domingo, 6 de maio de 2018

NAS MÃOS DE DEUS


                      Nas minhas andanças, por esse mundo de Deus, acabei por conhecer “Quinzão”, cujo nome de batismo era Joaquim Inocêncio da Piedade. O amigo de quem falo, assentou morada num vilarejo, denominado Uaiquiqui, encravado no interior do Estado. E eu, por ironia do destino, acabei me desembocando ali e, por me identificar com o lugar, também fiz ninho naquelas bandas. São por essas casualidades, que a vida e a história se cruzam com a de outras pessoas.

                                   O amigo Quinzão era uma figura pitoresca no lugarejo e, com o passar do tempo, virou uma lenda, pelos motivos que passo a narrar.  Conta à lenda, que ele aportara em Uaiquiqui, fugido das bandas do norte do país. Consta que carregava no lombo, além das marcas do sol escaldante daquela região, algumas dezenas de crimes. Mas de todos eles, a sua especialidade, era crime de morte e, em especial, o de mando.

                                   Homem alto, nos seus quase dois metros, branquelo, magérrimo, cabelos grisalhos, rosto fino, nariz adunco e um bigode hitleriano, davam-lhe um ar de carrasco. De pouca prosa, com olhar desconfiado e sem arreganhar os dentes, assim é que mantinha distância das pessoas e, principalmente, de seus desafetos. A voz fina dava-lhe um ar de baitola, mas não era. Um cabra macho sim e de sangue no zóio. Seu andar trôpego fazia tremer o chão de Uaiquiqui.

                                   Já Uaiquiqui, um vilarejo de pouco mais de cinco mil habitantes, tinha no seu principal labor, o cultivo da planta Musa sapientun, conhecida popularmente por banana. Já o comércio mirrado, sobrevivia de alguns armazéns, loja de armarinhos e pequenos botecos, onde os homens tomavam suas cagibrinas e jogavam carteado. Para as donas de casa e as moçoilas, restavam cuidar dos seus afazeres domésticos e tinham como diversão, passearem na praça matriz e, também, rezarem longos terços, nas missas domingueiras.

                                   Por se tratar de um lugar pacato e de poucas querelas, a cadeia vivia jogada às moscas; os homens da lei desfilavam garbosamente pelas ruas, apenas para cumprirem escala. Já o doutor delegado, raras vezes, aparecia e, quando isso acontecia, era para se fazer presente em comemorações políticas ou festivas. Mas, por outro lado, meu amigo Quinzão, vestido no seu manequim nordestino, estava sempre presente em todos os lugares. Não se apartava de uma peixeira afiada, do revólver parabelo, do alforje, do cigarro de palha, feito do fumo de corda, a corrente de ouro com a imagem de Padim Ciço, do chapéu de couro, quebrado na testa e do par de alparcata, protegendo os pés desgastado pelo tempo e das andanças pelo mundo.

                                   De quando em vez, ele era visto nos forrós de pé de serra, dançando um xaxado com uma quenga, toda desajeitada. Estando ele nos bailes da vida, ninguém botava olho na rapariga e, muito menos, criava confusão.  Se arrumassem desavenças, ele tinha por costume dizer: “Não me apurrinha, senão vou te entregar nas mãos de Deus”. Se para um bom entendedor, um pingo é letra, então ele estava alertando que iria matar o cabra safado, que o estava incomodando. Matar não, pois quem matava era Deus, ele apenas entregava nas mãos do Criador, para que o Divino executasse o resto. Por isso, o baile transcorria na mais santa paz. Ouvia-se apenas, o som da zabumba, do triangulo, do fole, da sanfona xonada e dos tintilares dos copos, cheios da “marvada”.

                                   Contam as más línguas, que o avô paterno de Quinzão, era do bando de Lampião. Portanto, matar estava no sangue. Desde pequeno, teve gosto pela morte, começando por matar carrapatos da Baleia, uma cadela mirrada e que sofria de bulimia. Matar dava prazer e não remorso. Sangue frio atirava só para ver o tombo do desgraçado. Certa feita estava a caminho de casa, conduzindo uma charrete e tendo como acompanhante a esposa Amélia Maria.

