sábado, 24 de novembro de 2018

AMORES IMPOSSIVEIS

                     João amava Maria. Maria amava José. José não amava ninguém. João era pobre, filho de caminhoneiro. José era rico, filho de fazendeiro. Maria, bela e formosa, filha de contador de dinheiro. Naquela história de amores tão antagônicos, brotava algo tão sublime, que marcaria para sempre a vida de João. O cenário do que aqui se pretende narrar, era uma cidade bucólica, encravada no interior do Estado.
                                   Como sentimento não tem cabresto, João selou o seu destino, sem ter noção de onde iria parar. Por ser persistente, o coração enamorado daquele jovem, simples e sincero, vivia intensos momentos de sonhos e fantasias. Embriagado por desejos incontroláveis, ele divagava noite adentro, entre crônicas e poesias. Produziu belos hinos de amor, pensando na mulher amada. Mas ela, que nada!
                                   Mas se Maria amava José, o que seria da vida de João? A cidade pequena e acolhedora, nada podia saber do que se passava na alma do nosso protagonista. Não queria ele dar nenhuma pista de sua musa inspiradora. Era um sentimento intimo e só seu. Não pretendia causar transtorno a Maria, nem de noite e nem de dia. Bela e formosa, deveria embelezar o jardim das ilusões de João, sem despertar suspeita.
                                   Por que José não demonstrava carinho por Maria? Preocupado com a lavoura e o gado, José vivia outra realidade. Rodeado de amigos e bajuladores, buscava outros prazeres, longe dos braços, do cheiro e do calor de Maria. Mesmo assim, ela se derretia de amores por José, amigo inseparável de João. Maria ostentava beleza, simpatia e roupas de grife. José pouco se importava com a posse que tinha. João, perdido na sua timidez, preferia falar de amores impossíveis, em seus versos de rimas ricas ou pobres.
                                   A cidade de vida simples fez de João um homem simples. Foi naquela toada, que aprendeu com humildade, aceitar os desígnios de Deus. Se os olhos de Maria admiravam outro varão, nada restava a João, senão abrandar o seu próprio coração. E foi assim, aos poucos, que ele aprendeu a conviver com resignação, as longas decepções amorosas. Percebeu que o coração tem lá suas razões, que a própria razão desconhece. Se ela não o amava, restava apenas uma prece amena.
                                   Embora soubesse que José ocupava o coração de Maria, ele (João) tinha um carinho e um respeito imenso pelo amigo. Sabia que, um dia, o destino haveria de dar um epílogo àquela história, que nem mesmo havia começado. Havia tantas Marias, que transitavam formosas para lá e para cá, pelos jardins floridos da imaginação de João. Mas por que foi se engraçar logo por Maria, filha do contador de dinheiro? Deveria ter se apeado bem cedo, daquele romance impossível, antes que pudesse se machucar ao primeiro galope.
                                   Na escola, quando os amigos de João, o viam tristonho, puxavam-no de lado, para bisbilhotarem sobre o que se passava com ele. João quieto e moribundo, nada dizia, apenas resmungava: “Um dia, tudo isso passa”. Maria vai embora, ganhará asas e fará morada em outro coração. João, por sua vez, vai amadurecer e perder a timidez e, quem sabe, conquistar outra princesa, com a mesma beleza dela. E, José que ficou alheio a tudo isso, irá cuidar dos seus bens por ali ou partirá para o pantanal, no primeiro trem?   
                                   Mas quem, em sã consciência, nunca teve uma queda pelo sorriso e olhar sensual de uma cabrocha tão meiga e tão bela? Não importava quem era ela. Se se vestia roupa de grife ou de chita, pobre ou rica, não fazia diferença. O que tinha peso para o adolescente apaixonado, na realidade, era ter sido ela a escolhida, dentre tantas. O destino não traça o mapa do sentimento alheio, apenas mostra o caminho, o meio de se buscar a felicidade. Mas Maria havia se enamorado de José e não de João. Triste canção, sem rima e sem enredo. Por que aquela história de amor tão puro e tão belo haveria de perecer tão cedo?
                                   Não tenha medo, meu amigo, pois vou te contar um segredo. Tudo isso é apenas o enredo de uma história de amores impossíveis, ocorrido na cidade da nossa imaginação. Nada mais!


Peruíbe SP. 24 de novembro de 2018

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O BERÇO


                                   “A educação vem do berço”. Por centenas de vezes, ouvia essa frase dos meus pais ou dos meus professores. Por isso, sempre acreditei que a educação, brota no seio da família, com a responsabilidade dos pais. O berço representa o início da vida, onde somos acolhidos com proteção e carinho. Ali, ao alcance dos olhos de nossos pais, despertamos para a vida e para o mundo.

