domingo, 16 de junho de 2019

EU VI, NINGUÉM ME CONTOU

Adão de Souza Ribeiro

                                   Tarde da noite. Não dava para precisar a hora certa, apenas que passava da zero hora. Sabia-se apenas, que ventava muito e que a lua solitária brilhava no céu. Era lua cheia. A vida bucólica da roça ganhava um ar de romantismo e era belo ver os casais enamorados caminhando pelas estradas de terra batida. De mãos dadas, o amor se cristalizava com beijos ardentes e carícias atrevidas. Nos terreirões, onde se secava a colheita, principalmente o café, as crianças brincavam até o momento permitido pelos pais. Veio o progresso e tudo se perdeu no tempo.
                                   Lá bem distante, à beira do brejo, um sapo martelo coaxava, uma cantiga de cansar os ouvidos. Uma coruja, na cumeeira do paiol, observava o mundo em trezentos e sessenta graus. Sendo que ao ouvir o chirriar, os supersticiosos diziam que se tratava de anúncio de mau agouro. Ao observar a dança das árvores distantes, tinha-se a impressão de que seres estranhos passeavam entre elas. A imaginação era fértil, porém, o medo daquilo que não se podia tocar, ainda era maior. Era assim, que as lendas ganhavam forma e assustavam nossa infância.
                                   Numa dessas noites claras de junho, quando reinava a lua cheia, todos nós (pais e irmãos) já havíamos nos recolhidos ao leito. Alguns dos irmãos, principalmente os mais novos, já dormiam o sono dos anjos. Éramos sete almas lindas e de corações puros, que não se separavam por nada. Eu, o primogênito, era o último a pegar no sono e como o comandante do navio, só depois de certificar-se de que estava tudo bem, era quem recolhia o leme, isto é, conferia se as portas e janelas estavam rigorosamente trancadas com suas tramelas.
                                   De repente, quando por cerca de meia hora, pairava um silêncio ensurdecedor ouvi o latido forte de Estopa, nosso cachorro de estimação. Assim era chamado, porque tinha pelagem farta e macia. Em seguida, barulhos dos porcos, vindo da pocilga, no fundo do quintal, colocaram-me em alerta total. Mais adiante, ouviam-se as aves descendo do poleiro, num cacarejar apavorante. Uma jararaca rastejava pelo quintal, no encalço de um camundongo. A princípio, encolhi-me debaixo do cobertor como que me protegendo de algo desconhecido. Não demorou muito e toda a família se pôs de pé. Parecia que os animais estavam prontos para o ataque, para a guerra.
                                   O que vem depois era de arrepiar os cabelos da peruca e a epiderme morena. Por ser de madeira, a casa tinha uma dezena de frestas, onde no frio, entrava um vento gélido. Á noite, quando apagávamos a lamparina, o clarão da lua beijava o nosso rosto, no leito acolhedor. Ao espiar por entre o vão da parede, vi que se tratava de um monstro horripilante e aterrorizador. Olhos amarelados e brilhantes, corpo muito peludo, orelhas grandes e pontiagudas, presas enormes e afiadas, uma agilidade para correr e pular. Uma voracidade incontrolável, quando no ataque contra os bichos ao redor da casa. Com um jeito esquisito de andar, tinha corpo de homem e rosto de lobo. Sem sombra de dúvidas, era o tal do lobisomem.
                                   Aquela peleja durou a noite inteira e o seu uivado, além de ecoar noite à dentro, tirou nosso sono de anjo. Não ousamos ascender a lamparina, pois minha mãe disse que ele queria nosso irmão caçula que ainda era pagão. Se percebesse qualquer movimentação, arrombaria a porta e levaria Godofredo, o nosso irmão pequenino. Quietos, trêmulos e ofegantes, evitávamos chorar. Enquanto isso, nossos pais se agarraram a um terço e danaram rezar, orações que eu não compreendia. Enquanto isso lá fora, a batalha era cruel entre Estopa e aquele monstro indesejável.
                                   Para matá-lo, segundo meu pai, precisava de algo feito de prata, mas isso não tinha em casa. Foi uma cena inesquecível. Dizem que os lobisomens matavam vampiros e quando não os encontravam, matavam seres humanos e animais. O sangue era que os mantêm vivos. Outro jeito de desencantá-los seria ferindo-os. Mas que era louco de enfrentar aquela fera indomável, que vagava pelas noites de lua cheia? Então, não tinha outra saída, a não ser esperar o dia amanhecer. Antes de o sol nascer, ele deixaria de ser lobo e voltaria a ser homem. Contaram-me que para se transformar, o homem espoja por longo tempo, numa encruzilhada, onde espojou um cavalo. Para desencantar e voltar à forma de homem, ele retorna ao mesmo lugar e se espoja até perder aquela forma monstruosa. Já na forma de homem, queixa de fortes dores no corpo.
                                   Um comentário no povoado dava conta de que o lobisomem que vagava nas noites de lua cheia, era Astrogildo do Perpétuo Socorro. Quando pequeno, o menino era pálido, de orelhas grandes e nariz avantajado. E, ainda, era o oitavo filho de uma casa de sete mulheres. A primeira transformação dele ocorreu aos treze anos de idade, por não ter sido batizado antes. Por isso, carregaria a maldição para o resto da vida. Já de volta à forma humana, Astrogildo apresentava comportamento esquisito e forma estranha. Era desconfiado e olhava de relance. Alto, magro, pálido e com aparência de doente. Possuía orelhas e unhas grandes, corpo excessivamente peludo e sobrancelhas fechadas.
                                   O certo é que ao amanhecer do dia, iriamos encontrar o quintal em desalinho, uma verdadeira praça de guerra, após uma batalha ferrenha. Por onde andariam os animais e aves do nosso terreiro. Eu iria saldar carinhosamente o nosso querido “Estopa”, que nos defendeu de unhas e dentes. Ah, se eu encontrasse o Astrogildo pelas redondezas, daria uma sova pela noite de sono perdido e pelas cenas de horrores, gradavas em minha mente. Que fosse aprontar em outras pradarias e não ali.
                                   Amanhã conto o resto, mas por ser o avançado da hora, quero apenas dormir o meu sono de anjo.  


Peruíbe SP, 16 de junho de 2019.

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