terça-feira, 31 de março de 2020

A SERRA DO ROLA-MOÇA


Mário de Andrade


A serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...


Eles eram do outro lado,
Viera na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.


Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar
Disseram adeus para todos
E se puseram de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.


Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. E como eles riam!
Riam até sem razão.


A serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.


As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.


Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo.
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulavam levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.


Ali. Fortuna inviolável!
O casaco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.


E a serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.


Outubro de 1954

RECADO AO SENHOR DO 903


Rubem Braga

                        Vizinho

                        Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria a seu lado a Lei e a própria Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome e nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis: nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometeo sinceramente adotar, depois as 22:00 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: meu número) será convidado a se retirar às 21:45 horas, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22:00 horas às 07:00 horas pois às 08:15 horas deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomodar outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.

                        - Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e com outro mundo, em que um homem bate à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entre, vizinho, e coma do meu pão e beba do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.

                        E o homem trouxesse a sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e as amigas do vizinho, entoando canções para engrandecer e agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os homens, e o amor e a paz.


09 de outubro de 1954.

A SENTENÇA DE CRISTO

No ano dezenove de Tibério César, Imperador Romano de todo o mundo, Monarca invencível na Olimpíada cento e vinte e um, na Elíada vinte e quatro, da criação do mundo, segundo o número e computo dos Hebreus, quatro vezes mil cento e oitenta e sete, do progênio do Romano Império, no setenta e três, e na libertação do cativeiro de Babilônia, no ano mil duzentos e sete, sendo governador da Judéia QUINTO SÉRGIO, sob o regimento e governador da cidade de Jerusalém, Presidente Gratíssimo PÔNCIO PILATOS; regente na Baixa Galileia, HERODES ANTIPAS; pontífice do sumo sacerdote, CAIFÁS; magnos do Templo, ALIS ALMEL, ROBAS ACASEL, FRANCHINO CEUTAURO; cônsules romanos da cidade de Jerusalém, QUINTO CORNÉLIO SUBLIME e SIXTO RUSTO, no mês de março e dia XXV do ano presente – Eu, PÔNCIO PILATOS, aqui Presidente do Império Romano, dentro do Palácio e arqui-residência, julgo, condeno e sentencio à morte, Jesus, chamado pela plebe – CRISTO NAZARENO – e galileu de nação, homem sedecioso, contra a Lei Mosaica – contrário ao grande Imperador TIBÉRIO CESAR. Determino e ordeno por esta, que se lhe dê morte na cruz, sendo pregado com cravos como todos os réus, porque congregando e ajustando homens, ricos e pobres, não tendo cessado de promover tumultos por toda a Judéia, dizendo-se filho de DEUS e REI de ISRAEL, ameaçando com a ruína de Jerusalém e do sacro Templo, negando o tributo à César, tendo ainda o atrevimento de entrar com ramos e em triunfo, com grande parte da plebe, dentro da cidade de Jerusalém. Que seja ligado e açoitado, e que seja vestido de púrpura e coroado de alguns espinhos, com a própria cruz aos ombros para que sirva de exemplo a todos os malfeitores, e que, juntamente com ele, sejam conduzidos dois ladrões homicidas; saindo logo pela porta sagrada, hoje ANTONIANA, e que se conduza JESUS ao monte público da justiça, chamado CALVÁRIO, onde, crucificado e morto ficará o seu corpo na cruz, como espetáculo para todos os malfeitores, e que sobre a cruz se ponha, em diversas línguas, este título: JESUS NAZARENUS, REX JUDEORUM. Mando também, que nenhuma pessoa de qualquer estado ou condição se atreva, temerariamente, impedir a Justiça por mim mandada, administrada e executada com todo o rigor, segundo os Decretos e Leis Romanas, sob as penas de rebelião contra o Imperador Romano. Testemunhas de nossa sentença: Pelas doze tribos de Israel: RABAIM DANIEL, RABAIM JOAQUIM BANICAR, BANBASU, LARÊ PETUCULANI. Pelos fariseus: BULLIENIEL, SIMEÃO, RANOL, BABBINE, MANDOANI, BACURFOSSI. Pelos hebreus: MATUMBERTO. Pelo Império Romano e pelo Presidente de Roma: LÚCIO SEXTILO e AMACIO CHILICIO.

P.S.: Cópia autêntica da Peça do Processo de Cristo, existente no museu da Espanha.

segunda-feira, 30 de março de 2020

A VÓZ DOS PÁSSAROS


Adão de Souza Ribeiro


Eu saí para namorar, escondido de papai,
Lá no rio Dourado, isso bem longe daqui.
Mamãe muito cismada, disse: “Não vai”.
No namoro, o pássaro gritou: ”Bem te vi”.


Trocamo-nos caricias num amor sem fim
Loucuras de desejo e com muito esmero
De repente ouvi a voz no meio do capim
Vendo a cena a ave disse: “Quero-quero”.


O amor é algo belo e, por isso, tão divino.
Não há barreira, nem tempo e nem espaço.
Linda canção ao som do saudoso violino.
Perdi o compasso, disse a ave: “Tô fraco”.


Se conselho da minha velha fosse ouvido,
Sabedoria que ela trouxe do tempo do avô
Não teria saído para o namoro escondido,
Nem da ave ouvido gracejo: “Fogo pagô”.


