODAS AS VIDAS


Cora Coralina

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!

SONETO DA SEPARAÇÃO


Marcus Vinicius de Mello Morais
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

POEMA DE SETE FACES

Carlos Drumond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

ELÍSIO MENINO


Fábio José da Silva


Hoje o verso deveria ser triste,
Na perda de um amigo, querido,
Mas quando dele me lembro, tristeza não
existe...
Naqueles anos colegiais, que
convivemos, Elísio – o Mão – pela vida,
era só paixão...
Amigo de boa prosa, da cerveja
gelada, de amores roubados, nunca
negados, eu vejo, ele foi muito
amado.
Nossos destinos nos separaram o
convívio,
Mas entendo, pois aqueles anos
foram tão intensos uma fase da vida,
que eternizamos momentos, fomos
só sentimentos.
Partiu o amigo discreto, elegante, o
filho do “J’’,
Coração corintiano, um grande ser
humano.


Lins SP, 25 de abril de 2020.

domingo, 3 de maio de 2020

ALIENÍGENA ALIENADO


Adão de Souza Ribeiro

                        Lá estava eu, numa manhã preguiçosa de domingo, sentado numa cadeira de balanço, na varanda da tapera, isso no “Sítio Paraíso”, encravado bem nos cafundós do Judas, nas bandas do Bairro Bondade. Do lado, um copo de cangibrina e um cigarro de palha, preso no beiço. Depois de tantas semanas sofridas cuidando da lavoura e dos animais, numa loucura desembestada para sobreviver, era preciso relaxar um pouco e esquecer-se das amarguras sem fim. Todo roceiro tem seu momento de lazer. Por isso, pernas para cima, que eu não era de ferro.
                        Ali da varanda, podia divisar as terras férteis, que caminhavam tranquilamente, até se perderem na linha do horizonte, onde céu parava para descansar. Os olhos deleitavam de prazer, em observar o bailar de pássaros com suas plumagens exuberantes e seus cantos inebriantes. Os ouvidos afiados ouviam muito atentos, a sinfonia e as notas musicais das cachoeiras, que gemiam ao tocarem as rochas centenárias ao pé do morro. A mente, entorpecida pela cangibrina, cochilava no ombro da acolhedora manhã preguiçosa de domingo.
                        Só quem viveu e conviveu com aquela vida campesina, sabe bem do que estou falando. Duque, o meu cachorro magricelo e carrapento, deitado perto da soleira da porta, estava sempre pronto para correr atrás de um preá ou de um calango distraído. Os ventos de noroeste convidavam os bambuzais a dançarem a coreografia da sedutora natureza. Entre um gole e outra da tal cangibrina e uma longa pitada no cigarro de fumo de corda, feito com palha de milho, os pensamentos viajavam por galáxias dantes navegadas.
                        Pafúncia, uma mulher de seios fatos e ancas apetitosas, com quem eu me engracei ainda na juventude e, portanto, com quem caí na besteira de contrair matrimônio, coava um café de torrador, numa mariquinha em cima do fogão a lenha. Sabia que não tardaria e ela traria uma xícara acompanhada de um prato de cuscuz com carne seca. Ali naquela cadeira de balanço, talhada em cipó, não queria pensar em nada. De madrugada, Pafúncia convidara-me para um chamego e não tive como recusar, é claro! As tensões dos dias anteriores, ela soube dissipar com maestria. Preocupações, para que? Concorda? Duque, com sua esperteza canina, fazia de conta que estava dormindo. Para defender seu dono, sacrificava a própria vida, creio.
                        Num momento inesperado, enquanto os olhos fitavam as galinhas ciscarem no terreiro, em busca de minhocas, insetos e sementes, para saciarem uma fome interminável, senti que algo estranho estava acontecendo. Sei que Pafúncia entretida com os afazeres domésticos, não se dera conta do que ocorria do lado de fora da tapera. E eu ali, entregue aquela surpresa inesperada. Do nada, as galinhas correram, abandonando as minhocas da última ciscada. Os pássaros, como num toque de mágica, embrenharam-se no mato. Uma cascavel enfiou-se no buraco, deixando o guizo de fora. Até o Duque, meu cão de guarda, escafedeu-se para onde não sei.
                        Do nada, vi que na cerca de arame farpado, enrolada com melão-de-são caetano e arranha gato, surgiu uma Coisa meio esquisita, vindo em minha direção. Por ser uma manhã preguiçosa de domingo e estar relaxado, encontrava-me desarmado. Como sou um caboclo arretado e não um borra-botas, não tremi e esperei a aproximação.
