Eu vi, ninguém me
contou. Foi uma cena inusitada, digna de registro para posteridade. Pena que eu
estava desprovido de máquina fotográfica, gravador superpotente ou aparelho
celular, de última geração. Por isso, hão de acreditar na minha narrativa, para
que esta história ganhe vida e clima de realidade. Do contrário, não passará de um mero texto lançado
ao vento. Estou certo de que darão credibilidade ao que eu digo. Se assim
acontecer, vou continuar nessa lida de escrever o que me vem na mente ou em
registros remotos de minha infância.
Era por volta da meia
noite, quando eu passava perto do campo santo. A lua cheia, escondida entre
nuvens, observava o meu caminhar lento e tremulo. Qualquer barulho ou balançar
de uma folha causava-me espanto. Na minha imaginação, até uma sombra
perseguia-me, como que querendo pregar-me um susto. As lendas da minha avó saltavam
aos olhos, ganhando forma e vida. Os mistérios e enigmas do universo, sempre
despertaram minha curiosidade.
Mesmo suando frio,
procurei alojar-me atrás de uma árvore de onde pudesse observar a cena, sem ser
notado. Minha respiração ofegante era contida com muito esforço. Qualquer
deslize da minha parte poderia colocar tudo a perder. Uma mistura de medo e
curiosidade, não me deixava sair dali. Fogos-fátuos brilhavam aqui e acolá,
como na árvore de natal. Uma coruja pousou no cruzeiro e entoou um canto
sombrio. As placas enferrujadas dos túmulos dançavam a dança do vento gelado, naquela
noite interminável.
De repente, eis que
vislumbro dois cadáveres, sentados sobre um ataúde, na entrada do campo santo.
De longe observei que estavam revoltados, por algo que os incomodavam. Apurei
meus ouvidos e, então, tomei tento do que estava acontecendo. Segundo eles, o
local gozava de total abandono. Jazigos abertos ou violados, chorumes
escorrendo além-muros, ossos jogados ao relento, campa sem identificação, sala
de velório sem o mínimo de conforto e por ai se vai.
“Já não basta a última morada ser construída distante do centro urbano,
no meio do mato. Ainda temos que suportar esse abandono e desrespeito”,
dizia o mais tagarela. E o outro retrucou: “Que
tal fazermos uma greve de fome e tirarmos o sono daqueles que ainda respiram a
vida?”. “Boa ideia! Vamos sair à
noite e visitá-los no conforte de seus lares, para cobrar o que nos é de
direito?”, disse o primeiro. E assim, entre um assunto e outro, a conversa
se estendeu noite à dentro.
E eu ali, quieto e
calado, ouvindo e observando tudo. Então, passei a conversar com meus botões.
Será que os governantes e as pessoas do povo, imaginam que jamais irão morar
ali? Pensam ser imortais e acreditam que tudo é eterno. Ledo engano! Os
moradores daquele condomínio não tem mais voz ativa e, o que é pior, não saem
mais de suas urnas, para irem até as urnas eleitorais. Se quando estavam entre
os seres viventes, poucas importâncias davam a eles, imagina agora. Sem vida,
sem voz, longe de tudo e de todos, esquecidos pelo tempo. É certo que ninguém
tem tempo, para cuidar de quem, agora, tem todo tempo do mundo.
Talvez, num tempo não muito
distante, o rei lembre que ali também pode estar descansando alguém da
monarquia ou que deteve título de nobreza. Se bem que ali, o poder econômico ou
os títulos, pouca importância tem. Mas o que mais se espera, é respeito aos que
tanto fizeram pelo reino, enquanto aqui estiveram. Não pelo que conquistaram,
mas, sim, em suas memórias. Ali repousam aqueles que ajudaram a construir a
história do Reino Caiçara.
A conversa estava para lá de boa, quando
um deles lembrou que o dia já se avizinha. Se não se recolhessem logo aos seus
aposentos, poderiam confundi-los com os espectros da noite. Saíram dali e
adentaram, até desaparecerem feito vultos na escuridão. Permaneci mais um tempo
ali, pois não queria ser notado. Eu estava tão empolgado, que nem percebi
quando a coruja foi embora.
Só sei que os dois foram dormir,
mortos de raiva.
Peruíbe SP, 24
de junho de 2017.