Peruíbe, 30 de março de 2020.


domingo, 29 de março de 2020

A SAIA DO CAFÉ

Adão de Souza Ribeiro


Se os meus pais ficavam na roça
Trabalhavam duro, com muita fé.
Eu brincava feliz com a cabrocha
Ali debaixo daquela saia de café.


Sol a pino, queimando em brasa.
E o boi girando firme a moenda.
A menina quieta arrastando asa,
Queria algo, se falar não ofenda.


Toda suada e com muito chamego
Provocava-me e para fazer pirraça.
Dengosa dizia: “Vem cá meu nego”
Bebia água na cuia e achava graça.


Mão atrevida debaixo da sua saia
Ensaiava um gesto mais atrevido.
Ela esperta antes que a casa caia.
“Cuidado com cobra, corro perigo”.


Aquela namorada, filha da vizinha.
Era fã de mim e daquele meu jeito.
Não via a hora de ficar ali sozinha
Sob a saia do café e naquele leito.


Calados e longe de tanta gente,
O beijo roubado, trago comigo.
Cena gravada na minha mente,
Mão atrevida altura do umbigo.


Se meus pais esquecessem ali
Não voltassem assim tão cedo
 Eu não mais estaria por aqui.
Nem a menina deste segredo.


Peruíbe SP, 29 de março de 2020.

sábado, 28 de março de 2020

TEMPLO SACROSSANTO


Adão de Souza Ribeiro


Quando acordar de madrugada
E tocar suavemente o teu corpo.
Chega mais perto não diga nada,
Sinta meu cheiro e o meu rosto.


Só não respira, fica em silêncio.
Por nós, deixa só falar o desejo.
Peço não contar nada ao vento
Só há tempo de abraço e beijo.


Não tenha medo, diz o que quer.
Busque a felicidade sem receio,
És minha amada, fêmea, mulher
Acaricio o ventre e toco teu seio.


Quando no instante de loucura,
Perder noção do tempo e hora.
Cobrirei teu corpo com as juras
Bem antes do romper da aurora.


Teu prazer a ninguém interessa
Descansa o teu cansaço em paz.
Eu estou aqui, não tenha pressa.
Lá fora anoitece, amor, tanto faz.


No templo sacrossanto do leito,
Tudo pode e nada será pecado.
Admiro tua nudez e o teu jeito
Só me perco quando eu te acho.


Peruíbe SP, 28 de março de 2020.

VELHO CONSELHEIRO


Adão de Souza Ribeiro

E se o amor fala calmo ao ouvido,
Ouço em silêncio e jamais retruco.
Há tempo sabe de tudo e é vivido,
É um sábio e longe de ser maluco.


O coração será um árido deserto,
Um mundo que ele bem conhece
Só quem apaixonou sabe ao certo
Que nada cura, nem longa prece.


Com amor, amigo, não se brinca.
Sabido que dele não se afugenta,
Na inocência bem antes dos trinta
E experiente, depois dos quarenta.


Ele é um vírus, silencioso e tão letal,
E ao atacar a fragilidade do coração.
Despedaça o corpo e tu passas mal,
Vá a igreja e peça a extrema-unção.


Se eu posso te dar bom conselho,
Não vá se apaixonar por ninguém
Olha com calma para teu espelho
O teu coração quer passar do cem.


Peruíbe SP, 28 de março de 2020.

sexta-feira, 27 de março de 2020

ENTRE FLORES E ESPINHOS


Adão de Souza Ribeiro


Depois dos primeiros beijos,
Meio escondido e sem pressa.
Vivo ardendo em mil desejos,
Louco da vida, nada me resta.


Menina dengosa e jeito felina,
Amava meu corpo, sem pudor.
Assim foi na vida a minha sina
Viver entre o espinho e a flor.


Atrás do muro daquela escola,
Longe da vista da nossa mestra
Dormia o tempo, parava a hora
Tudo era prazer, sonho e festa.


Se assustava, eu dizia não é nada
Ela retribuía todo o meu carinho.
Amor ensurdecia e o sino tocava,
Sei que nada tocava nosso ninho.


Direi com calma e sem o receio,
Tempo feliz eu não terei jamais.
Como aquele, durante o recreio.
Hoje longos os anos e tristes ais.


Peruíbe SP, 27 de março de 2020.

quinta-feira, 26 de março de 2020

BARQUINHO DO AMOR


Adão de Souza Ribeiro


Ah, Como dói no peito,
Saber que te amo tanto!
Forte, assim, desse jeito.
É que sou demais tonto.


Queria amar pouquinho.
Só um tanto, o suficiente.
Navegar feito barquinho,
Num sonho para sempre.


O amor não tem medida,
E nem um pingo de juízo.
Corre se te sopra a vida,
Fuja do tempo perdido.


O amanhã é o timoneiro,
A velejar no manso barco.
Nele levo o verso inteiro.
Logo te busco, não tardo.


 Do sentimento não caçoa
Pois toma o tento menina.
O desejo é a velha canoa,
Seguindo sua própria sina.      