                                   Ao avistar um desafeto, agachado, sobre as pedras e pescando calmamente, Quinzão disse à esposa: “Fica ai, que vou colocar aquele salafrário, nas mãos de Deus”. Desceu, foi até lá e deu um tiro certeiro na moleira do homem, que caiu nas aguas do rio caudaloso. Voltou e disse: “Vamu embora mulé”, como e nada tivesse acontecido. Numa outra oportunidade, um credor fora cobrar dívida antiga. Após ser importunado, por um tempo e demonstrando calma, disse Quinzão: “Vai mesmo tirar meu sossego? Vou te colocar nas mãos de Deus”. Atirou, mas o infeliz não morreu. Acho que foi mandado para o endereço errado, por isso, não chegou até as mãos de Deus. Sorte do infeliz.

                                   De tanto brincar com a sorte, bateu à porta de Quinzão, um mandado de prisão. Pergunta-se: “Quem tinha culhão para prender Quinzão?”. O Dr. Cana Brava, delegado titular da comarca, que demorava aparecer e, quando isso acontecia, tomava um gole da branquinha com o meu amigo, não se atreveu a cumprir, por medo e amizade. Tal missão coube a Lagarto, um policial antigo e experiente. Depois de muito tempo e conversa e, ainda, com seu jeito perspicaz, Lagarto conseguiu encarcerar o forasteiro vingador.

                                   Durante o cumprimento da pena, Quinzão teria dito aos companheiros de cárcere: “Quando eu sair daqui vou entregar o Lagarto nas mãos de Deus”. Em razão disso, o policial pacato e de uma educação invejável, passou a viver com um olho no padre e o outro na missa. Rezava, pedia a todos os santos e anjos da guarda, por sua proteção. Pagava promessa. Não tinha dúvida de que o meu amigo cumpriria o prometido. Tremia como vara verde, só de ouvir o nome do cangaceiro.

                                   Passado uns anos e por ter cumprido toda a pena, Quinzão voltou ao convívio do povo de Uaiquiqui. A paz na cidade fugiu por entre os dedos. A lenda voltou e com ela, o medo. Ou melhor, o medo de alguém ser colocado nas mãos de Deus, a qualquer momento. Contam que, certo dia, já estando em liberdade, Quinzão convidou Lagarto (policial que o colocou atrás das grades, anos antes), para que fosse ao sítio com ele, a fim de arrancarem umas mandiocas deliciosas. Acertou quem disse, que o policial declinou do convite.

                                   Informações dão conta de que, há muitos anos, isso para mais de vinte, o meu amigo Quinzão deixou à pacata e ordeira cidade de Uaiquiqui, mudando-se para outro Estado. Como diz o velho ditado: “Quem conta um conto aumenta um ponto”, comenta-se que o jagunço – temido por uns e amado por outros, acabou sendo assassinado por lá. Outros, menos rancorosos, disseram que ele morreu de morte natural. O certo é que Joaquim Inocêncio da Piedade, o velho Quinzão, continua vivo na memória do povo simples e acolhedor, da velha cidade de Uaiquiqui.

                                   Se por ventura, houvesse um entrevero entre este narrador e Quinzão, seria eu a pessoa que o colocaria nas mãos de Deus, antes que ele pudesse puxar o gatilho do seu velho parabelo.

                                   Foi então, naquele momento que eu caí da cama e acordei. Tudo não passou de um sonho. Nossa, que alívio!

 
Peruíbe SP, 06 de maio de 2018

quinta-feira, 3 de maio de 2018

PROPAGANDA: ENTRE O MITO E O MICO


                                    É certo que num país capitalista, o que interessa é o consumo. Antes de tudo, a indústria vê em você, um consumidor em potencial. Para o sistema comercial, não interessa se o produto a ser oferecido é nocivo ou não à sua saúde, se trará ou não resultados positivos no seu dia a dia. Lembre-se que, antes de tudo, você é apenas uma massa de manobra. Por ser um consumidor contumaz, torna-se alvo fácil.

