quinta-feira, 24 de junho de 2021

O LOUCO E O ÁLBUM

 

Adão de Souza Ribeiro

 

                        De médico e de louco, todo mundo tem um pouco.”, diz o adágio popular.

                        Lembro-me de fatos pitorescos, que aconteceram na minha terra natal, quando da infância e adolescência, que me marcaram pra vida toda. Além de deixarem marcas como um ferrão, ajudou a forjar o homem que hoje sou. Basta um psicanalista estudar o meu perfil e encontrará traços da vida bucólica da longínqua terra natal: no jeito de falar, no comportamento e na maneira de pensar. Orgulho-me deveras de tudo isso.

                        Ao deixar aquele rincão querido e mudar para a selva de pedra, confesso que entrei em choque e me senti perdido naquele mundo estranho. Em que pese ser um mundo cheio de mistérios, alegra-me notar que não apagou da memória, momentos inesquecíveis com os conterrâneos e, como já disse, de acontecimentos engraçados. Tudo isso tem rendido histórias e mais histórias para este humilde *Forrest Gamp contar. Há muito que se narrar, guardado no fundo do imborná.

                        Um dos fatos mencionados, agora eu passo a narrar. Godofredo Salustiano Ferreira, carinhosamente apelidado de “Quequé”, tinha um jeito peculiar de ser e gostava de prosear com as pessoas, quer fosse na praça, no boteco, no meio da rua ou na festa tradicional do lugar. Era sabido que tinha um desvio mental e uma gaguice de nascença. Ela, a gaguice, outorgava-lhe um charme todo especial. Posso afirmar que não era violento, em razão do transtorno mental. Quequé era muito querido, isso sim.

                        Quequé, o nosso Godofredo, tinha por hábito, andar para lá e para cá, o dia inteirinho, fazia sol ou chuva, com um álbum de fotografia, debaixo do braço. Cuidado com muito esmero, devidamente organizado e com todas as fotos catalogadas criamos que contava com a ajuda de alguém. No álbum havia fotos de familiares, conterrâneos, eventos de toda natureza e lugares capturados pela lente da máquina fotográfica de Ohikata, o retratista oficial do lugarejo. Fotos antigas e recentes recheava o álbum de Godofredo Salustiano Ferreira, ou melhor, “Quequé”.  

                        O maior prazer do personagem desta narrativa era sentar-se com o interlocutor e descrever com riqueza de detalhes cada foto. Ele, com toda loucura e gaguice, mostrava a riqueza e importância de cada imagem gravada.  Pessoas que partiram para eternidade e lugares que o tempo encarregou-se de transformar estavam ali registradas e faziam as pessoas viajarem no túnel do tempo. A professorinha Clotilde, pediu que os alunos redigissem um texto sobre as manias de Quequé. Posso afirmar que renderam lindas redações.

                        Os capiaus dali costumavam dizer; “Cada louco tem sua mania”. O certo é que nunca se interessaram saber o porquê de tamanha obsessão por aquela dezena de centenas de fotografias. E eu, o inquieto de sempre e avesso à ignorância mental, fui ter com ele. “Quequé, por que não se desgarra deste álbum, por nada deste mundo e nem mesmo morto, meu amigo?”, perguntei meio sem jeito e esperando que ele viesse com os pés no meu peito.

                        Ao contrário, ele sentou-se a sombra de um frondoso pé de quaresmeira (Tibouchina granulosa), ali na esquina da Rua Rui Barbosa com Rua Almirante Barroso e, em meio à gaguice, educadamente e numa voz suave, disse-me; “A fotos, ao reportarem o passado, descreve toda minha história e minha passagem por aqui. São provas indeléveis da existência da família e da cidade, desde os primórdios tempos. Sem elas, não tem como provar que nós e a cidade, existimos. Sem história, somos passageiros num trem desgovernado, rumo a lugar nenhum. Não quero deixar morrer no meu povo, as gloriosas lembranças do passado”.

                        Eu respirei fundo e pensei; “Sábias palavras de Quequé”. Quando um país dominante invade um país dominado, a primeira coisa que faz, é destruir todos os monumentos históricos, os costumes, a cultura, as tradições e os registros sagrados (documentos), destroem a bela lembrança do passado. Sem ele, o passado, diante da vulnerabilidade do povo, fica fácil criar outra nação, como se aquela não houvesse existido.

                        Depois daquela prosa prazerosa com maluco capiau do meu torrão natal, posso afirmar, sem medo de errar: “Por trás dos Quequés da vida, existe um sábio repleto de conhecimento. Nós, pseudo-intelectual, é que somos loucos em não buscarmos neles, o augusto saber.”. Hoje, ao lembrar-me do velho conterrâneo, com estereótipo de louco, caminhando com o álbum debaixo do braço, sinto-me honrado por tê-lo conhecido.

                        Guardo no álbum da minha memória, a imagem viva de Quequé e a importância do retratista Oshikata. Em cada flash, a certeza inquestionável de que meu passado ainda existe.

 

Peruíbe SP, 24 de junho de 2021.

 

*  “O Contador de Histórias”, filme estrelado por Tom Hanks, de 1994, dirigido por Robert Zemeckis, com roteiro de Eric Roth, baseado no romance de Winston Groom.

 

 

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