                        A tal Coisa, tinha cerca de um metro de altura; magricela; andar desengonçado; dedos alongados, tanto das mãos quanto dos pés; cabeça muito oval; queixo afilado, olhos esbugalhados; lábios pequenos e desproporcionais ao tamanho do rosto; pescoço fino de seriema; a bunda não tinha, parecia Chiquinha, minha vizinha. Assustado, pensei: “Meu Deus, que cabrunco era aquilo?”. Fiz cara de bravo, para demonstrar falta de intimidade. Não sabia de que buraco tinha saído e porque estava ali na minha propriedade, o “Sítio Paraíso”.
                        Já próximo de mim, fiz sinal para que parasse, a fim de que eu pudesse me defender, caso houvesse um ataque. Estava pelado, mas podia estar armado e, por isso, não era bom descuidar. Eu era cismado com algo desconhecido. A Coisa parou e encarou-me por um longo tempo. Depois começou a conversar comigo, numa linguagem não muito inteligível, parecendo uma mistura de japonês com índio. Queria saber onde estava, pois havia sido enviado em missão diplomática, vindo de outro mundo. Segundo os seus superiores, o nosso planeta estava passando por uma transformação dolorosa e eu precisava ser resgatado, ou melhor, abduzido. Não sabia o que era “abduzido”, por isso, recusei de pronto o tal convite.
                        Será que dos cafundós de onde ele veio, havia formadores de opinião ou canais de televisão, que praticavam terrorismo na mente das Coisas (pessoas)?”, pensei comigo. Como ele chegou ali? Foi quando notei, que bem distante, entre os pinheirais, pousara um objeto grande e luminoso, em forma de prato de sopa, estacionado e cercado por Coisas iguais a ele. Confesso que por um instante, tremi na base. Não demonstrei medo, porque sou um caboclo arretado e não um borra-botas. Confesso que a prosa entre mim e ele durou alguns minutos ou segundos talvez. Foi por isso, que Pafúncia não percebeu e Duque, meu cão de guarda, nem deu tempo de se refazer do susto.
                        Lembro-me vagamente que a Coisa tentou convencer-me de que a terra seria implodida e que, antes da tragédia se consumar, uma praga terrível, como uma das que atacaram o Egito, ceifaria quase toda a população humana. Aquilo iria acontecer, segundo a Coisa, porque o povo terráqueo não obedeceu às ordens de seus mandatários. Uma das determinações era para ficarem recolhidos em seus casebres, por um longo período, enquanto eles implantariam uma nova ordem mundial. Por ser um caboclo xucro e não letrado, nada entendi das baboseiras ditas por ele. Nasci e vivi naquele mundo tranquilo, onde eu obedecia apenas os ditames da mãe natureza. O que acontecia do outro lado da porteira do “Sítio Paraíso”, não me dizia respeito.
                        Ouvia com atenção, porque não tinha por costume ser malcriado, nem mesmo com aquela Coisa, que nunca vi nem mais gorda e nem mais magra. Bati o pé e disse que não iria com ele. Ponderei que tinha que cuidar de Pafúncia, minha esposa de seios fartos e ancas apetitosas, do Duque, meu cachorro magricelo e carrapento, também, das plantações e dos animais. Para não ser grosseiro, pedi que fosse embora e que se quisesse, podia voltar outra hora para prosearmos. À bem da verdade, não queria que voltasse nunca mais.
                        A Coisa lacrimejou, fez cara de tristeza e saiu cambaleando, com seu jeito desengonçado, em direção ao pinheiral. Ainda entorpecido pela cena que presenciei, fixei minhas vistas para aquela direção e pude testemunhar a Coisa embarcando naquele avião, ou melhor, Prato de Sopa todo iluminado e tomando rumo do desconhecido. Para mim, parecia um puxa saco, um pau mandado, um Maria-vai-com-as-outras. Um alienado, isso era o que ele era.
                        Assim que a Coisa escafedeu-se no horizonte, gritei: “Pafúncia, cadê o meu café com cuscuz?”. Nisso o Duque, meu cachorro magricelo e carrapento, meu valente cão de guarda latiu lá bem debaixo da cama: “Espera que Pafúncia já vai!”.
                        Depois que tomei o café com cuscuz, senti que a natureza voltou a conspirar em meu favor. Ainda bem que só eu sei da história do alienígena alienado.

Peruíbe SP, 03 de maio de 2020.