                                               Em nome de um consumismo desenfreado, fabrica-se e vende-se de tudo. Atrás dessa massificação comercial, estão os interesses da indústria nacional e internacional. Todos lucram com produtos benéficos ou maquiados, menos você. Isso se deve a desinformação de quem está comprando e, por conseguinte, consumindo aquilo que é apresentado. Normalmente, a indústria usa os meios de comunicação, para divulgar aquilo que produz e que almejam ser vendido.

                                               Lembro-me que, antes do advento da televisão, eu só tomava conhecimento de algum produto novo no mercado, quando, a pedido de minha mãe, dirigia-me ao “Armazém do Takada”, na “Quitanda do Josias”, no “Bar do Iwai”, no “Bazar do Abraão”, na minha cidade natal. Não havia nos recipientes, que envolviam os produtos, agressividade nos anúncios, quer seja com dizeres ou fotos. Eu, como consumidor, apenas buscava analisar a qualidade. Por ser uma cidade interiorana, tudo era natural, inclusive o que se comprava.

                                               Nos anos setenta, quando a televisão não era colorida e, principalmente, por não dispor de uma tecnologia avançada, os anúncios valorizavam os produtos exibidos. Como poucas pessoas tinham esse aparelho em seus lares, a divulgação de produtos, era muito restrita. Mas, pelo que me lembro do que era exibido na telinha, o foco era o produto e não imagens vãs, que poderiam confundir o telespectador.

                                               Mas com o passar do tempo, tudo mudou. Houve uma propagação daquele meio de comunicação. A televisão foi invadindo os lares simples da minha cidade natal e, por força do progresso, a mudança de comportamento social. Não demorou muito e, com a ajuda de recursos tecnológicos, os produtos anunciados ali, perderam a sua essência e o seu romantismo. Os criadores de propaganda passaram a inserir imagens apelativas, a fim de chamarem a atenção do consumidor.

                                               Aos poucos, ainda na minha infância, vi mulheres seminuas e de corpo escultural lambuzando com creme de beleza, vaqueiros valentes fumando sobre seus alazões, artistas de novela tomando cerveja, atletas famosos conduzindo veículos caríssimos e por aí se vai. Embriagava-me com tudo aquilo, porém, mal sabia que, por traz daquela apelação, havia estudiosos do comportamento humano. Sabiam atingir um público alvo, sem muito esforço.

                                               Hoje, por não ser tão abestalhado, como naqueles tempos pretéritos, tomo conhecimento que existe um estudo chamado “neuromarketing”. Os cientistas procuram estudar o comportamento do cérebro, diante de uma imagem ou de uma mensagem recebida. Debruçados nessa tal pesquisa, na clausura de seus laboratórios, passaram a esmiuçar o cérebro, a fim de entenderem o que se passa na cabeça dos homens e mulheres, bem como, o efeito da propaganda, quando visualizada.

                                               Os cientistas loucos descobriram que o cérebro é dividido em três regiões, quais sejam: neocortex (ligado à razão), sistema repitilico (relacionado aos instintos) e límbico (que processa as emoções). Esse estudo permite que, ao descer no subconsciente da pessoa, a indústria saiba o que consumidor percebe e sente, ao entrar em contrato com o produto a ser consumido. Diante do estudo, notou-se que há quatro mitos sobre o cérebro, quanto à vinculação de anúncios, a saber: 1) sexo vende, 2) fazendo merchandising em programas de televisão é sempre um bom negócio, 3) imagens trágicas desestimulam comportamentos e 4) estatísticas são os melhores argumentos.

                                               Diante do que a indústria capitalista produz, do mito descoberto pelos cientistas, em ajuda as empresas de propaganda, só não quero pagar mico, ao consumir aquilo que me é empurrado goela abaixo.

 
Peruíbe SP, 03 de maio de 2018