quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A HISTÓRIA VIVIDA COM O REV. ONO

 

Hiromassa Iwai

 

"O tempo teima em desbotar as memórias do passado. Ainda assim, aos 81 anos de idade, quando relembro minha infância e adolescência em Guaimbê, com toda a alegria e adversidades de uma época árdua, é impossível dissociar minha memória da figura do Rev. Ono. Ele, através de seu exemplo e ações, atuou na transformação e construção de minha identidade, autoestima e orgulho de ser nihondim.

 

Guaimbê, uma cidade abençoada por Deus! Inesquecível para todos nós, ex-guaimbêenses que choram por ela. Vivi e curti intensamente as décadas de 40, 50 e 60, época de muita bravura dos nossos pais imigrantes, que trabalharam duramente para sobreviver e educar os filhos dentro da tradição e espírito nipônico.

 

Nasci no início da década de 40, já envolvido pela turbulência da Segunda Guerra Mundial. Com a entrada do Japão neste conflito e o rompimento das relações diplomáticas com o Brasil, a comunidade japonesa sofreu consequências desastrosas. Restrições, discriminações e preconceitos prevaleceram, e, devido ao nacionalismo e fanatismo exacerbado, a colônia japonesa ficou dividida entre os kachigume e makegume, protagonizando a mais sangrenta e insana história da imigração japonesa. Tempos assustadores em que sofremos preconceitos e fomos ridicularizados, o que abalou a autoestima da comunidade japonesa. Ser xingado de “soi” rasgado era até compreensível, mas de bode, bodinho, me intrigava (após ler o livro "Corações Sujos" de Fernando Moraes, o escritor explica que o uso de cavanhaque e barba por alguns imigrantes gerava o apelido de bode).

 

Em tempos tão sombrios, a busca pelo equilíbrio emocional, maturidade, autoconfiança e autoestima era necessária para superar os sentimentos desgastados pelo conflito. Encontrar um nihonjin para ser uma referência, exemplo e orgulho se tornou essencial. Posso afirmar que encontrei na figura do Rev. Barnabé Kenzo Ono e sua esposa, Sra. Fuki, essa inspiração.

 

Após a dolorosa e repentina perda de nossa mãe, Sra. Haru Iwai, o Rev. Ono surgiu em nossas vidas, atento ao momento de pesar e tristeza. Ele pediu ao meu pai, Shingo Iwai, que nos enviasse para a Escola Dominical da Igreja Ascensão de Guaimbê, para diminuir a dor e o peso do luto. Assim, comecei a frequentar, aos sete anos de idade, juntamente com meus irmãos, todos pequenos: Ayako, Takenori e Takeyo, a Escola Dominical para entoar cânticos de louvor e prestar gratidão a Deus. Com certo orgulho e respeito, levávamos as moedas que nosso pai dava como oferta de gratidão a Deus. A igreja Ascensão de Guaimbê, pequena, singela e branca, era, para minha memória, a mais bela, charmosa e inesquecível igreja. Neste espaço santo, o Rev. Ono nos ensinou a sempre louvar e agradecer a Deus, tendo a certeza de que somos ricamente abençoados por Ele.

 

O Rev. Ono era conhecido na comunidade japonesa como Ono sensei. A palavra "sensei" tem um forte significado, definindo ser ético em todos os sentidos, sendo um título honroso. Ainda jovem, ele já tinha meu respeito e admiração, e, ao mesmo tempo, eu ficava intrigado com seu comportamento e atitude. Comecei a observar que Ono sensei era um japonês diferente do meu pai e dos pais dos meus amiguinhos.

 

Alguns fatos marcantes ficaram gravados em minha memória, e gostaria de compartilhar essas vivências que foram um privilégio e uma bênção em minha vida.

 

O primeiro cinema de Guaimbê era uma enorme oficina cedida pelo Sr. Minoru Sanda, adaptada com bancos sem encosto, bilheteria e uma tela. Era um local rústico, mas inesquecível para todos os guaimbeenses que se encantavam com a magia dos filmes e preenchiam suas imaginações. Lembro com carinho do meu pai trabalhando na bilheteria, e com admiração e surpresa, vi o Rev. Ono, em cima de uma enorme mesa, operando o projetor de filmes que ficava em cima de outra mesa. Confesso que fiquei extremamente orgulhoso de ver dois nihonjin cuidando desse espaço de entretenimento.