Peruíbe SP, 26 de março de 2020.

quarta-feira, 25 de março de 2020

LAVAR AS MÃOS

Adão de Souza Ribeiro


                        Já há muito tempo, que ando afastado, ou melhor, bem distante do “Reino Caiçara”. Vários fatores levaram-me a este distanciamento. Dentre eles, estão o acúmulo de trabalho e, também, a fuga desta política enojada. Não é de hoje, que vejo que os mandatários, depois de eleitos e empossados em seus cargos, nada fazem em prol da sociedade. Os donos do poder fecham-se em seus gabinetes suntuosos, onde passam a desenhar o país dos seus sonhos e longe da realidade. Parece que estão fora da caixinha e que as mazelas do mundo não lhes pertencem.
                        Enquanto isso, do outro lado daquele mundo de quimeras, onde eles transitam livremente, o povo clama por piedade. Os gritos ensurdecidos, daqueles que lhe outorgaram o poder, não ultrapassam as paredes blindadas do descaso e da inércia. De vez em quando, para acalmar o desespero do povo, eles arremessam alguns punhados de farelo de suas luxúrias, pela janela. E o povo, massa de manobra, agradece de joelhos, a falsa benesse recebida. Chegam a dizer que preferem o cheiro de animais, ao cheiro do povo.
                        Para manterem os prazeres, que o poder propicia, criam tragédias e psicoses sociais e delas se regozijam. Eles são insensíveis e imunes à dor alheia e, por isso, agem como se nada houvesse acontecido. Enquanto o povo morre à mingua, os governantes participam de banquetes regados ao alimento da soberba e a bebida da hipocrisia. Ao redor da mesa, estão os asseclas, os quais, vindos do povo, esquecem que um dia também foi povo.  Deus apiede-se daquelas almas sofredoras, porque, um dia, irão queimar no fogo do inferno.
                        Outro dia, por distração, me vi caminhando pelas vielas, ladeiras, becos e logradouros do “Reino Caiçara”. Estava cansado da clausura imposta por uma doença hereditária e obedecendo as recomendações médicas, fui caminhar um pouco. Queria apreciar a natureza e ouvir a voz humana. A solidão mata e não só a doença bacteriana ou virulenta. A masmorra onde estava definhava-me aos poucos. Como há muito tempo não saia de lá, estranhei os lugares desertos por onde andei.
                        Depois de longos trechos percorridos, desemboquei-me numa grande rede de fast-food. Antes, porém, durante a caminhada descompromissada com o mundo e na contemplação da natureza, percebi que os transeuntes usavam luvas e máscaras. Por um instante, pensei que não estava na terra e que havia sido abduzido para outro planeta, numa galáxia distante. Por ser curioso, fui perguntar a um andante distraído, o qual me disse que o mundo havia sido acometido de uma doença desconhecida e impiedosa, a qual estava dizimando a população.
                        Naquela parada obrigatória, em virtude do cansaço e da fome que atormentava o meu estômago, tive a desdita de observar que os funcionários não usavam máscara e nem luvas, que deveriam proteger a si e os clientes. Questionei à direção, mas recebi justificativas deslavadas e não convincentes. Por coincidência ou ironia do destino, defronte o comércio estava um representante do Parlamento (Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns). Cobrei dele providências, uma vez que é representante legal do povo (contribuinte), que paga religiosamente os impostos, os quais são depositados nos cofres do reino.
                        De supetão e sem pestanejar, disse-me que não era sua responsabilidade e, sim, do Rei Fabricio e do Ministro das Doenças Infectocontagiosas, tomar as providências legais. Segundo a Constituição Monárquica, cabe ao Parlamento (Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns), legislar e fiscalizar os atos do Império, isto é, do Monarca e de seus Ministros. Então, estribado no que reza a Carta Magna, o deputado tinha por dever de ofício, cobrar o Rei ou o Ministro, por aquele descumprimento da lei, por parte de tal comércio. O descaso da direção da rede de fast-food poderia ensejar na contaminação de todo o reino.
                        Diante do infortúnio do “não me diz respeito”, por parte daquele parlamentar, resta uma pergunta que não quer calar: “Para que serve o Parlamento e seus eleitos?” A meu ver, depois daquela saída pela tangente, do deputado irresponsável, o Parlamento serve apenas para outorgar titulo de cidadão honorário as pessoas de sua amizade ou nome de rua e, ainda, descerrar placas de eventos ou datas comemorativas. Ressalte-se dizer, ainda, para fazer conchavos e negociatas escusas, na cala da noite. O descredito de todos os súditos da Monarquia tem lá suas razões, que a própria razão desconhece.
                        A doença que acometia a população e que poderia levar a dizimação de todos os habitantes do planeta tinha como regra básica de higiene, lavar as mãos. Sem que eu percebesse, o Parlamentar estava cumprindo a determinação das autoridades de saúde, isto é, estava lavando as mãos. Lavando não para evitar a sua contaminação ou do povo, mas da responsabilidade de cobrar o cumprimento da lei, quer por parte das autoridades ou da empresa privada.
                        Repentinamente veio à mente, a atitude de Pôncio Pilatos durante o julgamento de Jesus Cristo. Naquele episódio, Pôncio Pilatos, governador romano da Judéia, não queria ser culpado pela condenação de um inocente. Então, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: “Estou inocente do sangue deste justo, considerai-vos isso” (Mateus 27:24). Pilatos assim agiu por covardia em não libertar um inocente e para garantir o seu cargo de Governador e, também, não soar como inimigo do Imperador Cesar, cujo nome era Gaio Júlio Cesar Otaviano.
                        Finalizando, creio que o Parlamentar lavou suas mãos, em ato covarde por não defender o interesse dos funcionários da empresa privada e do povo como um todo. Assim agiu para não soar como inimigo da rede de fast-food. Por que assim, não sei. Só o tempo dirá, pois ele é o senhor da razão. Deus salve o Rei e o Império! Eu não deveria ter saído do silêncio da minha velha e querida masmorra. Se tivesse permanecido lá, meu espirito inquieto não teria se deparado com tamanha injustiça. Indignar-se, sempre; calar-se, jamais.
                        Assim sendo, fiz a minha parte, indignando-me pelo não cumprimento da lei e da covardia de quem a legisla. Literalmente: “Lavo as minhas mãos!”.