                                   Sempre fui apegado às pequenas coisas, as quais, em sua simplicidade, traziam dentro de si, uma simbologia. Ainda na tenra infância, sabia que aquilo marcaria para sempre o meu destino, como se fosse um ferrão. Eu ficava horas e horas, comtemplando os sinais da natureza, o encanto dos animais, os trejeitos das pessoas, a beleza das melodias, as entrelinhas de um verso e por aí se vai.

                                   Creio que as crianças da minha época, viam-me como um rebelde, louco ou ermitão. Em razão da transitoriedade da vida, queria viver intensamente cada momento e deixar fotografado na memória, tudo que entendia ser precioso para a minha vida tão efêmera e tão frágil. Por isso, dentre as minhas preciosidades, não foge de mim, a imagem do berço.

                                   Num canto do quarto, lá estava ele. Enquanto ele me acolhia, em meio ao lençol macio, minha mãe velava pelo meu sono infantil. Uma luz tênue afugentava os espectros da noite e permitia que minha mãe não se descuidasse de mim. Uma mamadeira, um chá de camomila e um chocalho eram partes dos cuidados maternos. Assim, por muito tempo, senti-me acariciado e protegido. Um dia, eu ganharia asas e o berço seria apenas um quadro pendurado na parede envelhecida da memória. Pendurado, mas não esquecido.

                                   Quando ganhei força nos braços e nas pernas, atrevi-me a agarrar em suas grades firmes e acolhedoras. De longe, minha mãe observava os primeiros movimentos de alguém, cujo destino, sabia ela, era desbravar um mundo longínquo e misterioso. O limite do berço ensinou-me a ter disciplina e obediência, mas, ao mesmo tempo, lutar pelo sonho de transpor barreiras inimagináveis. Enquanto ele fez parte do meu mundo infantil, aprendi ser paciente e, ao mesmo tempo, perseverante.

                                   Tenho para mim, que ali dormitava o sentido da frase: “A educação vem do berço”. Ali aprendi que tudo tinha o seu tempo... tempo de dormir, de mamar, de sonhar, de andar, de obedecer, de aprender, de acreditar na vida, de esperar a morte e de dar um tempo para tudo. Foi ali, ao lado dele, velando pelo meu sono, que meus pais me educaram para a vida, que se avizinhava. O berço ensinou-me a não me apartar do amor e da fé.

                                   Aquele berço, por vontade do destino, abrigou todos os meus irmãos, com o mesmo carinho e paciência. Não bastasse isso, duas sobrinhas, filhas do meu irmão caçula, buscaram nele o mesmo amor. Lá estava ele, a derramar afago a todos da minha linhagem. Nunca recusou o calor do seu colchão, o beijo do seu lençol e nem a proteção de suas grades. Os seus pés firmes, sustentou todos os sonhos de minha família. O tempo passou, mas ele nunca se arredou de mim. Por isso, permanece vivo na minha memória.

                                   Envelheci, com o passar dos anos, mas ele continua firme, esperando a chegada do filho da minha sobrinha. Lá num canto do quarto, está ele de braços aberto e muito ansioso, pela chegada de mais uma vida. Ele cuidará de um anjo, assim como cuidou de mim, o primogênito da família. Ele saberá cuidar e educar daquele que, com suas asas brancas, simbolizando a pureza, pousará no lar.  

                                   Tenho pelo berço, um grande apreço. Mas um dia, quando o berço já carcomido pelo tempo, não tiver mais forças para abrigar os nossos sonhos, vou rezar um terço, para ele descansar em paz.

 
Peruíbe SP, 19 de novembro de 2018

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

VELHO VIADUTO

Um viaduto
Velho e cansado
Deu um susto
No povo apressado.
Num ponto cedeu
Causando medo
Oh, meu Deus!
Ainda bem cedo.
Na grande cidade
A veia interrompida
Deixou a vaidade
E contemplou a vida.
A via expressa
Passou para a lateral
E viu que a pressa
Faz tanto mal.
Um viaduto
Velho e abandonado
Ficou mudo
Agora é passado.

