domingo, 14 de outubro de 2018

O REBU NO ALTAR

Adão de Souza Ribeiro

                                    “A fé move montanhas!”. Eis ai a máxima de todo segmento religioso. E assim, sob esse princípio sacrossanto, fui esculpido ao longo da vida. Nada abalava o espírito ou a alma, pois, tinha os pés firmes na esperança de um tempo e de um mundo melhor. A fé, nada mais é do que a esperança de que algo irá mudar o rumo de nossas vidas, para bem. Por essa razão, tenho por mim, que a fé é pessoal e intransferível. Ninguém sabe o tamanho da sua fé, só você.
                                    Como num toque de mágica, reporto-me às doces lembranças da infância, onde meus pais e as pessoas de suas idades discorriam longas orações. Usavam línguas inteligíveis, dentre elas, o latim. Para não se perderem, na quantidade do que deveriam repetir (rezas), usava um cordão com bolinhas, chamado de terço. Eu nada entendia ou não queria entender. Apenas sabia que era cansativo e enfadonho, professar a fé.
                                    Quando ganhei um pouco de idade, recebi por parte de meus pais, a sagrada missão de frequentar aulas de catecismo. Duas vezes por semana, lá estava eu e os coleguinhas, com um caderno e um lápis, rumo a uma das salas da igreja matriz. Recebia ensinamentos bíblicos e, como recompensa pela dedicação, ganhava um santinho, com orações no verso. Já ali, percebi que meu espírito inquieto, não me permitiria ir tão longe.
                                    Aos domingos, logo pela manhã, o badalar do sino, pendurado na torre de madeira, ao lado da igreja, anunciava aos fiéis, que logo iniciaria a missa, sob a batuta do padre septuagenário. Aos poucos, as casadas, as moçoilas, os barões e as crianças birrentas, chegavam à missa dominical. As mulheres com seus vestidos recatados e joias adornando o corpo, assim como, os homens com roupas impecavelmente passadas, faziam da praça matriz, uma passarela social de ostentação burguesa.
                                    O interior da igreja respirava um ar de divindade. Nas paredes laterais, quadros a óleo, representavam a via crucis do Salvador, rumo ao calvário. Em cada canto, imagens esculpidas em gesso vigiavam o comportamento dos fiéis mais exaltados. Os vitrais coloridos, com desenhos religiosos, refletiam luzes de alegria, amenizando aquele clima taciturno. No altar, confeccionado em mármore, descansavam castiçais dourados, com velas chamejantes; uma portinhola, onde era depositado o cálice sagrado e, abaixo, via-se o Cristo sepultado. A abóbada no alto e ao centro, dava um ar de superioridade ao local.
                                    Achava bonito e, ao mesmo tempo engraçado, o ritual. O vai e vem do vigário, dos coroinhas e das beatas, durante a homilia, prendia-me a atenção. As crianças vestidas de anjos, com suas túnicas, asas e auréolas brancas, transitando pelo altar, davam o ar da graça. Parecia que tudo era milimetricamente treinado. O silencio dos presentes, faziam com que a voz do vigário soasse em eco.
                                    Ele, o vigário, apascentava suas ovelhas, com carinho e rigor. Cuidava delas, com seu cajado austero e, por isso, a cidade rezava a sua cartilha. Nunca o vi despojado de sua batina preta, nem mesmo nos dias de sol a pino. Quando na rua, alguém passava por ele, inclinava a cabeça, em sinal de respeito. Era uma figura carismática e não dispensava um almoço, na casa dos fiéis.    
                                    As procissões, em homenagem à padroeira do lugarejo, eram revestidas de glamour e santidade. As manifestações religiosas tinham um brilho impar e o carimbo do vigário de quem tanto falo. As quermesses juninas, no entorno da matriz, serviam quitutes tradicionais. Eram embelezadas com danças e cantorias caipiras. Violeiros rasgavam acordes inesquecíveis em suas violas choronas. As crianças traquinas corriam para lá e para cá, enquanto os jovens casais flertavam e ensaiavam um beijo escondido dos pais.
                                    Mas um dia... um belo dia, repentinamente, o vigário evaporou-se e surgiu um padre novo. Diria novo, inclusive, na idade. A Diocese não deu explicações, nem mesmo sobre o paradeiro do nosso vigário septuagenário. Especulações diversas corriam de boca em boca. Teria ele morrido, aposentado ou fez algo que desagradou a Sua Santidade Papa? Não soube de nenhuma heresia cometida por ele, mesmo que às escondidas. Certo que a cidade provinciana estava de padre novo e de futuro incerto. A igreja ficou à deriva.
                                    A cidade nem tinha se refeito do trauma, quando a “Rádio Peão” (aquela que não deixa o povo na mão), noticiou que o padre novo teria arrancado todas as imagens da igreja, demolido o altar do Cristo sepultado, abolido a missa em latim, tirado os quadros da via crucis, demitido as beatas do rito religioso, calado a voz do sino, guardado no solo a cruz do calvário e repensado sobre as procissões centenárias. Um choque, ou melhor, uma descarga elétrica causou comoção e revoltou toda a população do vilarejo.
                                    Numa noite, lideradas pelas beatas Maria do Rosário, Maria das Dores e Maria do Perpétuo Socorro, a população se reuniu na praça matriz e, aos gritos de “Fora Judas”, começou um quebra-quebra incontrolável. Viraram e atearam fogo, no carro do padre. Danificaram todas as luzes e flores do jardim. O coreto foi abaixo. O povo com a cruz e pedaços de pau nas mãos, invadiu a igreja e coloram o padre para correr, isto é, expulsaram da cidade. Sem o altar, não teve onde esconder. Ao depararem com a Casa de Deus sem seus adereços, entraram em transe. Não era igreja, era apenas um salão vazio e abandonado. Uma das fiéis fervorosa, disse: “Isso é coisa do demônio”. Minha terra natal entrou em luto e a fé pediu extrema unção.     
                                    Naquela noite de tormenta, acionaram os soldados romanos, para conterem a fúria dos fiéis revoltosos. Várias Radio Patrulhas, foram deslocadas de outras cidades, para reforçarem a segurança daquele povo sem freio. O sacristão pediu férias, os coroinhas escafederam-se e as beatas, passavam dia e noite em vigília e em jejuns desenfreado. Até greve de sexo, rolou naqueles dias turbulentos. Os coronéis do mato, do alto de suas patentes, prometiam vingar a ousadia do padre sem juízo e sem miolo. As imagens foram distribuídas entre os fiéis, onde encontram amor e guarida. 
                                    Quebrou-se o ritmo de uma cidade provinciana. Por que mexer no que estava quieto? O povo era feliz naquela mesmice de sempre. Temiam qualquer mudança e excomungavam o tal progresso. Todos se conheciam e se respeitavam. Nada que abalasse a moral e os bons costumes, era aceito no lugarejo. A população transbordava de paz interior e de fé inabalável no Criador. Eram solidários, na alegria e na tristeza. Bastava observar as festas de casamento, batizado ou velórios, onde a população se fazia presente.
                                    Não me sai da memória, o dia em que os meus conterrâneos se revoltaram e transformaram a praça matriz, numa praça de guerra. Não sobrou pedra sobre pedra. Foi o maior rebu no altar. O resto, conto depois.

Peruíbe SP, 14 de outubro de 2018.

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