quarta-feira, 28 de agosto de 2019

BOCA SANTA

Adão de Souza Ribeiro

                                   “Não sou cadeado para guardar segredo”. Essa era a premissa de Zéfinha Falamansa, codinome de uma mulher esguia e de meia idade, moradora na minha terra natal, cujo nome de batismo era Josefa do Perpétuo Socorro. Com o passar do tempo, sem que percebesse, virou lenda, um patrimônio histórico e algo a ser estudado até pela NASA. Em que pese às rusgas de conterrâneos ortodoxos, era querida pela maioria das pessoas simples do lugarejo.
                                   Na torre da igreja, haviam alto-falantes direcionados para os quatro pontos cardeais. Através deles, ouvíamos as noticias cotidiana, como por exemplo, batismos, festas religiosas, missas de corpo presente, funerais etc. e tal. O rádio de válvula, com suas ondas curtas e frequências moduladas, também nos mantinham em contato com o mundo a nossa volta. Mas nada tinha encanto e magia, comparadas com as conversas de Zéfinha Falamansa.
                                   Com seu físico, que dava conotação de fragilidade, voz mansa e oratória de causar inveja, tudo o que falava, inspirava uma credibilidade inquestionável. As coisas que aconteciam, passavam pelo crivo daquela mulher, que filtrava tudo para, depois repassar, ora omitindo detalhes, ora recheando com inverdades desmedidas. Não demorou muito e foi ganhando adeptos. As fofocas proferidas, por ela e seus seguidores, viraram uma epidemia incontrolável. Mas todos admitiam, que como Zéfinha Falamansa, não tinha igual.
                                   Só aquela mulher detinha as informações privilegiadas. Não era ela que procurava as fofocas, os fuxicos, os mexericos, os futricos e os diz que diz. Eram as conversas sem nexo, que as procurava, numa velocidade absurda.  Tinha até o padre octogenário, que, de vez em quando, durante a homilia, não dispensava uma conversa descabida sobre a vida alheia. Mas, nem de longe, chegava aos pés da nossa personagem. Ela sabia em minúcias, sobre as puladas de cerca da esposa do alcaide. Também que Florisbela, filha do delegado, andava arrastando as asas para os lados de Rosa Maria, filha do tenente Raimundo. Comentava, sem reserva, das falcatruas de Sigismundo, o presidente da Câmara de Vereadores. Espalhava sem medo, que o filho de Moisés, pastor da igreja “Paz no Senhor”, era dono de uma biqueira (ponto de comércio de droga), ao lado do velho matadouro.
                                   Queria saber de um fato acontecido na calada da noite ou de algo que ainda estava no prelo? Era só conversar com Zéfinha Falamansa. Sempre que uma pessoa tencionava fazer algo errado, procurava fazê-lo longe dos olhos daquela famosa personagem. Quando alguém queria difamar um desafeto, bastava levar até aos ouvidos dela. O assunto virilizava mais rápido, do que nas redes sociais de hoje. Quem a visse pela primeira vez, não imaginava o poder que tinha a sua língua. Antes de agirem, diziam: “Cuidado com a língua... o veneno daquela jararaca. Se ela morder a própria língua, morre envenenada num canto”.
                                   Será que estava no DNA ou era um hobby, falar mal ou inventar coisas sobre as pessoas ou fatos inverídicos? Cabelos compridos até a cintura, vestido longo até os pés, blusa de gola, cobrindo o pescoço, dava um ar de beata e um jeito de santa. Na verdade, de santa não tinha nada, nem auréola. Bastava alguém partir para o andar de cima, antes do combinado e ela já tinha na ponta da língua, o motivo do passamento do conterrâneo. De vez em quando, descambava para as premunições, pois sabia de tudo o que acontecia ou iria acontecer.
                                   Numa cidade, onde todos tinham apelido, não se sabia quem a agraciou com o codinome de “Zéfinha Falamansa”. Tornar-se um desafeto dela, assumindo a autoria do apelido, era muito arriscado. Certo que se ela soubesse, iria massacrá-lo com fofocas, até neutralizá-lo por inteiro. Odiada por uns e respeitada por outros, ela existiu. Pode-se afirmar que não é uma fofoca do literato. Conto histórias fantasiosas, fruto do imaginário, mas, jamais mentiras descabidas. Isso eu deixo por conta de Zéfinha Falamansa.
                                   Conta à lenda que, certa feita, ao fazer fofocas de Maria Aparecida, uma marafona e mãe de santo, a nossa querida Zéfinha Falamansa, mordeu a própria língua. Uma casa de caboclo feito pela macumbeira. Não falava mais, apenas balbuciava palavras inteligíveis. Não morreu, mas perdeu o veneno que tanto a alimentava. No passado, Zéfinha Falamansa, uma fofoqueira impiedosa; hoje, Zéfinha Boca Santa, curada das maldades.