 

Em uma tarde de domingo, enquanto nós jovens da UME jogávamos tênis de mesa no gramado ao lado da igreja, o casal Rev. Ono e Sra. Fuki apareceu de mãos dadas, com um sorriso contagiante, como um casal de enamorados que acabaram de assistir a um filme na sessão da tarde. Eles vieram se juntar a nós para comentar o badalado filme da época, "Scaramouche". Era uma imagem encantadora, afinal, nas décadas de 40 e 50, na comunidade japonesa, os homens frequentemente andavam na frente das mulheres.

 

A Sra. Fuki sempre se destacava pela sua discreta elegância, sendo uma dama admirável. Lembro com carinho quando eu estava na sala da casa paroquial, brincando com outros amiguinhos, e ela me chamou sutilmente, com um sorriso, para um canto. Provavelmente, para não me constranger, ela pegou na minha mão e cortou as unhas compridas e sujas, próprias de um moleque de rua. Essas lembranças sempre me emocionam.

 

Um fato pitoresco e significativo que vale ser lembrado foi quando o Rev. Ono convidou a nós, jovens da UME, para apreciar alguns quadros expostos nas paredes da sala da casa paroquial. Eram as pinturas abstratas do Mabe-san, que fizeram a galera palpitar, cada um com sua imaginação. O Rev. Ono disse apenas para olhar e apreciar as cores, nuances, tonalidades, formas e linhas das obras. Era o início da carreira do então desconhecido pintor Manabu Mabe. O Rev. Ono era um dos poucos dentro da comunidade japonesa que apoiava e acreditava no talento do pintor, que na época trabalhava na lavoura de café. Nós, jovens caipiras de uma pequena cidade do interior, tivemos o privilégio de apreciar a primeira exposição de arte da pintura abstrata daquele que foi um dos pioneiros da pintura abstrata no Brasil, destacando-se no cenário nacional e internacional.

 

Um dia de dezembro para ser lembrado... deparei-me com o Rev. Ono conversando animadamente com meu pai no bar e bazar Iwai, saboreando um cafezinho que era costume dele oferecer aos amigos mais íntimos. Por destino, o Rev. Ono me convidou para ir ao bairro Aliança, na casa do Mabe-san. Para minha surpresa, ao lado da residência, havia uma construção simples de madeira, retangular, onde adentramos subindo alguns degraus de escadas. Era o ateliê do Mabe-san, com alguns quadros na parede e latas de tintas e pincéis espalhados no assoalho. No bate-papo animado dos dois isseis, ficava visível a cumplicidade na arte da pintura. Retornando a Guaimbê com os materiais de pintura, fomos ao kaikan, e observei o Rev. Ono estendendo um pano de fundo branco no piso e, com latas de tintas e pincel em mãos, vi para meu espanto um exímio pintor que, com algumas pinceladas, estava pronto um lindo cenário para o palco do Natal. Fica na minha memória o privilégio de conhecer o primeiro ateliê no meio rural do consagrado pintor Manabu Mabe e minha admiração pela versatilidade do Rev. Ono.

 

O Natal, a mais bela e significativa festa da cristandade! O Natal da comunidade anglicana da Igreja Ascensão de Guaimbê era uma celebração marcante que encantava todo o povo guaimbeense. Foi um aprendizado para nós, nisseis mais reservados, que tivemos que vencer a timidez para participar do coral e entoar cânticos natalinos, encarnar personagens bíblicos no palco. Mérito ao Rev. Ono, Sra. Fuki e Anna, que implementaram e incentivaram a realização do evento natalino.

 

Guardo vivamente outras memórias relevantes onde o Rev. Ono revelou seu lado criativo e surpreendente, como a construção de uma quadra esportiva iluminada ao lado da Igreja, com espaço suficiente para jogar voleibol e futebol de salão. Nesse cenário, a UME participou de um campeonato interno de futebol de salão da cidade e sagramo-nos bicampeões nessa modalidade esportiva, para a surpresa e admiração dos guaimbeenses, que diziam, naquela época, que, em matéria de futebol, os japoneses eram todos iguais. Assim, quebramos essa escrita com muito orgulho. O tênis de mesa foi o esporte que encantou e uniu os jovens da UME (União Mocidade Episcopal). Através desse esporte, tive a felicidade em minha vida acadêmica de odontologia de sagrar-me campeão no Torneio Universitário em Lins.

 

Não poderia deixar de citar uma viagem inesquecível que o Rev. Ono proporcionou aos jovens umeistas, cujo transporte fomos na carroceria de um caminhão com cobertura de lona. Visitamos a interessante comunidade Yuba, onde conhecemos sua filosofia de vida comunitária. Participamos de uma saborosa refeição comunitária e, também para nossa surpresa, um banho coletivo de ofurô. Após essa visita, aportamos em Pereira Barreto, onde confraternizamos com os simpáticos jovens da Igreja Santo André, participando das reuniões da UME, estudo bíblico e animadíssimos jogos de voleibol e tênis de mesa. O Rev. Ono sempre prestigiou o esporte, incentivou a cultura e o fortalecimento de nossa espiritualidade.

