terça-feira, 31 de março de 2020

RECADO AO SENHOR DO 903


Rubem Braga

                        Vizinho

                        Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria a seu lado a Lei e a própria Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome e nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis: nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometeo sinceramente adotar, depois as 22:00 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: meu número) será convidado a se retirar às 21:45 horas, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22:00 horas às 07:00 horas pois às 08:15 horas deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomodar outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.

                        - Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e com outro mundo, em que um homem bate à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entre, vizinho, e coma do meu pão e beba do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.

                        E o homem trouxesse a sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e as amigas do vizinho, entoando canções para engrandecer e agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os homens, e o amor e a paz.


09 de outubro de 1954.

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