Ele
caminhava para lá e para cá, pelas ruas silenciosas da minha cidade natal. Por
não ter compromisso com a vida e com o mundo, percorria tranquilamente todos os
lugares e cruzava as esquinas do presente, sem os cuidados necessários. À época,
tinha a mesma idade que eu e, por isso, compartilhávamos das coisas inocentes
da infância. Ele, ao seu modo, levava uma vida bem mais simples do que eu e do
meu circulo de amigos. E foi aos poucos, que pude entender que era patrimônio
do lugarejo.
Não tinha sobrenome estrangeiro e
a família não gozava de posses, razão pela qual não era cortejado pelos demais
moradores, inclusive, os mais abastados. Enquanto alguns meninos e meninas
desfilavam suas ostentações, representadas por roupas, casas suntuosas e carrões
do ano, ele exibia apenas a sua simplicidade no andar e no falar. Lembro-me que
ele ficava longas horas, parado defronte um bar, armazém ou loja de armarinho. Permanecia estático, até ser escorraçado por
um comerciante incomodado, com não sei o quê.
Tinha por companheira, Bastiana –
uma cachorrinha magricela e moribunda. Por coincidência, uma vira-lata e sem pedigree,
que ora ele a arrastava presa a um cordão, ora levava debaixo do braço. Era a
confidente, com quem desaguava a falar dos seus infortúnios e dos seus sonhos
incompreendidos. Na maioria das vezes, balbuciava palavras inteligíveis, pois
babava constantemente. Mas ela, a Bastiana, o compreendia através dos pequenos gestos.
Em que pesava as más línguas, sobre o relacionamento dos dois, eu admirava
sobremaneira aquela amizade. Ele estático na porta do comércio e ela ali, fiel
companheira.
Nos eventos da cidade, lá estava
ele e a Bastiana. Não perdia uma festa junina, natalina, casamento,
aniversário, batizado e até velório. Se não se fizesse presente, a festa não
era festa e o velório, não era velório. Misturava-se aos convivas, onde dançava
e comia até ficar empanzinado. Até o velório era menos fúnebre, com ele ali. Era
o primeiro a chegar e o último a sair. Quando não aparecia causava preocupação
a todos os presentes. Alguém, discretamente, deixava o local e saia à procura
dele e, quando chegava, todos comemoravam, e a festa tomava ares de festa.
Nada o tirava do sério. Ou melhor,
só quando algum moleque pirracento, caçoava com apelidos, que não me recordo
mais. Aí eram pernas para quem te quero. Ele apanhava o que estava por perto,
desde um pedaço de madeira, ferro ou tijolo e saia em desabalada carreira
contra seu ofensor. Atirava o objeto a esmo, sem se preocupar se acertaria o
seu alvo ou não. Quantas vezes vi, o objeto voar em direção a vitrine do bar do
japa ou na testa do turco, dono da casa de armarinho. Era um deus nos acuda,
era um salve-se quem puder.
Naquele tempo, não havia o tal do
bullyng, coisa de estrangeiro. Estou certo de que as pessoas o provocavam, mais
para se divertir com as reações imprevistas, do que propriamente, por se tratar
de uma pessoa com necessidades especiais. Posso afirmar que as crianças e as
pessoas da minha época, não tinham maldade e, por isso, não menosprezam aquele
menino tão carismático.
Tinha por diversão, dentre elas,
acompanhar o abate de gado, junto ao matadouro improvisado da cidade. Ali
ficava horas, embriagado com a cena do abate e com o esquartejamento do animal.
Com ele, outras crianças participavam do evento, enquanto os açougueiros
separavam a carne nobre, das vísceras e de outras partes sem consumo. Certa
feita, segundo um amigo de infância, alguém sem querer, prendeu o dedo dele, na
porteira do curral. Aos berros, com o dedo esfacelado e sangrando, ele saiu em
desabalada carreira, em busca de socorro.
Mas, no desenrolar dessas mal
traçadas linhas, quero lembrar-me dele, com seu jeito simples e alegre. Um ser
humano de espírito puro e rico. Um menino que, como ninguém, representou a vida
descompromissada de um povo lindo e ordeiro. Lembro que ele andava sempre sozinho,
pois nunca vi acompanhado de um amiguinho, parente ou tutor. Para falar a verdade,
não me lembro dos parentes e nem da casa, onde ele morava. Lembro-me dele e só
dele. Isso me ensinou que ele pertencia ao mundo, ou melhor, ao folclore da
nossa cidade.
Hoje, passados todos esses anos,
fico a me perguntar: “Será que alguém parou para conversar com ele.
Saber dos seus sonhos e dos seus desejos. Teria sido um amor platônico, que o
levou à loucura, assim como eu. Como o seu pensamento encarava o mundo e as
pessoas à sua volta?”. Vem-me à mente “O Alienista” – obra literária do
acadêmico Machado de Assis. Tomo
conhecimento de que o protagonista desta assertiva anda muito adoentado e sem o
gozo da locomoção. Ele que tanto correu para lá e para cá, dando-nos alegria
com seu jeito, desprovido de maldade, agora se escondeu num canto qualquer da
minha terra natal.
Cido Bobo? Bobo somos nós, por não
termos vivenciados todas as doces loucuras da vida pacata, que a nossa terra
natal, nos proporcionou. Ele foi um sábio e nós não sabíamos.
Peruíbe SP, 03
de novembro de 2018.
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