 

A última lembrança que guardo do Rev. Ono foi quando um grupo de umeistas foi assistir ao culto dominical no bairro Aliança, onde sua família ficou alojada em uma das casas do Sr. Nohara, antes de mudar para Pereira Barreto. À tarde, o Rev. Ono planejou uma excursão ou melhor, um piquenique, onde fomos na carroceria de um trator, e ele, a Sra. Fuki e Anna, de charrete, e outros de bicicletas. O local era no topo de um morro, aconchegante, onde celebramos a vida, prestando louvor e gratidão a Deus e saboreamos um gostoso bento com alguns sacos de frutas. Guardo comigo algumas fotos cujas imagens retratam esses momentos inesquecíveis. “A vida é feita de momentos e pessoas queridas que fazem desses momentos especiais... transformam em dias simples em dias especiais”.

 

Ao ler o livro "A Vida do Rev. Ono", escrito pela senhora sua esposa Fuki Ono, foi possível compreender porque o pequeno Ken, na sua caminhada pela vida de percalços, abandono, angústia, bravura e resiliência, se torna um homem talhado para a vida missionária. O traquejo adquirido na labuta da lavoura, na pecuária e o seu tino comercial resume-se na "Universidade da Vida", dita pelo bispo Lee ao término do curso de teologia no Japão, referindo-se aos anos vividos pelo Rev. Ono no Brasil, onde superou todos os embates que a vida impôs e tornou-se um missionário evangelizador, empreendedor e extremamente arrojado. Construiu a Igreja da Ascensão em Guaimbê com muito sacrifício e dedicação, sem respaldo da Instituição (IEAB), conquista esta louvável e digna de admiração. Outro fato para ser lembrado foi na época em que cursava o ginasial em Getulina, onde via com admiração uma enorme cruz fincada no terreno com a inscrição "Igreja Episcopal do Brasil". Infelizmente, o projeto da emancipação da Igreja da Ascensão de Guaimbê, via agronegócio viu-se interrompido por ordem superior da hierarquia da Igreja Episcopal, e o Rev. Ono foi obrigado a transferir-se para a Igreja Santo André em Pereira Barreto.

 

Homenagear e enaltecer o Rev. Ono é uma condição imperativa para um homem íntegro e de muita fé. Esta fé que incutiu nos membros de sua igreja e pela sua visão abrangente enriqueceu-os com suas atividades, além de religiosa, cultural e social.

 

Ao finalizar o meu relato, não poderia deixar de citar e enaltecer a figura da Sra. Fuki Ono e prestar o meu respeito, admiração e gratidão.

 

Sra. Fuki, uma mulher meiga e bondosa, filha de magistrado, portanto de uma família culta no Japão, ao aportar no Brasil, no interior de São Paulo, na época Guaimbê, uma colônia japonesa a se desbravar, acredito que foi para ela assustador e frustrante. Deixando de lado vários de seus sonhos pessoais e aspirações, para servir aos outros, ela soube conduzir a sua vida ensinando-nos pelo exemplo que o segredo da existência humana reside não somente em viver, mas saber por que se vive.

 

Rev. Ono e Sra. Fuki parecem ter sido moldados a partir de um material mais raro, brilhante e precioso. Nasceram para servir, ajudar e espalhar a palavra de Deus. Somente um grande e sublime amor vivido por este casal foi possível superar as adversidades do ministério pastoral e deixaram um legado de religiosidade e resiliência que serviu de alicerce ao caráter e à fé de todos nós.

 

Neste relato, busquei compartilhar as lembranças e vivências de minha infância e adolescência em Guaimbê, enaltecendo a figura inspiradora do Rev. Barnabé Kenzo Ono e sua esposa Sra. Fuki. Suas ações, ensinamentos e amor ao próximo fizeram toda a diferença em minha formação e na de tantos outros. Agradeço a Deus por tê-los colocado em meu caminho e por ter tido a oportunidade de conhecê-los e aprender com eles.

 

Que suas memórias e legado permaneçam vivos em nossos corações e que suas histórias de vida continuem a inspirar e motivar as gerações futuras. Com gratidão e respeito, presto minha homenagem ao Rev. Barnabé Kenzo Ono e Sra. Fuki Ono, verdadeiros exemplos de fé, amor e serviço ao próximo. Que Deus os abençoe sempre. Amém.

 

 

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