Peruíbe SP, 16 de novembro de 2018.


sábado, 3 de novembro de 2018

AVENTURAS DO CIDO BOBO

                                            Ele caminhava para lá e para cá, pelas ruas silenciosas da minha cidade natal. Por não ter compromisso com a vida e com o mundo, percorria tranquilamente todos os lugares e cruzava as esquinas do presente, sem os cuidados necessários. À época, tinha a mesma idade que eu e, por isso, compartilhávamos das coisas inocentes da infância. Ele, ao seu modo, levava uma vida bem mais simples do que eu e do meu circulo de amigos. E foi aos poucos, que pude entender que era patrimônio do lugarejo.
                                   Não tinha sobrenome estrangeiro e a família não gozava de posses, razão pela qual não era cortejado pelos demais moradores, inclusive, os mais abastados. Enquanto alguns meninos e meninas desfilavam suas ostentações, representadas por roupas, casas suntuosas e carrões do ano, ele exibia apenas a sua simplicidade no andar e no falar. Lembro-me que ele ficava longas horas, parado defronte um bar, armazém ou loja de armarinho.  Permanecia estático, até ser escorraçado por um comerciante incomodado, com não sei o quê.
                                   Tinha por companheira, Bastiana – uma cachorrinha magricela e moribunda. Por coincidência, uma vira-lata e sem pedigree, que ora ele a arrastava presa a um cordão, ora levava debaixo do braço. Era a confidente, com quem desaguava a falar dos seus infortúnios e dos seus sonhos incompreendidos. Na maioria das vezes, balbuciava palavras inteligíveis, pois babava constantemente. Mas ela, a Bastiana, o compreendia através dos pequenos gestos. Em que pesava as más línguas, sobre o relacionamento dos dois, eu admirava sobremaneira aquela amizade. Ele estático na porta do comércio e ela ali, fiel companheira.
                                   Nos eventos da cidade, lá estava ele e a Bastiana. Não perdia uma festa junina, natalina, casamento, aniversário, batizado e até velório. Se não se fizesse presente, a festa não era festa e o velório, não era velório. Misturava-se aos convivas, onde dançava e comia até ficar empanzinado. Até o velório era menos fúnebre, com ele ali. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Quando não aparecia causava preocupação a todos os presentes. Alguém, discretamente, deixava o local e saia à procura dele e, quando chegava, todos comemoravam, e a festa tomava ares de festa.
                                   Nada o tirava do sério. Ou melhor, só quando algum moleque pirracento, caçoava com apelidos, que não me recordo mais. Aí eram pernas para quem te quero. Ele apanhava o que estava por perto, desde um pedaço de madeira, ferro ou tijolo e saia em desabalada carreira contra seu ofensor. Atirava o objeto a esmo, sem se preocupar se acertaria o seu alvo ou não. Quantas vezes vi, o objeto voar em direção a vitrine do bar do japa ou na testa do turco, dono da casa de armarinho. Era um deus nos acuda, era um salve-se quem puder.
                                   Naquele tempo, não havia o tal do bullyng, coisa de estrangeiro. Estou certo de que as pessoas o provocavam, mais para se divertir com as reações imprevistas, do que propriamente, por se tratar de uma pessoa com necessidades especiais. Posso afirmar que as crianças e as pessoas da minha época, não tinham maldade e, por isso, não menosprezam aquele menino tão carismático.
                                   Tinha por diversão, dentre elas, acompanhar o abate de gado, junto ao matadouro improvisado da cidade. Ali ficava horas, embriagado com a cena do abate e com o esquartejamento do animal. Com ele, outras crianças participavam do evento, enquanto os açougueiros separavam a carne nobre, das vísceras e de outras partes sem consumo. Certa feita, segundo um amigo de infância, alguém sem querer, prendeu o dedo dele, na porteira do curral. Aos berros, com o dedo esfacelado e sangrando, ele saiu em desabalada carreira, em busca de socorro.
                                   Mas, no desenrolar dessas mal traçadas linhas, quero lembrar-me dele, com seu jeito simples e alegre. Um ser humano de espírito puro e rico. Um menino que, como ninguém, representou a vida descompromissada de um povo lindo e ordeiro. Lembro que ele andava sempre sozinho, pois nunca vi acompanhado de um amiguinho, parente ou tutor. Para falar a verdade, não me lembro dos parentes e nem da casa, onde ele morava. Lembro-me dele e só dele. Isso me ensinou que ele pertencia ao mundo, ou melhor, ao folclore da nossa cidade.
                                   Hoje, passados todos esses anos, fico a me perguntar: “Será que alguém parou para conversar com ele. Saber dos seus sonhos e dos seus desejos. Teria sido um amor platônico, que o levou à loucura, assim como eu. Como o seu pensamento encarava o mundo e as pessoas à sua volta?”. Vem-me à mente “O Alienista” – obra literária do acadêmico Machado de Assis.  Tomo conhecimento de que o protagonista desta assertiva anda muito adoentado e sem o gozo da locomoção. Ele que tanto correu para lá e para cá, dando-nos alegria com seu jeito, desprovido de maldade, agora se escondeu num canto qualquer da minha terra natal.
                                   Cido Bobo? Bobo somos nós, por não termos vivenciados todas as doces loucuras da vida pacata, que a nossa terra natal, nos proporcionou. Ele foi um sábio e nós não sabíamos.

Peruíbe SP, 03 de novembro de 2018.