Peruíbe SP, 25 de março de 2020.
 

segunda-feira, 23 de março de 2020

O VISIONÁRIO


Adão de Souza Ribeiro

                        Hoje é dia 31 de dezembro de 3019, da Era Cristã. É o que consta do calendário, pendurado na parede da casa, ao lado de um velho relógio cansado de girar no sentido horário. Através dele, o calendário, é que percebo como o tempo passa. Se não existisse essa invenção milenar, o dia era apenas o dia, sem a preocupação de somar a idade das coisas e das pessoas. Inventaram algo desnecessário, apenas para percebermos que envelhecemos. Os caboclos e os aborígenes olhavam para o céu ou para os sinais da natureza e obtinham as respostas necessárias para saciarem os seus anseios.
                        Deus criou o Universo e nele fez habitar seres animados e inanimados. Era de bom grado para Ele, que existisse o céu, a terra e o mar; o sol, a lua e as estrelas; o rio e a floresta; os animais, os répteis e as aves. Antes, porém, deixou tudo numa incubadora. Do próprio pó da terra, num sopro Divinal, criou o homem e a mulher e deu a eles, o poder de dominar tudo que fora por Ele concebido. A partir de então, deu vida a sua Criação e para ajudar o homem e a mulher, fez chover sobre a terra, a fim de que tudo florescesse. Creio que, a partir de então, o Criador não descansou mais. (Genesis 1: 1-31 e 2: 1-25).
                         Um belo dia, o homem feito à Sua imagem e semelhança, começou desobedecê-lo achando que era o bam bam bam do pedaço. Tem até a história da “Torre de Babel”, já contada e recontada. Nota-se que em momento algum, durante a criação, o Pai Celestial delimitou em dia ou hora, o tempo das coisas. Certo é que, sem pressa e com muito esmero, foi criando tudo no seu tempo. No último dia, vendo que estava tudo pronto e do jeito que imaginava, foi descansar. Penso que antes de ir para o merecido descanso, Ele debruçou na janela da constelação celestial e ficou contemplando a sua Sacrossanta obra.
                        Ao admirar a construção, observo que em momento algum, o Grande Arquiteto do Universo ficou preso a cronometragem do tempo necessário para iniciar ou finalizar o que havia planejado. Não lançou mão de gráficos, planilhas, AutoCad ou qualquer ferramenta de engenharia, a fim de criar a maravilha que hoje tanto desfrutamos e, ao mesmo tempo, destruímos. Depois vêm uns cientistas e ateus, afirmarem que o mundo e a terra surgiram da desintegração de meteoros, vindos de galáxias distantes. Não me venham com essas histórias deslavadas para ninar crianças manhosas e criadas com nutella.
                        O homem, cuja desobediência origina desde os primórdios tempos do “Jardim do Éden”, vem criando coisas desnecessárias com o único objetivo de confundir o mundo, as pessoas e o tempo. A meu ver, a pior invenção foi o relógio. Para mim, trata-se da maior algema que poderiam ter criado. Mas, também, não posso me furtar de declinar sobre o calendário. Conforme disse no início, foi inventado apenas para percebermos que envelhecemos.
                        Em rápidas pinceladas, tomei conhecimento de que existiram vários calendários desde a criação do universo. Desde os primórdios da agricultura e do convívio social, o ser humano sente a necessidade de contar cronologicamente, os dias. Os calendários que tiveram mais aceitação e são usados até hoje combinam com a ciência e a religião, o que não é novidade cristã.  Portanto, temos os seguintes calendários: Maia (3114 a.c.), Gregoriano (1582 d.c.), Juliano (46 a.c), Chinês (2697 a 2597 a.c.), Judaico (1447 a.c.), Islâmico 1441 d.c.), Juche (1912 d.c.)e Etíope (46 d.c.),
                        Em minhas pesquisas, na busca do conhecimento, lancei mão da tecnologia e de formas remotas de pesquisa. Fui até a primeira biblioteca erguida pelo Rei Assurbanípal III, por volta do século 7 a.c, em Nínive, na Assíria, onde foram armazenadas milhares de tabuletas escritas com caracteres cuneiformes, a mais antiga forma de escrita que se conhece. Nessas andanças de pesquisador errante, descobri raridades e, dentre elas, uma que passo a narrar com riqueza de detalhes.
                        Não sei se o que pretendo aqui contar é história ou lenda. Cerca de mil anos atrás, isto é, em 31 de dezembro de 2019, uma epidemia reconhecida mundialmente pelos órgãos de saúde internacionais como pandemia, havia se alastrado pelo planeta. Especulações davam conta de que a doença respiratória, com resultados letais e que levaram a óbito milhares de pessoas ao redor do mundo, fora criada em laboratório. Assim ocorrera com o objetivo de diminuir a população terrestre e, acima de tudo, enfraquecer a economia mundial, com vistas a atender interesses econômicos das grandes potências. Outras linhas de pesquisas científicas informavam que os morcegos teriam sido os primeiros hospedeiros para, depois, infectarem os serem humanos.
