segunda-feira, 19 de agosto de 2019

DE REPENTE

Adão de Souza Ribeiro

                        De repente nascemos. Eis ai o primeiro milagre da vida e da existência humana. A partir de então, começa uma longa caminhada rumo ao desconhecido. A cada passo, um novo desafio a ser vencido. Nada há de passar despercebido. Um olhar, um beijo, uma lágrima, um sonho, uma tragédia, uma decepção, tudo ficará para sempre, retido na memória. As partículas do cotidiano, vão moldando nosso caráter. Tudo é contemplação... tudo é mistério.
                        A mãe balançando o berço, o vento balançando a madeixa. O menino flertando com a guria: “Ah deixa, antes que a mãe veja!”. Bendito seja, o terço rezado, durante as noites de tormenta. As cantigas de roda na calçada, em noites enluaradas. O cuscuz com leite, ao lado do fogão a lenha, sem milongas, sem resenha. As histórias de assombração, contadas pela avó, para que folclore na se perca. Os “melões de São Caetano”, colhidos na cerca, que divide o quintal do vizinho. A menina que larga da boneca, quando o amor chega ao coração. Lá vem a história do Adão, cometendo o primeiro pecado. Rogai por nós!
                        De repente o mundo se descortina a nossa frente. Uma tempestade de fatos e informações desemboca sobre nós, numa fome voraz, numa velocidade estonteante. Ontem, um saudoso rádio de válvula; hoje, aparelhos celulares de última geração. Ontem, um velho carro de boi cortando o chão de terra batida; hoje, foguetes estrelares, rompendo a velocidade do som. Lá num canto escondido e silencioso da memória, buscamos abrir o baú empoeirado do passado, na ânsia de encontrarmos registros de um tempo, que não volta mais. Choramos sob a luz tênue do sótão da solidão.
                        A transitoriedade da vida nos amedronta. O literato corre desesperadamente em busca de palavras desconexas, a fim de salvar o que se perdeu no tempo. E na mesma esteira, lá se vão os músicos, pintores, bailarinos, atores e todos os filhos da arte, tentando resgatar o que ainda resta, antes que seja tarde. A humanidade caolha, nada vê a sua frente, senão o consumo exagerado de coisas desnecessárias ao enriquecimento da mente, da alma, do espírito e do coração. Por onde andam as crianças de infâncias não muito distantes, onde tudo era simples, onde tudo era paz? E a terra natal, uma cidade pequena, de pele morena, quanta saudade nos traz!
                        Mas se a vida tem pressa, temos que sacudir a poeira e seguir em frente, numa caminhada insana, rumo a lugar nenhum. Se cair no despenhadeiro, pede ao santo padroeiro, proteção. Quando de madrugada, acordarmos desse pesadelo, dessa tortura, só nos resta chorar e clamar por piedade. Lembrar-se de crianças amigas, sentadas em roda na calçada, em noites enluaradas, brincando sem maldade. Ou as vendo correrem descalças pelas ruas de terra, em meio à enxurrada de chuva torrencial. Por que as fases da vida passam tão depressa, sem pedirem licença?
                        De repente, tudo fica para traz. Por que o amor platônico do poeta não se materializou? Desgovernada, a vida vai tomando novos rumos, sem bússola e sem nada para nos guiar. Quando menos se espera, já estamos na segunda, terceira, quarta, quinta idade e por aí se vai. Uma ruga aqui e uma dor acolá. A visão, que não mais divisa os horizontes dos sonhos. Um passo sem compasso e sem régua, para medir a distância entre a vida e a morte.  O coração já sem força para pulsar e, muito menos, para amar a cabrocha que tanto desejou. As mãos trêmulas, sem força para acenarem na estação férrea. A voz rouca e tresloucada, que não diz nada com nada. O ouvido ensurdecido pelo progresso, não mais ouve o pedido de socorro, que desce morro abaixo.
                        E assim, sem nos darmos conta, a esperança vai se esvaindo por entre os dedos, sem escrúpulo e sem segredo. De nada adianta a posse, a beleza e os títulos honorários, pois tudo é efêmero e a eternidade, apenas uma quimera. Se fossemos eterno, quem me dera! Com a respiração ofegante, o que era futuro, passa a ser ontem. E no mesmo diapasão, nascem os filhos, que trilharão pelos mesmos caminhos, nossos e de nossos avós. E para que se cumpra a profecia, vão caminhar sozinhos, de noite e de dia, em busca de seus sonhos e de suas decepções.
                        De repente, estamos aqui a dissertar sobre a nossa breve passagem pelo planeta. E, antes que eu me esqueça, dá-me um copo de tequila, para afugentar essa conversa enfadonha. Às vezes o poeta delira, às vezes sonha. De repente estamos aqui... de repente não mais.  

Peruíbe SP, 20 de agosto de 2019

2 comentários:

Ilinice Martins disse...

Essa é a vida, que passa tão rapida.Não conceguimos segurá- la.
Nos deixa apenas rastros de nossos sonhos uns reslizadose outros não.

Unknown disse...

Que maravilha,derrepente vi minha vida através deste poema.