Hiromassa Iwai
"O tempo teima em desbotar as memórias do passado.
Ainda assim, aos 81 anos de idade, quando relembro minha infância e
adolescência em Guaimbê, com toda a alegria e adversidades de uma época árdua,
é impossível dissociar minha memória da figura do Rev. Ono. Ele, através de seu
exemplo e ações, atuou na transformação e construção de minha identidade,
autoestima e orgulho de ser nihondim.
Guaimbê, uma cidade abençoada por Deus! Inesquecível para
todos nós, ex-guaimbêenses que choram por ela. Vivi e curti intensamente as
décadas de 40, 50 e 60, época de muita bravura dos nossos pais imigrantes, que
trabalharam duramente para sobreviver e educar os filhos dentro da tradição e
espírito nipônico.
Nasci no início da década de 40, já envolvido pela
turbulência da Segunda Guerra Mundial. Com a entrada do Japão neste conflito e
o rompimento das relações diplomáticas com o Brasil, a comunidade japonesa
sofreu consequências desastrosas. Restrições, discriminações e preconceitos
prevaleceram, e, devido ao nacionalismo e fanatismo exacerbado, a colônia
japonesa ficou dividida entre os kachigume e makegume, protagonizando a mais
sangrenta e insana história da imigração japonesa. Tempos assustadores em que
sofremos preconceitos e fomos ridicularizados, o que abalou a autoestima da
comunidade japonesa. Ser xingado de “soi” rasgado era até compreensível, mas de
bode, bodinho, me intrigava (após ler o livro "Corações Sujos" de
Fernando Moraes, o escritor explica que o uso de cavanhaque e barba por alguns
imigrantes gerava o apelido de bode).
Em tempos tão sombrios, a busca pelo equilíbrio
emocional, maturidade, autoconfiança e autoestima era necessária para superar
os sentimentos desgastados pelo conflito. Encontrar um nihonjin para ser uma
referência, exemplo e orgulho se tornou essencial. Posso afirmar que encontrei
na figura do Rev. Barnabé Kenzo Ono e sua esposa, Sra. Fuki, essa inspiração.
Após a dolorosa e repentina perda de nossa mãe, Sra. Haru
Iwai, o Rev. Ono surgiu em nossas vidas, atento ao momento de pesar e tristeza.
Ele pediu ao meu pai, Shingo Iwai, que nos enviasse para a Escola Dominical da
Igreja Ascensão de Guaimbê, para diminuir a dor e o peso do luto. Assim,
comecei a frequentar, aos sete anos de idade, juntamente com meus irmãos, todos
pequenos: Ayako, Takenori e Takeyo, a Escola Dominical para entoar cânticos de
louvor e prestar gratidão a Deus. Com certo orgulho e respeito, levávamos as
moedas que nosso pai dava como oferta de gratidão a Deus. A igreja Ascensão de
Guaimbê, pequena, singela e branca, era, para minha memória, a mais bela,
charmosa e inesquecível igreja. Neste espaço santo, o Rev. Ono nos ensinou a
sempre louvar e agradecer a Deus, tendo a certeza de que somos ricamente
abençoados por Ele.
O Rev. Ono era conhecido na comunidade japonesa como Ono
sensei. A palavra "sensei" tem um forte significado, definindo ser
ético em todos os sentidos, sendo um título honroso. Ainda jovem, ele já tinha
meu respeito e admiração, e, ao mesmo tempo, eu ficava intrigado com seu
comportamento e atitude. Comecei a observar que Ono sensei era um japonês
diferente do meu pai e dos pais dos meus amiguinhos.
Alguns fatos marcantes ficaram gravados em minha memória,
e gostaria de compartilhar essas vivências que foram um privilégio e uma bênção
em minha vida.
O primeiro cinema de Guaimbê era uma enorme oficina
cedida pelo Sr. Minoru Sanda, adaptada com bancos sem encosto, bilheteria e uma
tela. Era um local rústico, mas inesquecível para todos os guaimbeenses que se
encantavam com a magia dos filmes e preenchiam suas imaginações. Lembro com
carinho do meu pai trabalhando na bilheteria, e com admiração e surpresa, vi o
Rev. Ono, em cima de uma enorme mesa, operando o projetor de filmes que ficava
em cima de outra mesa. Confesso que fiquei extremamente orgulhoso de ver dois nihonjin
cuidando desse espaço de entretenimento.
Em uma tarde de domingo, enquanto nós jovens da UME
jogávamos tênis de mesa no gramado ao lado da igreja, o casal Rev. Ono e Sra.