                        Em que pese haverem, na época, pessoas que defendiam a “Teoria da Conspiração”, certo é que todos os habitantes do planeta abandonaram as ruas, becos e vielas de todas as cidades e refugiaram em suas casas. Veículos caríssimos ou sucatas, roupas de grife ou de pano de chita, almoços em banquetes ou numa marmita, título honorífico ou apelido, contas bancárias abarrotadas ou míseros tostões, beleza física exuberante ou ausência dela, de nada valeriam. Um vírus invisível reduziu todos os habitantes da terra a zero e os fez compreendê-los de que eram apenas seres mortais.
                        Enquanto por longos e longos anos, os homens ficaram reclusos em seus lares, temendo a morte, a natureza foi ressuscitando e se recompondo aos poucos. Os animais refugiados em seus habitats naturais voltaram a circular normalmente. Os rios, atrofiados em suas nascentes, corriam livres por entre vales e campinas. As plantas murchas e desanimadas, em razão da poluição, desabrochavam nos jardins, quintais e ruas desertas, dando um novo colorido ao que antes, era só desolação. Aos poucos, a terra voltava a sua origem, conforme fora imaginada, desenhada e traçada pelo Grande Arquiteto do Universo.
                        Se lá fora a terra se transformava para melhor, voltando aos rumos originais traçados pelo Criador, o mesmo ocorria no interior dos palácios e casebres. Lá os homens, mulheres e crianças, redescobriram o sentido das palavras amor, carinho, gratidão, benevolência, solidariedade, esperança, fé e outras tantas virtudes, esquecidas na gaveta do progresso, da tecnologia e da arrogância. Não tenho dúvidas de que, foi através do desespero e da dor, que compreenderam que não somos donos de nada e, muito menos do planeta. O Universo foi criado por Deus e a ele pertence. Se ainda habitamos o planeta, é por bondade dele, nada mais. Ele dá e Ele tira.
                        Uma doença, disseminada por um vírus invisível, criado ou não em laboratório, teve o dom de igualar todos os seres humanos e pensantes da terra. O medo da morte mostrou que todos são verdadeiros “borra-botas”. O vírus, que a olho nu, era conhecido apenas pelo nome, mostrou que era mais forte que os exércitos das grandes potências. Mais forte que as bombas e os materiais bélicos. Em silêncio e sem estardalhaço, matou milhões. Os grandes lideres, das maiores potências econômicas e bélicas do mundo, uma vez infectados, ficaram de joelhos perante a Deus, nosso criador e rei de todos os exércitos, clamando por salvação.  
                        Se eu estou aqui, no ano de 3019, isto é, mil anos após aquela fatídica pandemia que assolou o planeta e dizimou milhões de habitantes, é porque sou obediente e temeroso a Deus e, ainda, porque sempre respeitei a natureza. Naquele tempo, segundo minhas intermináveis pesquisas, as pessoas ridicularizaram a imagem e a santidade de Deus. Os falsos e gananciosos profetas usavam da inocência dos fieis. Faziam uso da santidade do Criador e prometiam curas e prosperidades financeiras, se pagassem por curas inexistentes.
                        No ano de 2019, há mil anos, que dista desta data em que narro o fato, o qual até hoje não sei se é história ou lenda, o povo cometia os mesmos pecados e que desagradavam á Deus, como ocorrera em Sodoma e Gomorra (Genesis 19-24). Naqueles tempos, as duas cidades pecadoras cometeram crimes, que desagradaram os olhos de Deus, tais como: violência e imoralidade sexual - homossexualidade e estupro (Judas 1:7); falta de vergonha, pois não escondiam os seus pecados (Isaias 3:9); arrogância e desprezo pelos necessitados (Ezequiel 16: 49-50). Por aquela razão deus levou o castigo e fez justiça. Mas antes, poupou os justos ( 2 Pedro 2: 6-9).  
                        Passado mil anos, desde 2019, vejo que agora a terra segue em paz o seu destino e que os seus habitantes compreendem que Deus está acima de tudo e de todos. A terra, longe da ganância humana, voltou às suas origens. Ontem ao cair da tarde, vi um Tiranossauro Rex, que saia de seu esconderijo e caminhava tranquilamente ao pé da montanha, lá pelos lados da “Reserva da Juréia”.
                        Pode ter sido uma visão, não sei.

