Adão de Souza
Ribeiro
“De médico e de louco, todo mundo tem um
pouco.”, diz o adágio popular.
Lembro-me de fatos pitorescos, que aconteceram
na minha terra natal, quando da infância e adolescência, que me marcaram pra
vida toda. Além de deixarem marcas como um ferrão, ajudou a forjar o homem que
hoje sou. Basta um psicanalista estudar o meu perfil e encontrará traços da
vida bucólica da longínqua terra natal: no jeito de falar, no comportamento e
na maneira de pensar. Orgulho-me deveras de tudo isso.
Ao deixar aquele rincão querido e mudar para
a selva de pedra, confesso que entrei em choque e me senti perdido naquele mundo
estranho. Em que pese ser um mundo cheio de mistérios, alegra-me notar que não
apagou da memória, momentos inesquecíveis com os conterrâneos e, como já disse,
de acontecimentos engraçados. Tudo isso tem rendido histórias e mais histórias
para este humilde *Forrest Gamp contar. Há muito que se narrar, guardado no
fundo do imborná.
Um dos fatos mencionados, agora eu passo a
narrar. Godofredo Salustiano Ferreira, carinhosamente apelidado de “Quequé”, tinha
um jeito peculiar de ser e gostava de prosear com as pessoas, quer fosse na
praça, no boteco, no meio da rua ou na festa tradicional do lugar. Era sabido
que tinha um desvio mental e uma gaguice de nascença. Ela, a gaguice,
outorgava-lhe um charme todo especial. Posso afirmar que não era violento, em
razão do transtorno mental. Quequé era muito querido, isso sim.
Quequé, o nosso Godofredo, tinha por hábito,
andar para lá e para cá, o dia inteirinho, fazia sol ou chuva, com um álbum de
fotografia, debaixo do braço. Cuidado com muito esmero, devidamente organizado
e com todas as fotos catalogadas criamos que contava com a ajuda de alguém. No
álbum havia fotos de familiares, conterrâneos, eventos de toda natureza e
lugares capturados pela lente da máquina fotográfica de Ohikata, o retratista
oficial do lugarejo. Fotos antigas e recentes recheava o álbum de Godofredo
Salustiano Ferreira, ou melhor, “Quequé”.
O maior prazer do personagem desta narrativa
era sentar-se com o interlocutor e descrever com riqueza de detalhes cada foto.
Ele, com toda loucura e gaguice, mostrava a riqueza e importância de cada
imagem gravada. Pessoas que partiram
para eternidade e lugares que o tempo encarregou-se de transformar estavam ali registradas
e faziam as pessoas viajarem no túnel do tempo. A professorinha Clotilde, pediu
que os alunos redigissem um texto sobre as manias de Quequé. Posso afirmar que
renderam lindas redações.
Os capiaus dali costumavam dizer; “Cada
louco tem sua mania”. O certo é que nunca se interessaram saber o porquê
de tamanha obsessão por aquela dezena de centenas de fotografias. E eu, o
inquieto de sempre e avesso à ignorância mental, fui ter com ele. “Quequé,
por que não se desgarra deste álbum, por nada deste mundo e nem mesmo morto, meu
amigo?”, perguntei meio sem jeito e esperando que ele viesse com os pés
no meu peito.
Ao contrário, ele sentou-se a sombra de um
frondoso pé de quaresmeira (Tibouchina granulosa), ali na esquina da Rua Rui
Barbosa com Rua Almirante Barroso e, em meio à gaguice, educadamente e numa voz
suave, disse-me; “A fotos, ao reportarem o passado, descreve toda minha história e minha
passagem por aqui. São provas indeléveis da existência da família e da cidade,
desde os primórdios tempos. Sem elas, não tem como provar que nós e a cidade,
existimos. Sem história, somos passageiros num trem desgovernado, rumo a lugar
nenhum. Não quero deixar morrer no meu povo, as gloriosas lembranças do passado”.
Eu respirei fundo e pensei; “Sábias
palavras de Quequé”. Quando um país dominante invade um país dominado,
a primeira coisa que faz, é destruir todos os monumentos históricos, os
costumes, a cultura, as tradições e os registros sagrados (documentos), destroem a bela
lembrança do passado. Sem ele, o passado, diante da vulnerabilidade do povo, fica
fácil criar outra nação, como se aquela não houvesse existido.
Depois daquela prosa prazerosa com maluco capiau
do meu torrão natal, posso afirmar, sem medo de errar: “Por trás dos Quequés da vida,
existe um sábio repleto de conhecimento. Nós, pseudo-intelectual, é que somos
loucos em não buscarmos neles, o augusto saber.”. Hoje, ao lembrar-me do
velho conterrâneo, com estereótipo de louco, caminhando com o álbum debaixo do
braço, sinto-me honrado por tê-lo conhecido.
Guardo no álbum da minha memória, a imagem
viva de Quequé e a importância do retratista Oshikata. Em cada flash, a certeza
inquestionável de que meu passado ainda existe.
Peruíbe SP, 24
de junho de 2021.
* “O Contador de Histórias”, filme estrelado por
Tom Hanks, de 1994, dirigido por Robert Zemeckis, com roteiro de Eric Roth,
baseado no romance de Winston Groom.