Fuki apareceu de mãos dadas, com um sorriso contagiante, como um casal de enamorados
que acabaram de assistir a um filme na sessão da tarde. Eles vieram se juntar a
nós para comentar o badalado filme da época, "Scaramouche". Era uma
imagem encantadora, afinal, nas décadas de 40 e 50, na comunidade japonesa, os
homens frequentemente andavam na frente das mulheres.
A Sra. Fuki sempre se destacava pela sua discreta
elegância, sendo uma dama admirável. Lembro com carinho quando eu estava na
sala da casa paroquial, brincando com outros amiguinhos, e ela me chamou
sutilmente, com um sorriso, para um canto. Provavelmente, para não me
constranger, ela pegou na minha mão e cortou as unhas compridas e sujas,
próprias de um moleque de rua. Essas lembranças sempre me emocionam.
Um fato pitoresco e significativo que vale ser lembrado
foi quando o Rev. Ono convidou a nós, jovens da UME, para apreciar alguns
quadros expostos nas paredes da sala da casa paroquial. Eram as pinturas
abstratas do Mabe-san, que fizeram a galera palpitar, cada um com sua
imaginação. O Rev. Ono disse apenas para olhar e apreciar as cores, nuances,
tonalidades, formas e linhas das obras. Era o início da carreira do então
desconhecido pintor Manabu Mabe. O Rev. Ono era um dos poucos dentro da
comunidade japonesa que apoiava e acreditava no talento do pintor, que na época
trabalhava na lavoura de café. Nós, jovens caipiras de uma pequena cidade do
interior, tivemos o privilégio de apreciar a primeira exposição de arte da
pintura abstrata daquele que foi um dos pioneiros da pintura abstrata no
Brasil, destacando-se no cenário nacional e internacional.
Um dia de dezembro para ser lembrado... deparei-me com o
Rev. Ono conversando animadamente com meu pai no bar e bazar Iwai, saboreando
um cafezinho que era costume dele oferecer aos amigos mais íntimos. Por
destino, o Rev. Ono me convidou para ir ao bairro Aliança, na casa do Mabe-san.
Para minha surpresa, ao lado da residência, havia uma construção simples de
madeira, retangular, onde adentramos subindo alguns degraus de escadas. Era o
ateliê do Mabe-san, com alguns quadros na parede e latas de tintas e pincéis
espalhados no assoalho. No bate-papo animado dos dois isseis, ficava visível a
cumplicidade na arte da pintura. Retornando a Guaimbê com os materiais de
pintura, fomos ao kaikan, e observei o Rev. Ono estendendo um pano de fundo
branco no piso e, com latas de tintas e pincel em mãos, vi para meu espanto um
exímio pintor que, com algumas pinceladas, estava pronto um lindo cenário para
o palco do Natal. Fica na minha memória o privilégio de conhecer o primeiro
ateliê no meio rural do consagrado pintor Manabu Mabe e minha admiração pela
versatilidade do Rev. Ono.
O Natal, a mais bela e significativa festa da
cristandade! O Natal da comunidade anglicana da Igreja Ascensão de Guaimbê era
uma celebração marcante que encantava todo o povo guaimbeense. Foi um
aprendizado para nós, nisseis mais reservados, que tivemos que vencer a timidez
para participar do coral e entoar cânticos natalinos, encarnar personagens
bíblicos no palco. Mérito ao Rev. Ono, Sra. Fuki e Anna, que implementaram e
incentivaram a realização do evento natalino.
Guardo vivamente outras memórias relevantes onde o Rev.
Ono revelou seu lado criativo e surpreendente, como a construção de uma quadra
esportiva iluminada ao lado da Igreja, com espaço suficiente para jogar
voleibol e futebol de salão. Nesse cenário, a UME participou de um campeonato
interno de futebol de salão da cidade e sagramo-nos bicampeões nessa modalidade
esportiva, para a surpresa e admiração dos guaimbeenses, que diziam, naquela
época, que, em matéria de futebol, os japoneses eram todos iguais. Assim,
quebramos essa escrita com muito orgulho. O tênis de mesa foi o esporte que
encantou e uniu os jovens da UME (União Mocidade Episcopal). Através desse
esporte, tive a felicidade em minha vida acadêmica de odontologia de sagrar-me
campeão no Torneio Universitário em Lins.
Não poderia deixar de citar uma viagem inesquecível que o
Rev. Ono proporcionou aos jovens umeistas, cujo transporte fomos na carroceria
de um caminhão com cobertura de lona. Visitamos a interessante comunidade Yuba,
onde conhecemos sua filosofia de vida comunitária. Participamos de uma saborosa
refeição comunitária e, também para nossa surpresa, um banho coletivo de ofurô.