Peruíbe SP, 23 de março de 2020.

domingo, 22 de março de 2020

TUDO PASSA


Adão de Souza Ribeiro

                        Uma enxaqueca milenar e incurável dera-me de presente, dores de cabeça insuportáveis, que afugentavam as longas e suaves noites de sono. Nas inquietações, eu saia para o quintal, rodava em círculo, contava estrelas e voltava para o quatro. A cabeça pesada parecia carregar uma bigorna de centenas de toneladas de peso. Os olhos turvados com a visão fervilhando e, ainda, as ânsias de vômito completavam o enredo de tamanha lamúria. Quem me visse daquele jeito, com certeza não me reconheceria. A expressão do rosto transfigurava-me e eu não era eu.
                        O que aliviava o flagelo era a mãezinha ao lado da cama, que paciente, ao cuidar de mim, trazia nas mãos um rosário, onde, através de orações, suplicava ao Divino Espírito Santo a cura. Ao rezar o terço, lançava mão dos três mistérios, isto é, Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. Cada mistério era composto de um pedido, seguido de cinquenta Ave-Marias. Portanto, há que se compreender que ela passava a noite inteira ao meu lado, fazendo pedidos e ouvindo os meus gemidos de dor.
                        Para amenizar o sofrimento e os gritos de dor, como se fosse um antidoto letal para dissipá-lo, sussurrava aos meus ouvidos, dizendo: “Calma filho, pois tudo passa!”. Entre um instante e outro de calmaria, em meio ao sono leve, dava breves cochiladas. Não sei se era pelo som das repetitivas orações ou pela voz calma e acalentadora, dizendo: “Calma filho, pois tudo passa!”. Dona Olindrina, minha mãezinha (uma mulher baixinha e franzina), tinha a força e a braveza de uma leoa, quando se tratava de acolher e proteger seus rebentos. Nunca vi tamanha energia, escondida na fragilidade de uma mulher.
                        E foi assim, calcado na singeleza daquela frase tão simples e poderosa, que aprendi a suportar e vencer todos os flagelos do mundo. Olha que, na trajetória da vida, passei por longas e desesperadas turbulências. Muitas vezes, pensei que iria desfraldar a bandeira da rendição e da covardia. Mas ao lembrar-me do ensinamento de minha mãe, eu resistia e vencia heroicamente. A mente confusa inquiria-me: “Será que vale a pena lutar?”. Mas lá bem distante, a voz acalentadora daquela mulher franzina que, de frágil não tinha nada, assim em suas incansáveis orações, dizia: “Calma filho, pois tudo passa!”. E não é mesmo, que o pessimismo e o medo, de repente passavam.
                        Creio que fora por aquela razão que, desde muito cedo, nunca temi a nada. Desafiava a “lei da lógica”, para fazer valer os meus desejos e pontos de vista. Não aceitava passivamente as imposições dos tiranos do cotidiano. Buscava a verdade a todo custo, porque, nem mesma a minha era absoluta. Quando a mãe dizia: “Calma meu filho, pois tudo passa!”, tinha pra mim, que ela dizia: “Calma meu filho, pois na vida tudo é transitório!”. Hoje estou e amanhã não estou mais. Então, para que tanta pressa?
                        E foi assim, com aquela célebre frase na cabeça, que passei a observar o mundo à minha volta. Às duras penas, notei a fragilidade do ferro e do cimento. Vi o pobre ficar rico e o rico escafeder-se. Creuza, tão bela e glamorosa na juventude, parecia maracujá de gaveta na velhice. O carro top de linha tornou-se anos depois, uma lata velha. As flores do jardim da praça matriz, sem os cuidados do dedicado jardineiro, murcharam e pereceram. Por mais que prendemos o tempo, ele escapa por entre os dedos. Ele precisa apenas caminhar, viver e envelhecer.
                        Quando repouso-me sozinho, na velha cama de colchão de palha de milho, vêm à mente a doce lembrança de minha mãe, a qual, ainda muito jovem, cuidava das minhas intermináveis dores de cabeça. Uma xícara de chá de ervas caseiras, plantadas no quintal de casa e maceradas pelas mãos calejadas, de quem nunca se apartou de mim. Tudo passa, menos a lembrança daquela cuidadora, que o tempo cuidou de lhe curvar o corpo. As tragédias da atualidade e as doenças avassaladoras, não me impõe medo, porque ainda na terra idade, minha mãe ensinou-me que tudo passa.
                        Hoje os meus cabelos brancos, são provas vivas e irrefutáveis de que, na longa trajetória da vida, venci grandes batalhas externas e internas. Lutei contra tudo e contra todos, para impor a minha marca registrada de homem e de ser pensante. Desde o início, fui o único espermatozoide, dentre bilhões a ser fecundado. Já nos remotos tempos de minha existência, sempre fui um lutador. Diante de tanta luta, deixo a vida me levar, pois tudo passa. Passam-se os sonhos e as decepções, mas só não passa a saudade daquela linda menina da infância Enfim, passam-se as ilusões, mas, não os sentimentos.
                        Sentado aqui à beira da estrada da existência e contemplando a beleza e a força do Universo, vejo que no mundo, tudo passa. Passa o tempo que passar, tudo passa. Até a uva passa!

Peruíbe SP, 22 de março de 2020.

