sábado, 3 de novembro de 2018

AVENTURAS DO CIDO BOBO

                                            Ele caminhava para lá e para cá, pelas ruas silenciosas da minha cidade natal. Por não ter compromisso com a vida e com o mundo, percorria tranquilamente todos os lugares e cruzava as esquinas do presente, sem os cuidados necessários. À época, tinha a mesma idade que eu e, por isso, compartilhávamos das coisas inocentes da infância. Ele, ao seu modo, levava uma vida bem mais simples do que eu e do meu circulo de amigos. E foi aos poucos, que pude entender que era patrimônio do lugarejo.
                                   Não tinha sobrenome estrangeiro e a família não gozava de posses, razão pela qual não era cortejado pelos demais moradores, inclusive, os mais abastados. Enquanto alguns meninos e meninas desfilavam suas ostentações, representadas por roupas, casas suntuosas e carrões do ano, ele exibia apenas a sua simplicidade no andar e no falar. Lembro-me que ele ficava longas horas, parado defronte um bar, armazém ou loja de armarinho.  Permanecia estático, até ser escorraçado por um comerciante incomodado, com não sei o quê.
                                   Tinha por companheira, Bastiana – uma cachorrinha magricela e moribunda. Por coincidência, uma vira-lata e sem pedigree, que ora ele a arrastava presa a um cordão, ora levava debaixo do braço. Era a confidente, com quem desaguava a falar dos seus infortúnios e dos seus sonhos incompreendidos. Na maioria das vezes, balbuciava palavras inteligíveis, pois babava constantemente. Mas ela, a Bastiana, o compreendia através dos pequenos gestos. Em que pesava as más línguas, sobre o relacionamento dos dois, eu admirava sobremaneira aquela amizade. Ele estático na porta do comércio e ela ali, fiel companheira.
                                   Nos eventos da cidade, lá estava ele e a Bastiana. Não perdia uma festa junina, natalina, casamento, aniversário, batizado e até velório. Se não se fizesse presente, a festa não era festa e o velório, não era velório. Misturava-se aos convivas, onde dançava e comia até ficar empanzinado. Até o velório era menos fúnebre, com ele ali. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Quando não aparecia causava preocupação a todos os presentes. Alguém, discretamente, deixava o local e saia à procura dele e, quando chegava, todos comemoravam, e a festa tomava ares de festa.
                                   Nada o tirava do sério. Ou melhor, só quando algum moleque pirracento, caçoava com apelidos, que não me recordo mais. Aí eram pernas para quem te quero. Ele apanhava o que estava por perto, desde um pedaço de madeira, ferro ou tijolo e saia em desabalada carreira contra seu ofensor. Atirava o objeto a esmo, sem se preocupar se acertaria o seu alvo ou não. Quantas vezes vi, o objeto voar em direção a vitrine do bar do japa ou na testa do turco, dono da casa de armarinho. Era um deus nos acuda, era um salve-se quem puder.
                                   Naquele tempo, não havia o tal do bullyng, coisa de estrangeiro. Estou certo de que as pessoas o provocavam, mais para se divertir com as reações imprevistas, do que propriamente, por se tratar de uma pessoa com necessidades especiais. Posso afirmar que as crianças e as pessoas da minha época, não tinham maldade e, por isso, não menosprezam aquele menino tão carismático.
                                   Tinha por diversão, dentre elas, acompanhar o abate de gado, junto ao matadouro improvisado da cidade. Ali ficava horas, embriagado com a cena do abate e com o esquartejamento do animal. Com ele, outras crianças participavam do evento, enquanto os açougueiros separavam a carne nobre, das vísceras e de outras partes sem consumo. Certa feita, segundo um amigo de infância, alguém sem querer, prendeu o dedo dele, na porteira do curral. Aos berros, com o dedo esfacelado e sangrando, ele saiu em desabalada carreira, em busca de socorro.
                                   Mas, no desenrolar dessas mal traçadas linhas, quero lembrar-me dele, com seu jeito simples e alegre. Um ser humano de espírito puro e rico. Um menino que, como ninguém, representou a vida descompromissada de um povo lindo e ordeiro. Lembro que ele andava sempre sozinho, pois nunca vi acompanhado de um amiguinho, parente ou tutor. Para falar a verdade, não me lembro dos parentes e nem da casa, onde ele morava. Lembro-me dele e só dele. Isso me ensinou que ele pertencia ao mundo, ou melhor, ao folclore da nossa cidade.
                                   Hoje, passados todos esses anos, fico a me perguntar: “Será que alguém parou para conversar com ele. Saber dos seus sonhos e dos seus desejos. Teria sido um amor platônico, que o levou à loucura, assim como eu. Como o seu pensamento encarava o mundo e as pessoas à sua volta?”. Vem-me à mente “O Alienista” – obra literária do acadêmico Machado de Assis.  Tomo conhecimento de que o protagonista desta assertiva anda muito adoentado e sem o gozo da locomoção. Ele que tanto correu para lá e para cá, dando-nos alegria com seu jeito, desprovido de maldade, agora se escondeu num canto qualquer da minha terra natal.
                                   Cido Bobo? Bobo somos nós, por não termos vivenciados todas as doces loucuras da vida pacata, que a nossa terra natal, nos proporcionou. Ele foi um sábio e nós não sabíamos.

Peruíbe SP, 03 de novembro de 2018.

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