Adão de Souza
Ribeiro
Bastavam um bocejar prolongado, ou
então, fortes dores na boca do estômago, nas costas e nas pernas, além de um cansaço
anormal, a mãe corria para casa de dona Lili, em busca de socorro. Lá no canto
de reza, aquela senhora som seus oitenta anos e a mais respeitada benzedeira do
lugar, logo dizia: “Esse meninu tá com mau oiado” ou “Essa moça tem espinhela caída”.
Pessoa sem leitura e simples no falar, era de uma sabedoria invejável.
Procurada pelos grã-finos e pelos pobres, pelos letrados e pelos analfabetos,
pelos religiosos e pelos ateus, tratava-os com carinho e sem distinção. Após longas
rezas, usando todo tipo de ramo de ervas da nossa flora, tais como de arruda,
alecrim, hortelã, mastruz, ensinava algumas simpatias a serem feitas em casa.
Certo é que os doentes saiam dali, aliviados e com a certeza da cura.
Só quem conviveu num universo de
tradições milenares, de rituais simples de fé e de respeito incondicional ao
desconhecido, saberá compreender as manifestações da natureza e do comportamento
humano. Sempre temi o que transcende o imaginário e, por isso, jamais
subestimei as forças do metafísico. Desafiar o que não se compreende, para mim,
não passa de besta loucura. Quando nossa mãe buscava afugentar nossos males e
nossas dores, nas orações e simpatias de dona Lili, eu curvava a cabeça em
sinal de respeito. Como bom observador que sempre fui, não perdia um detalhe de
seus rituais sagrados e de suas mansas palavras de conselho.
Em noites de tempestade, nossa mãe
agarrava a rezar e a lançar os ramos sagrados, adquiridos na missa de domingo
de ramos, para acalmar tormenta. E, aos poucos, eu percebia que a natureza obedecia
ao clamor dela e a noite ia dormir em paz. É nesse clima, que fui criado, isto
é, de amor e respeito ao desconhecido. Nunca zombei da fé e é, por isso, creio
que todas as religiões são sagradas, porque Deus é um só. Muitas vezes, acontecem
coisas inexplicáveis, para entendermos o poder Dele, representado pelas manifestações
da natureza.
Isso foi fundamental para que eu
compreendesse o que, por força do destino, ocorreria anos depois, na terra onde
nasci. Certa feita, estando á cidade numa calmaria de fazer inveja aos grandes
centros urbanos, algo aconteceu de forma inesperada, que ficou marcado para
sempre na memória de seu povo. Defronte a minha casa, havia um hotel, mais
conhecido como pensão. De poucos clientes, composta de vários quartos, uma sala
de almoço e jantar, uma cozinha e uma recepção. Chão de madeira, impecavelmente
lustrado com vermelhão; janelas e portas antigas, de madeira envelhecida; luzes
opacas, pelos corredores; estacionamento lateral, de terra batida; alguns
quartos ao fundo, separados da casa principal; um quintal, com pés de fruta, um
tanque de lavar roupa e um longo varal, para estendê-las.
Numa madrugada fria de inverno e
ao som da canção do vento, surgiu um barulho estranho de algo batendo no
telhado, nas paredes e nas janelas. Assemelhava-se a som de granizo, mas não
chovia. E, aos poucos, foi aumentando até que os donos saíram para verificar.
Perceberam que eram pedras vindas do céu e de todas as direções. Apavorados, num
primeiro momento, tiveram a impressão que elas também brotavam da terra e eram
lançadas contra o imóvel. Não demorou muito para que a vizinhança se juntasse a
eles, numa contemplação aterrorizante e hipnotizante. Quando o dia amanheceu,
já havia uma dezena de curiosos e dava-se início às especulações. Todos os “ólogos
de plantão”, isto é, bisbilhoteiros ficaram a postos com suas teorias mais
absurdas.
Numa cidade que nada acontecia, a
não serem as fofocas de comadre, brigas de botecos e cheiro de chifre queimado,
aquilo virou notícia e ultrapassou fronteiras. Às vezes cessava por algumas
horas e voltava com maior intensidade. Pedras de todos os tamanhos e sem GPS,
atingiam não só a pensão, mas, também, as casas circunvizinhas. Nos dias que se
seguiram, não se falava em outra coisa, a não serem as pedras da pensão. A
cidade literalmente parou e estagnou o comércio. As crianças, sem maldade, apostavam quando
cairia à próxima.
Uns diziam que era maldição, porque
um pensionista se suicidara num dos quartos. Outros diziam que era castigo,
pois o dono de outras épocas era ateu e não acreditava no Divino Criador.
Outros ainda, sem prova alguma, diziam que era por conta de ritos macabros,
realizados ali por clientes forasteiros. Especulações, apenas especulações. Sei
que um morador, que arrotava valentia, disse que se fosse fantasma ele iria
encarar. Foi e quebrou a cara. Saiu dali borrado pelas calças, depois de tanta
pedrada que levou no quengo. Nunca mais ousou bulir com o desconhecido.
Eu que morava defronte, não
demorou muito, vi chegar jornalistas da imprensa escrita, falada e televisada
de todas as partes do planeta. Li, porque já era alfabetizado, que tinha até
imprensa internacional, tais como, a BBC de Londres, a CNN de Estados Unidos,
TV5 Monde da França, ZDF da Alemanha, NHK World, do Japão e por ai se vai. Além
de toda a imprensa, chegaram estudiosos de parapsicologia, ufologia, exorcismo,
espíritas, católicos, evangélicos, umbandistas e até dona Lili, nossa querida e
respeitada benzedeira. Foi com a chegada dela, que percebi que a coisa era
séria e muito séria, com certeza. Nela eu confiava, porque a humilde sabedoria superava
a de todos ali.
Engraçado como as pessoas veem
oportunidade em tudo e transformam fatos em lucros. Aos poucos, notei que além
da imprensa, foi se achegando ali, vendedores de guloseimas, quinquilharias, lembrancinhas
com o nome da cidade. Um escultor pensou numa estátua, um violeiro numa canção,
um escritor num poema de cordel, uma pintora num quadro surreal, tudo para
registrar e imortalizar o acontecido. Já o delegado pediu reforço policial, tamanho
o tanto de gente e caravanas que aportavam. O alcaide convocou o secretário do
tesouro, pensando em calcular os novos impostos do comércio, o qual aumentara
sobremaneira, inclusive, a clientela da dita pensão. O vigário octogenário
ministrava missas a cada duas horas, como eram feitas na “Santa Sé”. A pensão
parecia até a catedral nacional da padroeira. Teve até quem guardou amostra das
pedras como amuleto, na esperança de milagres futuros.
Em meio àquela balburdia, assim como
minha mãe, corri até a casa de dona Lili. Por entender que a cidade estava
doente e precisava de uma intervenção espiritual, fui buscar socorro em quem eu
acreditava e sabia que tinha permissão divina para resolver tudo aquilo. Isso
já fazia para mais de uns seis meses, que a cidade não dormia, diante de
tamanho tormento. Os rituais de curandeirismo, realizados pelos forasteiros, de
nada resolvera. Dona Lili sabia o caminho das pedras, não daquelas que caiam intermitentemente,
mas o caminho das pedras (soluções).
Depois que ela fez uma oração e um
benzimento, num ritual de muita fé, foi batata. No dia seguinte as pedras se
recolheram no seu ventre de origem. Até hoje, ninguém entende como tudo acabou.
Guardo aquele segredo comigo, debaixo de sete pedras, ou melhor, debaixo de
sete chaves. Amém!
Peruíbe SP, 23
de junho de 2019.