Peruíbe SP, 28 de agosto de 2019.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

DE REPENTE

Adão de Souza Ribeiro

                        De repente nascemos. Eis ai o primeiro milagre da vida e da existência humana. A partir de então, começa uma longa caminhada rumo ao desconhecido. A cada passo, um novo desafio a ser vencido. Nada há de passar despercebido. Um olhar, um beijo, uma lágrima, um sonho, uma tragédia, uma decepção, tudo ficará para sempre, retido na memória. As partículas do cotidiano, vão moldando nosso caráter. Tudo é contemplação... tudo é mistério.
                        A mãe balançando o berço, o vento balançando a madeixa. O menino flertando com a guria: “Ah deixa, antes que a mãe veja!”. Bendito seja, o terço rezado, durante as noites de tormenta. As cantigas de roda na calçada, em noites enluaradas. O cuscuz com leite, ao lado do fogão a lenha, sem milongas, sem resenha. As histórias de assombração, contadas pela avó, para que folclore na se perca. Os “melões de São Caetano”, colhidos na cerca, que divide o quintal do vizinho. A menina que larga da boneca, quando o amor chega ao coração. Lá vem a história do Adão, cometendo o primeiro pecado. Rogai por nós!
                        De repente o mundo se descortina a nossa frente. Uma tempestade de fatos e informações desemboca sobre nós, numa fome voraz, numa velocidade estonteante. Ontem, um saudoso rádio de válvula; hoje, aparelhos celulares de última geração. Ontem, um velho carro de boi cortando o chão de terra batida; hoje, foguetes estrelares, rompendo a velocidade do som. Lá num canto escondido e silencioso da memória, buscamos abrir o baú empoeirado do passado, na ânsia de encontrarmos registros de um tempo, que não volta mais. Choramos sob a luz tênue do sótão da solidão.
                        A transitoriedade da vida nos amedronta. O literato corre desesperadamente em busca de palavras desconexas, a fim de salvar o que se perdeu no tempo. E na mesma esteira, lá se vão os músicos, pintores, bailarinos, atores e todos os filhos da arte, tentando resgatar o que ainda resta, antes que seja tarde. A humanidade caolha, nada vê a sua frente, senão o consumo exagerado de coisas desnecessárias ao enriquecimento da mente, da alma, do espírito e do coração. Por onde andam as crianças de infâncias não muito distantes, onde tudo era simples, onde tudo era paz? E a terra natal, uma cidade pequena, de pele morena, quanta saudade nos traz!
                        Mas se a vida tem pressa, temos que sacudir a poeira e seguir em frente, numa caminhada insana, rumo a lugar nenhum. Se cair no despenhadeiro, pede ao santo padroeiro, proteção. Quando de madrugada, acordarmos desse pesadelo, dessa tortura, só nos resta chorar e clamar por piedade. Lembrar-se de crianças amigas, sentadas em roda na calçada, em noites enluaradas, brincando sem maldade. Ou as vendo correrem descalças pelas ruas de terra, em meio à enxurrada de chuva torrencial. Por que as fases da vida passam tão depressa, sem pedirem licença?
                        De repente, tudo fica para traz. Por que o amor platônico do poeta não se materializou? Desgovernada, a vida vai tomando novos rumos, sem bússola e sem nada para nos guiar. Quando menos se espera, já estamos na segunda, terceira, quarta, quinta idade e por aí se vai. Uma ruga aqui e uma dor acolá. A visão, que não mais divisa os horizontes dos sonhos. Um passo sem compasso e sem régua, para medir a distância entre a vida e a morte.  O coração já sem força para pulsar e, muito menos, para amar a cabrocha que tanto desejou. As mãos trêmulas, sem força para acenarem na estação férrea. A voz rouca e tresloucada, que não diz nada com nada. O ouvido ensurdecido pelo progresso, não mais ouve o pedido de socorro, que desce morro abaixo.
                        E assim, sem nos darmos conta, a esperança vai se esvaindo por entre os dedos, sem escrúpulo e sem segredo. De nada adianta a posse, a beleza e os títulos honorários, pois tudo é efêmero e a eternidade, apenas uma quimera. Se fossemos eterno, quem me dera! Com a respiração ofegante, o que era futuro, passa a ser ontem. E no mesmo diapasão, nascem os filhos, que trilharão pelos mesmos caminhos, nossos e de nossos avós. E para que se cumpra a profecia, vão caminhar sozinhos, de noite e de dia, em busca de seus sonhos e de suas decepções.
                        De repente, estamos aqui a dissertar sobre a nossa breve passagem pelo planeta. E, antes que eu me esqueça, dá-me um copo de tequila, para afugentar essa conversa enfadonha. Às vezes o poeta delira, às vezes sonha. De repente estamos aqui... de repente não mais.  

Peruíbe SP, 20 de agosto de 2019