sexta-feira, 20 de março de 2020

UM NEGÓCIO DA CHINA

Adão de Souza Ribeiro

                        Mohamed Nagib Salim Abraão há anos fincou morada na cidadezinha do interior. Casou, constituiu família, criou filhos e tornou-se patrimônio do município. Para sobreviver, logo após a chegada, montou uma loja de armarinho. Com uma linguagem enrolada, fruto da origem turca, conquistou a simpatia de todos os moradores do lugarejo. Tinha um “feeling” para o comércio. A pessoa não saia do seu armarinho, sem comprar algo. Se o cliente não tinha dinheiro, ele parcelava em suaves prestações, até perder de vista.
                        “Salim do Armarinho”, como era carinhosamente chamado, gostava de negociar os produtos. Nas prateleiras, expunha tecidos, os quais, a pedido dos clientes, eram cortados por metro. Ficavam enrolados em pranchas retangulares, conhecidas como fazenda. Também vendia aviamentos de costura e miudezas em geral. Roupas masculinas e femininas, para adultos e crianças. Tudo que as costureiras e donas de casa precisavam, bastava ir no “Armarinho do Salim”, que encontrava. Se por descuido, não tinha o produto, Salim providenciava com urgência.
                        Quando não tinha cliente gastante, no interior da loja, danava prosear com os amigos e a contar histórias saudosas da Turquia e de outros países das bandas do Oriente Médio. Um grande apreciador de Raki e Muhallebi. Admirador da dança do ventre e do som dos instrumentos saz, davul e zuma. Até hoje ele não entende, como pode se apaixonar por uma mulata, de raízes nordestinas, de nome Edileuza Maria. Repartiu o amor às danças folclóricas turcas com o forró nordestino.
                        Com passar dos anos, foi se adaptando aos costumes da terra além-mar. Não demorou, para tornar-se parte da história daquela pequenina cidade, encravada no interior do Estado paulistano. Só não perdeu a graça e a habilidade para o comércio. Comprar e vender eram com ele mesmo. À bem da verdade gostava mesmo era de vender. Se brincasse, vendia até o Cristo Redentor. Era um murruga... um mão-de-vaca, quando se tratava em comprar algo. Tinha hábito de pechinchar tanto, que acabava adquirindo o produto a baixo custo ou até levava gratuitamente.
                        Não há registro nos livros do lugarejo, a história de que algum matuto tenha conseguido levar vantagem econômica em cima de esperteza do “Salim do Armarinho”. Se tentasse, seria uma luta inglória. Ainda corria o risco de ser alvo de chacotas, diante da derrota nos negócios travados com o velho e esperto turco, o “seu” Salim. Certa feita fizeram apostas entre os botequeiros de plantão, frequentadores do “Bar do Zé Mané”, de quem conseguiria engambelá-lo. Como não teve ganhador, o dinheiro foi doado à igreja matriz, para santa padroeira.
                        Lembranças arquivadas na memória do tempo faziam reviver o comércio local, nos finais de semana. Tudo recordava o comércio persa. Os sitiantes e lavradores, vinham aos montes, ora a pé e ora em carretas de trator, carroças e charretes e lombos de cavalo, a fim de realizarem a compra da semana. Os bares cheios de cachaceiros e violeiros, os armazéns atarefados em atenderem os clientes, os desfiles das cabrochas na praça matriz. As ruas num vai e vem danado de pessoas apressadas e felizes, dava um colorido especial aquele lugar.
                        Em meio ao turbilhão de pessoas, andando para lá e para cá, estava o “seu” Salim. Vendendo produtos e espalhando alegria, lá estava ele sorrindo à toa. Edileuza Maria, a nordestina arretada, ajudava no caixa, pois, como turco que era, desconfiava de tudo e de todos. “Um olho no padre e outro na missa”, dizia ele. E arrematava: “O olho do dono é que engorda o porco”. Em meio à correria, esquecia até de comer um pedacinho de baklava. Já a esposa, uma mulata por demais de bonita, de vez em quando, sem cliente na loja, lançava mão de um pedaço de mungunzá e comia até lambuzar o beiço.
                        A loja, que ficava na Rua Rui Barbosa, era tida como ponto turístico. Visitar a cidade e não entrar no “Armarinho do Salim” era como ir à feira e não comer pastel. Especulava-se que a Câmara Municipal, tombaria a loja como patrimônio histórico. Verdade é que, o que ora se narra, fez e fará sempre parte, das doces lembranças de que vivenciou um tempo maravilhoso, na pacata cidade de nossa infância. Há outras histórias a serem contadas, mas ficam para outra oportunidade não muito distante.
                        Encabula, sobremaneira, o fato de que, quando alguém conseguia fazer um bom negócio com “seu” Salim, isto é, adquirir mercadoria por um preço bom, sem levar vantagem com ele, pois aquilo era impossível, sempre diziam: “Fiz um negócio da China”. Por que não diziam: “Fiz um negócio das Arábias”, o que era correto. Sorte de quem viveu naquela época e presenciou os tempos bons de outrora. Pelo que se sabem, naqueles anos dourados, a China exportava quinquilharias, de razoável qualidade e a preço de banana, mas não doenças e vírus criados em laboratório.
                        Crê-se que era por isso, que todos gostavam de fazer negócios com o “seu” Salim. Embora murruga e uma mão-de-vaca, sabia cativar as pessoas e que, por aquela razão, espalhava alegria a todos os habitantes da pacata cidade interiorana.
                        O velho e querido Salim, espalhava felicidade e não o medo.


Peruíbe SP, 20 de março de 2010.  

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