Adão de Souza
Ribeiro
Se tinha uma coisa que o meu amigo Zé não
gostava de falar era sobre a morte. Causava ojeriza só de pensar na palavra. “Não
fala isso, que traz mau agouro”, dizia ele. O amigo de que tanto falo,
procurava desconversar, toda vez que o assunto girava em torno de alguém que
partiu antes do combinado. Sabia que um dia, iria dar de cara com ela batendo à
sua porta; mas, a bem da verdade, preferia que adiasse por muito tempo a tal
visita. Nem piada gostava de fazer ou ouvir a respeito do assunto tão indesejado.
Quando alguém partia para mansão do
desconhecido, o Zé não participava da despedida derradeira. Sabia que se lá
estivesse, causaria constrangimento aos presentes, pois iria levar tudo na
brincadeira. Por isso, costumava passar procuração informal para que alguém o
representasse. Se fosse preciso, pagaria até umas carpideiras, para derramarem
lágrimas pesarosas no lugar dele. Era
bom, porque a presença delas, na solenidade fúnebre, dava certo status defuntício
ao de cujus.
Tenho grande saudade das vias crúcis, que fazia com o velho amigo nas noitadas boemias ou
nas tardes preguiçosas de domingo. Percorríamos bar por bar ou quiosque por
quiosque, onde, em companhia de outros amigos, dividíamos os copos de “mé” ou
as dolorosas histórias de “chifres”. Quantas vezes a comida feita pela “dona Encrenca”,
esfriava em cima do fogão à nossa espera. Voltar para o reduto do lar, depois
de longas horas de romaria, era verdadeiro calvário. Era bronca na certa ou uma
dolorosa surra com pau de macarrão.
Se tinha uma coisa que eu admirava naquele saudoso
amigo, era sua queda por um “rabo de saia”. Pensa num raparigueiro de marca
maior. Assemelhava-se aos caminhoneiros ou caixeiros viajantes, pois em cada
parada, tinha uma amante. Dona Encrenca tinha um valor imensurável, mas as
amantes também tinham lá suas qualidades. A primeira oferecia um reduto,
repleto de conforto, segurança e filhos; já outra, dava carinho, sexo e muitas
fungadas na nuca. Em compensação, pelo conforto oferecido, uma pedia mil coisas
em troca; mas a outra, após saciar seus desejos bestiais, nada pedia em troca.
Penso que é por isso que o Zé, meu velho e saudoso amigo Zé, nunca abriu mão do
título de “Zé Raparigueiro”. Os amigos o invejavam e já as mulheres com suas
donzelices enrustidas, temiam ser conquistadas, ou melhor, ser seduzidas por
ele.
E assim o Zé levou a vida, sem se preocupar
com nada deste mundo. Um homem trabalhador, honesto, bom esposo, pai e filho.
Era pau para todo obra. Solicito para com os amigos e parentes. Fugia da morte
e da tristeza, mas não abria mão de ser alegre e raparigueiro. Toda criança e
cachaceiro tem um anjo da guarda infalível. Quantas vezes, dirigindo o seu “baja”,
chegava a casa trançando as pernas, sem saber o trajeto percorrido. “Será
que os cachaceiros e raparigueiros tinha um GPS especial?”, pensava com
meus botões.
Ele, o meu amigo Zè, achava graça e leveza em
tudo. Vivia sorrindo de tudo e até parecia um bobo alegre. Adorava participar
ou fazer churrasco. Reunir-se com os parentes ou amigos, era seu maior e mais prazeroso
passatempo. Apesar dos seus pequenos defeitos, se assim podíamos dizer, a dona Encrenca
não se desgarrava dele. Para mim, aquele jeito malandro do Zé (malandro no bom
sentido), a fascinava e causava certo tesão (excitação) nela. Posso ser
sincero? Não só nela, mas, também, em outras donzelas ou não.
Com aquele jeito de “Dom Juan Di Marco”, acabou
conquistando e se relacionando com dezenas de fêmeas. Dentre todas, selecionou
seis com quem “furunfou” e teve filhos e filhas. Com maestria, sabia dar
conforto e carinho a todas elas e aos filhos também. Se um escritor ou cineasta
o tivesse conhecido, transformaria a sua vida de raparigueiro num romance ou
num filme, com certeza. Por vezes, cheguei pensar que de seus poros, emanava um
mel de cheiro e sabor divino. Se as empresas de perfumes e cosméticos o
conhecessem, o transformaria em fonte inesgotável de lucro.
Zé tinha uma ojeriza da palavra morte. Para
ele, o mundo de alegria e prazer estava por aqui mesmo, bem ao alcance dos seus
olhos. Quando as pessoas morriam, era dito: “Ele descansou e foi para o reino
eterno, gozar dos prazeres celestiais”. O amigo não se cansava das
longas caminhadas entre um bar e outro e, para ele, o reino era aqui e, por
isso, não precisava “bater as botas”, para desfrutá-lo. Perguntava para si
mesmo: “Será que lá no tal reino, tinha mulher e cachaça?”. É preciso
que se diga que ele não era ateu e nem herege, pois tinha uma fé inabalável no “Santo
Padim Pade Ciço”. Um fiel de carteirinha
e, por isso, não faltava às missas domingueiras, ministradas pelo padre Rodrigo.