sexta-feira, 20 de março de 2020

UM NEGÓCIO DA CHINA

Adão de Souza Ribeiro

                        Mohamed Nagib Salim Abraão há anos fincou morada na cidadezinha do interior. Casou, constituiu família, criou filhos e tornou-se patrimônio do município. Para sobreviver, logo após a chegada, montou uma loja de armarinho. Com uma linguagem enrolada, fruto da origem turca, conquistou a simpatia de todos os moradores do lugarejo. Tinha um “feeling” para o comércio. A pessoa não saia do seu armarinho, sem comprar algo. Se o cliente não tinha dinheiro, ele parcelava em suaves prestações, até perder de vista.
                        “Salim do Armarinho”, como era carinhosamente chamado, gostava de negociar os produtos. Nas prateleiras, expunha tecidos, os quais, a pedido dos clientes, eram cortados por metro. Ficavam enrolados em pranchas retangulares, conhecidas como fazenda. Também vendia aviamentos de costura e miudezas em geral. Roupas masculinas e femininas, para adultos e crianças. Tudo que as costureiras e donas de casa precisavam, bastava ir no “Armarinho do Salim”, que encontrava. Se por descuido, não tinha o produto, Salim providenciava com urgência.
                        Quando não tinha cliente gastante, no interior da loja, danava prosear com os amigos e a contar histórias saudosas da Turquia e de outros países das bandas do Oriente Médio. Um grande apreciador de Raki e Muhallebi. Admirador da dança do ventre e do som dos instrumentos saz, davul e zuma. Até hoje ele não entende, como pode se apaixonar por uma mulata, de raízes nordestinas, de nome Edileuza Maria. Repartiu o amor às danças folclóricas turcas com o forró nordestino.
                        Com passar dos anos, foi se adaptando aos costumes da terra além-mar. Não demorou, para tornar-se parte da história daquela pequenina cidade, encravada no interior do Estado paulistano. Só não perdeu a graça e a habilidade para o comércio. Comprar e vender eram com ele mesmo. À bem da verdade gostava mesmo era de vender. Se brincasse, vendia até o Cristo Redentor. Era um murruga... um mão-de-vaca, quando se tratava em comprar algo. Tinha hábito de pechinchar tanto, que acabava adquirindo o produto a baixo custo ou até levava gratuitamente.
                        Não há registro nos livros do lugarejo, a história de que algum matuto tenha conseguido levar vantagem econômica em cima de esperteza do “Salim do Armarinho”. Se tentasse, seria uma luta inglória. Ainda corria o risco de ser alvo de chacotas, diante da derrota nos negócios travados com o velho e esperto turco, o “seu” Salim. Certa feita fizeram apostas entre os botequeiros de plantão, frequentadores do “Bar do Zé Mané”, de quem conseguiria engambelá-lo. Como não teve ganhador, o dinheiro foi doado à igreja matriz, para santa padroeira.
                        Lembranças arquivadas na memória do tempo faziam reviver o comércio local, nos finais de semana. Tudo recordava o comércio persa. Os sitiantes e lavradores, vinham aos montes, ora a pé e ora em carretas de trator, carroças e charretes e lombos de cavalo, a fim de realizarem a compra da semana. Os bares cheios de cachaceiros e violeiros, os armazéns atarefados em atenderem os clientes, os desfiles das cabrochas na praça matriz. As ruas num vai e vem danado de pessoas apressadas e felizes, dava um colorido especial aquele lugar.
                        Em meio ao turbilhão de pessoas, andando para lá e para cá, estava o “seu” Salim. Vendendo produtos e espalhando alegria, lá estava ele sorrindo à toa. Edileuza Maria, a nordestina arretada, ajudava no caixa, pois, como turco que era, desconfiava de tudo e de todos. “Um olho no padre e outro na missa”, dizia ele. E arrematava: “O olho do dono é que engorda o porco”. Em meio à correria, esquecia até de comer um pedacinho de baklava. Já a esposa, uma mulata por demais de bonita, de vez em quando, sem cliente na loja, lançava mão de um pedaço de mungunzá e comia até lambuzar o beiço.
                        A loja, que ficava na Rua Rui Barbosa, era tida como ponto turístico. Visitar a cidade e não entrar no “Armarinho do Salim” era como ir à feira e não comer pastel. Especulava-se que a Câmara Municipal, tombaria a loja como patrimônio histórico. Verdade é que, o que ora se narra, fez e fará sempre parte, das doces lembranças de que vivenciou um tempo maravilhoso, na pacata cidade de nossa infância. Há outras histórias a serem contadas, mas ficam para outra oportunidade não muito distante.
                        Encabula, sobremaneira, o fato de que, quando alguém conseguia fazer um bom negócio com “seu” Salim, isto é, adquirir mercadoria por um preço bom, sem levar vantagem com ele, pois aquilo era impossível, sempre diziam: “Fiz um negócio da China”. Por que não diziam: “Fiz um negócio das Arábias”, o que era correto. Sorte de quem viveu naquela época e presenciou os tempos bons de outrora. Pelo que se sabem, naqueles anos dourados, a China exportava quinquilharias, de razoável qualidade e a preço de banana, mas não doenças e vírus criados em laboratório.
                        Crê-se que era por isso, que todos gostavam de fazer negócios com o “seu” Salim. Embora murruga e uma mão-de-vaca, sabia cativar as pessoas e que, por aquela razão, espalhava alegria a todos os habitantes da pacata cidade interiorana.
                        O velho e querido Salim, espalhava felicidade e não o medo.


Peruíbe SP, 20 de março de 2010.  

terça-feira, 17 de março de 2020

AMOR SEM PUDOR


Adão de Souza Ribeiro


Sou bem assim, meio despudorado.
E sem nem um pingo de vergonha,
Quem quer caminhar do meu lado
Não pode acreditar na tal cegonha.


Sei que na vida, em nada me apego,
Vivo no mundo da lua, longe de tudo.
Ao fugir de mim, num voar tão cego,
Esqueço-me das regras e do absurdo.


Quero ser um louco amante na cama,
Cometer todo o pecado do universo,
De tanto desejo, só arder em chama.
Abrandar a labaredas no meu verso.


A mulher que eu escolher em segredo
Devorá-la-ei no silêncio de um quarto.
Da orgia, não quero acordar tão cedo.
E se ela não matar de prazer, eu mato.


Se a carne é fraca e a vida mais ainda,
Se eu não viver com toda intensidade
A chama que arde e a noite que finda
Sem orgasmo, não verei a eternidade.


