Adão de Souza
Ribeiro
Tarde da noite. Não dava para
precisar a hora certa, apenas que passava da zero hora. Sabia-se apenas, que
ventava muito e que a lua solitária brilhava no céu. Era lua cheia. A vida
bucólica da roça ganhava um ar de romantismo e era belo ver os casais
enamorados caminhando pelas estradas de terra batida. De mãos dadas, o amor se
cristalizava com beijos ardentes e carícias atrevidas. Nos terreirões, onde se
secava a colheita, principalmente o café, as crianças brincavam até o momento
permitido pelos pais. Veio o progresso e tudo se perdeu no tempo.
Lá bem distante, à beira do brejo,
um sapo martelo coaxava, uma cantiga de cansar os ouvidos. Uma coruja, na
cumeeira do paiol, observava o mundo em trezentos e sessenta graus. Sendo que
ao ouvir o chirriar, os supersticiosos diziam que se tratava de anúncio de mau
agouro. Ao observar a dança das árvores distantes, tinha-se a impressão de que
seres estranhos passeavam entre elas. A imaginação era fértil, porém, o medo
daquilo que não se podia tocar, ainda era maior. Era assim, que as lendas
ganhavam forma e assustavam nossa infância.
Numa dessas noites claras de
junho, quando reinava a lua cheia, todos nós (pais e irmãos) já havíamos nos
recolhidos ao leito. Alguns dos irmãos, principalmente os mais novos, já
dormiam o sono dos anjos. Éramos sete almas lindas e de corações puros, que não
se separavam por nada. Eu, o primogênito, era o último a pegar no sono e como o
comandante do navio, só depois de certificar-se de que estava tudo bem, era quem
recolhia o leme, isto é, conferia se as portas e janelas estavam rigorosamente
trancadas com suas tramelas.
De repente, quando por cerca de
meia hora, pairava um silêncio ensurdecedor ouvi o latido forte de Estopa,
nosso cachorro de estimação. Assim era chamado, porque tinha pelagem farta e
macia. Em seguida, barulhos dos porcos, vindo da pocilga, no fundo do quintal,
colocaram-me em alerta total. Mais adiante, ouviam-se as aves descendo do
poleiro, num cacarejar apavorante. Uma jararaca rastejava pelo quintal, no
encalço de um camundongo. A princípio, encolhi-me debaixo do cobertor como que
me protegendo de algo desconhecido. Não demorou muito e toda a família se pôs
de pé. Parecia que os animais estavam prontos para o ataque, para a guerra.
O que vem depois era de arrepiar
os cabelos da peruca e a epiderme morena. Por ser de madeira, a casa tinha uma
dezena de frestas, onde no frio, entrava um vento gélido. Á noite, quando apagávamos
a lamparina, o clarão da lua beijava o nosso rosto, no leito acolhedor. Ao
espiar por entre o vão da parede, vi que se tratava de um monstro horripilante
e aterrorizador. Olhos amarelados e brilhantes, corpo muito peludo, orelhas
grandes e pontiagudas, presas enormes e afiadas, uma agilidade para correr e
pular. Uma voracidade incontrolável, quando no ataque contra os bichos ao redor
da casa. Com um jeito esquisito de andar, tinha corpo de homem e rosto de lobo.
Sem sombra de dúvidas, era o tal do lobisomem.
Aquela peleja durou a noite
inteira e o seu uivado, além de ecoar noite à dentro, tirou nosso sono de anjo.
Não ousamos ascender a lamparina, pois minha mãe disse que ele queria nosso
irmão caçula que ainda era pagão. Se percebesse qualquer movimentação,
arrombaria a porta e levaria Godofredo, o nosso irmão pequenino. Quietos, trêmulos
e ofegantes, evitávamos chorar. Enquanto isso, nossos pais se agarraram a um
terço e danaram rezar, orações que eu não compreendia. Enquanto isso lá fora, a
batalha era cruel entre Estopa e aquele monstro indesejável.
Para matá-lo, segundo meu pai,
precisava de algo feito de prata, mas isso não tinha em casa. Foi uma cena
inesquecível. Dizem que os lobisomens matavam vampiros e quando não os encontravam,
matavam seres humanos e animais. O sangue era que os mantêm vivos. Outro jeito
de desencantá-los seria ferindo-os. Mas que era louco de enfrentar aquela fera
indomável, que vagava pelas noites de lua cheia? Então, não tinha outra saída,
a não ser esperar o dia amanhecer. Antes de o sol nascer, ele deixaria de ser
lobo e voltaria a ser homem. Contaram-me que para se transformar, o homem
espoja por longo tempo, numa encruzilhada, onde espojou um cavalo. Para
desencantar e voltar à forma de homem, ele retorna ao mesmo lugar e se espoja
até perder aquela forma monstruosa. Já na forma de homem, queixa de fortes
dores no corpo.
Um comentário no povoado dava
conta de que o lobisomem que vagava nas noites de lua cheia, era Astrogildo do
Perpétuo Socorro. Quando pequeno, o menino era pálido, de orelhas grandes e
nariz avantajado. E, ainda, era o oitavo filho de uma casa de sete mulheres. A
primeira transformação dele ocorreu aos treze anos de idade, por não ter sido
batizado antes. Por isso, carregaria a maldição para o resto da vida. Já de
volta à forma humana, Astrogildo apresentava comportamento esquisito e forma
estranha. Era desconfiado e olhava de relance. Alto, magro, pálido e com aparência
de doente. Possuía orelhas e unhas grandes, corpo excessivamente peludo e
sobrancelhas fechadas.
O certo é que ao amanhecer do dia,
iriamos encontrar o quintal em desalinho, uma verdadeira praça de guerra, após
uma batalha ferrenha. Por onde andariam os animais e aves do nosso terreiro. Eu
iria saldar carinhosamente o nosso querido “Estopa”, que nos defendeu de unhas
e dentes. Ah, se eu encontrasse o Astrogildo pelas redondezas, daria uma sova
pela noite de sono perdido e pelas cenas de horrores, gradavas em minha mente.
Que fosse aprontar em outras pradarias e não ali.
Amanhã conto o resto, mas por ser o
avançado da hora, quero apenas dormir o meu sono de anjo.
Peruíbe SP, 16
de junho de 2019.
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