Desde que partiu das bandas do Norte, montado
num pau-de-arara, rumando para o Sul, o meu amigo Zé, trazia no pescoço o amarelado
crucifixo de Jesus Cristo; no pulso, a fita toda surrada do Senhor do Bonfim e
no bolso, um amuleto da Mãe Menininha do Cantuá (Gantois). Separava a sua fé e
a sua sina de homem raparigueiro. Água e óleo não se misturam, filosofava ele.
O jeito descontraído do Zé Raparigueiro conquistara uma legião de seguidores,
inclusive eu, claro! Se nos finais de semana ele não aparecesse no suntuário
dos botecos ou quiosques, todos entravam em pane. Zé era nosso e não da dona
Encrenca. Não erámos possessivos, mas amigos. Amigo não abandona e nem trai
amigo.
Mas numa tarde de primavera, sem que todos
esperassem e nem mesmo o amigo Zé, a morte sorrateira bateu à sua porta. Não
deu tempo dele avisar os amigos, que no próximo domingo não estaria presente ao
encontro cachacístico. Dona Encrenca, a “teúda”,
em meio a lamurias, prantos e soluços, contou o infortúnio às outras cinco
Encrencas, ou melhor, as cinco “manteúdas”. E cada uma a seu modo, comunicou aos
filhos que Zé viajara para nunca mais voltar. Passado o choque da perda, todas
as seis chorosas esposas, providenciaram os rituais do velório. Não estranhem a
narrativa, porque havia uma harmonia entre as viúvas. Elas sempre se
respeitaram, porque havia um cordão umbilical entre todas, ou melhor, algo em
comum, ou seja: o amor inexplicável pelo meu amigo Zé, o nosso querido “Zé
Raparigueiro”.
Todos se fizerem presente ao velório, ou
seja, amigos, esposas, filhos e família, sem falar de alguns curiosos. As seis
carpideiras oficiais estavam ali, remuneradas pelo sentimento de perda.
Aproximei-me do ataúde e vi no rosto do amigo, uma expressão de tristeza. Não
pela morte que lhe beijou a face de forma tão brusca, mas porque não deu tempo
dele se despedir dos velhos amigos de romaria butequeira. E as risadas, piadas,
tragos na “marvada”, batucadas e pagodes, regados a muitos petiscos, não mais
teriam a participação do agora, saudoso amigo Zé. A partir daquele dia, não só
as esposas, a “Teúda” e as “Manteúdas” chorariam, mas nós também.
Naquele ambiente taciturno, nenhum copo de
cachaça ou cerveja, nenhum samba ou música apaixonada, lembrando a dor de um amigo,
que descobriu ser corno. Nenhuma rapariga dançando ao redor de uma mesa, como
acontecia dentro do boteco esfarrapado. Verdadeiras barangas, oferecendo
momentos de falsa alegria e prazer. Dei uma piscada para ele e sussurrei aos seus
ouvidos surdos, agora por força do destino, dizendo: “Zé aquieta o facho, porque aqui é
um velório. O seu velório Zé. Toma tento, homem.”. Coroas, velas,
faixas com frases de impacto, longas orações puxadas por um padre octogenário.
E o Zé, meu amigo Zé Raparigueiro, um homem sempre alegre e falante, agora ali,
quieto, calado e pensativo. Com os olhos fechados e voltados para o teto,
parecia que não queria ver e aceitar a realidade; “Você morreu Zé. Quando a morte
bateu à sua porta, você não deveria ter aberto e recebido àquela visita. Agora
está ai, sem poder agir, sem poder reclamar. E agora Zé?”.
Queria chorar, mas o Zé não podia saber que
eu era fraco. Segurei o choro e o soluço. Com certeza, se jogasse a toalha ali,
receberia uma bronca dele, na frente dos convidados. Desculpa, na frente das
pessoas pesarosas. Como sempre foi uma pessoa alegre e extrovertida, as viúvas
e todos os presentes fizeram um trato de não chorarem. Assim como o Zé, sempre
fui macho e macho na acepção do termo, por isso soube me conter. Tive como
alento, a presença de algumas raparigas ali naquele ambiente taciturno,
disfarçadas de verdadeiras damas da sociedade. Votei a esquife e, mais uma vez,
cochichei ao ouvido dele, dizendo: “Elas estão ai Zé. Pode descansar em paz”.
Então, foi aí que percebi um sorriso maroto do velho amigo de noitadas de
boemia e de tardes preguiçosas de domingo.
As primas dadivosas foram dar o “último adeus”
ao meu amigo Zé Raparigueiro e, por isso, posso dizer que aquele velório, foi o
mais lindo que presenciei em vida. Na minha vida, não na do amigo, porque ele
já estava morto.
Até hoje, lá pelas bandas da trapaia, contam
a história do Velório do Zé Raparigueiro.
Peruíbe SP, 18 de
abril de 2020.