Peruíbe SP, 18 de março de 2020.


segunda-feira, 16 de março de 2020

NO DIA EM QUE A CIDADE PAROU

Adão de Souza Ribeiro

                        Manhã de domingo. Irradiante de felicidade e com uma paz enorme no coração, apanhei a Bíblia e o rosário, rumando para a igreja matriz. Eu embriagado de tanta felicidade, nada percebi ao longo do caminho. “Salve rainha, mãe de misericórdia... Pai nosso, que estais no céu... Ave Maria, cheia de graça...”, assim mentalizava as orações repetitivas e maçantes do ritual litúrgico. Aos domingos, tinha por costume, esquecer as mazelas da vida. Já não bastavam as atribulações da semana? Embora criança, eu aprendi no catecismo, dar a Cesar o que é de Cesar e a Cristo o que é de Cristo.
                        Mas ao subir nas escadarias, vi que a porta estava trancada. Será que cheguei atrasado ou fui excluído da homilia? Se não cometi heresia, então por que tal penitência? Dei uma volta em torno da santa igreja e tudo fechado. O sino preso à torre de madeira estava estático; o badalo tão cantante, inerte. O alto-falante, que anunciava os atos episcopais e os féretros, estava triste e mudo. No céu de brigadeiro, nenhuma andorinha com sua coreografia divinal.
                        Foi nesse momento, que dei conta da cidade deserta, enlouqueci. Olhei ao derredor e me deparei com um silêncio estonteante. Nada acontecia, como que se um vendaval tivesse varrido do mapa, a vida bucólica da minha cidade. Por onde andavam as pessoas, os animais, a correria do dia-a-dia, o perfume das flores, o bailar das árvores, os seios fartos debruçados na janela, a canção alegre do rio, os beijos enamorados... Por onde andava a minha cidade?
                        Perdido dentro de mim, eu percorri as ruas descalças e as esquinas mudas. Procurei pelas pessoas da minha infância e não estavam lá. O padeiro Onofre solou a massa. O leiteiro João derramou o leite da vida. O delegado Orlando, encarcerou a última esperança. O médico Sheizu, não tinha receita para o desânimo. A professora Almada, fechou a página da cartilha “Caminho Suave”. Procurei por mim e não me encontrei. A minha cidade era um quadro opaco, pendurado na parede da infância distante.
                        A quem recorrer, para saber o que estava acontecendo, se não tinha uma viva alma perambulando pelas ruas? Teriam as pessoas sido abduzidas e levadas para o desterro do desconhecido? Uma cidade encantadora, não podia padecer de tamanha amargura e injustiça. Se eu encontrasse o alcaide ou o delegado, cobraria providências. Mas ao padre, pediria que exorcizasse a solidão do meu povo. Pediria ao médico que curasse a inércia de que deveria lutar pelo bem comum.
                        Por um momento, sentei-me no meio-fio e chorei longamente. Tal qual uma criança abandonada pelos pais, solucei. Não podia compreender como tudo aconteceu tão repentinamente e sem uma explicação plausível. Por um momento, senti-me órfão da vida e de mim, inseguro. As flores inodoras, o vento invisível, as casas fechadas dentro de si, os quintais vazios das traquinagens infantis, as ruas em passos lentos, os bares sem o tintilar dos copos, davam a exata dimensão da minha tristeza. E seu eu rezasse? E se eu clamasse aos céus? E se eu me indignasse? Isso resolveria? De quem era a culpa de tamanha ignominia levantada contra meu povo?
                        Ao recobrar-me do choro e depois de secar as lágrimas, respirei fundo e me recompus. Precisava buscar uma resposta para entender o porquê da minha cidade deserta. Não sei de onde viria a voz da verdade, já que nenhuma autoridade constituída estava presente. Embora estivesse na tenra idade, eu tinha o direito de redescobrir a beleza minha cidade e a alegria do meu povo. A minha inquietação e revolta haveria de ter resultados surpreendentes. Não nasci para aceitar com passividade o que não conseguia compreender.
                        Embora pequena, minha cidade tinha uma rotina. E era isso que dava vida e impulsionava as pessoas para o futuro, com planos sólidos e serenos. Mas deserta, daquele jeito que eu via, sem sangue em suas artérias, entristeceu-me. Tinha violência? Nada que causasse trauma ou polêmica, basta ver aquela cadeia sempre vazia e o delegado tomando um gole de cachaça no “Bar do Aname”. Um ladrão de galinha, uma briga de comadres, um acidente de charrete, um marido enciumado, nada mais.
                        Ainda ali no meio-fio, abri a Bíblia, danei a rezar e a invocar a santidade do padre Antônio. O silêncio ecoava pelos quatro cantos e me torturava. Queria uma resposta e não tinha. Por que levaram a alma da minha cidade, arrebentaram seu coração e sucumbiu o brilho de seus olhos? Queria de volta o sangue da alegria, que pulsava em suas artérias, pois esse era o meu direito, como filho dela. Ninguém tinha o direito de calar a sua voz e empalidecer o seu encanto.
                        Foi então que percebi, num momento de lucidez e desprovido de emoção, que a minha cidade parou, não por desígnio de Deus; mas, sim, num toque de recolher, imposto pelo crime organizado.
Peruíbe SP, 16 de março de 2020.

P.S: Os nomes são fictícios e qualquer semelhança com pessoas reais, são meras coincidências.