Após essa visita, aportamos em Pereira Barreto, onde confraternizamos com os
simpáticos jovens da Igreja Santo André, participando das reuniões da UME, estudo
bíblico e animadíssimos jogos de voleibol e tênis de mesa. O Rev. Ono sempre
prestigiou o esporte, incentivou a cultura e o fortalecimento de nossa
espiritualidade.
A última lembrança que guardo do Rev. Ono foi quando um
grupo de umeistas foi assistir ao culto dominical no bairro Aliança, onde sua
família ficou alojada em uma das casas do Sr. Nohara, antes de mudar para
Pereira Barreto. À tarde, o Rev. Ono planejou uma excursão ou melhor, um
piquenique, onde fomos na carroceria de um trator, e ele, a Sra. Fuki e Anna,
de charrete, e outros de bicicletas. O local era no topo de um morro,
aconchegante, onde celebramos a vida, prestando louvor e gratidão a Deus e
saboreamos um gostoso bento com alguns sacos de frutas. Guardo comigo algumas
fotos cujas imagens retratam esses momentos inesquecíveis. “A vida é feita de
momentos e pessoas queridas que fazem desses momentos especiais... transformam
em dias simples em dias especiais”.
Ao ler o
livro "A Vida do Rev. Ono", escrito pela senhora sua esposa Fuki Ono,
foi possível compreender porque o pequeno Ken, na sua caminhada pela vida de
percalços, abandono, angústia, bravura e resiliência, se torna um homem talhado
para a vida missionária. O traquejo adquirido
na labuta da lavoura, na pecuária e o seu tino comercial resume-se na
"Universidade da Vida", dita pelo bispo Lee ao término do curso de
teologia no Japão, referindo-se aos anos vividos pelo Rev. Ono no Brasil, onde
superou todos os embates que a vida impôs e tornou-se um missionário
evangelizador, empreendedor e extremamente arrojado. Construiu a Igreja da
Ascensão em Guaimbê com muito sacrifício e dedicação, sem respaldo da
Instituição (IEAB), conquista esta louvável e digna de admiração. Outro fato
para ser lembrado foi na época em que cursava o ginasial em Getulina, onde via
com admiração uma enorme cruz fincada no terreno com a inscrição "Igreja
Episcopal do Brasil". Infelizmente, o projeto da emancipação da Igreja da
Ascensão de Guaimbê, via agronegócio viu-se
interrompido por ordem superior da hierarquia da Igreja Episcopal, e o Rev. Ono
foi obrigado a transferir-se para a Igreja Santo André em Pereira Barreto.
Homenagear e enaltecer o Rev. Ono é
uma condição imperativa para um homem íntegro e de muita fé. Esta fé que
incutiu nos membros de sua igreja e pela sua visão abrangente enriqueceu-os com
suas atividades, além de religiosa, cultural e social.
Ao finalizar o meu relato, não
poderia deixar de citar e enaltecer a figura da Sra. Fuki Ono e prestar o meu
respeito, admiração e gratidão.
Sra. Fuki, uma mulher meiga e
bondosa, filha de magistrado, portanto de uma família culta no Japão, ao
aportar no Brasil, no interior de São Paulo, na época Guaimbê, uma colônia
japonesa a se desbravar, acredito que foi para ela assustador e frustrante.
Deixando de lado vários de seus sonhos pessoais e aspirações, para servir aos
outros, ela soube conduzir a sua vida ensinando-nos pelo exemplo que o segredo
da existência humana reside não somente em viver, mas saber por que se vive.
Rev. Ono e Sra. Fuki parecem ter
sido moldados a partir de um material mais raro, brilhante e precioso. Nasceram
para servir, ajudar e espalhar a palavra de Deus. Somente um grande e sublime
amor vivido por este casal foi possível superar as adversidades do ministério
pastoral e deixaram um legado de religiosidade e resiliência que serviu de
alicerce ao caráter e à fé de todos nós.
Neste relato, busquei compartilhar
as lembranças e vivências de minha infância e adolescência em Guaimbê,
enaltecendo a figura inspiradora do Rev. Barnabé Kenzo Ono e sua esposa Sra.
Fuki. Suas ações, ensinamentos e amor ao próximo fizeram toda a diferença em
minha formação e na de tantos outros. Agradeço a Deus por tê-los colocado em
meu caminho e por ter tido a oportunidade de conhecê-los e aprender com eles.
Que suas
memórias e legado permaneçam vivos em nossos corações e que suas histórias de
vida continuem a inspirar e motivar as gerações futuras. Com gratidão e
respeito, presto minha homenagem ao Rev. Barnabé Kenzo Ono e Sra. Fuki Ono,
verdadeiros exemplos de fé, amor e serviço ao próximo. Que Deus os abençoe
sempre. Amém.