Adão de Souza
Ribeiro
Já há muito tempo, que ando afastado, ou
melhor, bem distante do “Reino Caiçara”. Vários fatores levaram-me a este
distanciamento. Dentre eles, estão o acúmulo de trabalho e, também, a fuga
desta política enojada. Não é de hoje, que vejo que os mandatários, depois de
eleitos e empossados em seus cargos, nada fazem em prol da sociedade. Os donos
do poder fecham-se em seus gabinetes suntuosos, onde passam a desenhar o país
dos seus sonhos e longe da realidade. Parece que estão fora da caixinha e que
as mazelas do mundo não lhes pertencem.
Enquanto isso, do outro lado daquele mundo de
quimeras, onde eles transitam livremente, o povo clama por piedade. Os gritos
ensurdecidos, daqueles que lhe outorgaram o poder, não ultrapassam as paredes
blindadas do descaso e da inércia. De vez em quando, para acalmar o desespero
do povo, eles arremessam alguns punhados de farelo de suas luxúrias, pela
janela. E o povo, massa de manobra, agradece de joelhos, a falsa benesse
recebida. Chegam a dizer que preferem o cheiro de animais, ao cheiro do povo.
Para manterem os prazeres, que o poder
propicia, criam tragédias e psicoses sociais e delas se regozijam. Eles são
insensíveis e imunes à dor alheia e, por isso, agem como se nada houvesse
acontecido. Enquanto o povo morre à mingua, os governantes participam de
banquetes regados ao alimento da soberba e a bebida da hipocrisia. Ao redor da
mesa, estão os asseclas, os quais, vindos do povo, esquecem que um dia também
foi povo. Deus apiede-se daquelas almas
sofredoras, porque, um dia, irão queimar no fogo do inferno.
Outro dia, por distração, me vi caminhando
pelas vielas, ladeiras, becos e logradouros do “Reino Caiçara”. Estava cansado
da clausura imposta por uma doença hereditária e obedecendo as recomendações
médicas, fui caminhar um pouco. Queria apreciar a natureza e ouvir a voz humana.
A solidão mata e não só a doença bacteriana ou virulenta. A masmorra onde
estava definhava-me aos poucos. Como há muito tempo não saia de lá, estranhei
os lugares desertos por onde andei.
Depois de longos trechos percorridos, desemboquei-me
numa grande rede de fast-food. Antes, porém, durante a caminhada
descompromissada com o mundo e na contemplação da natureza, percebi que os
transeuntes usavam luvas e máscaras. Por um instante, pensei que não estava na
terra e que havia sido abduzido para outro planeta, numa galáxia distante. Por ser
curioso, fui perguntar a um andante distraído, o qual me disse que o mundo
havia sido acometido de uma doença desconhecida e impiedosa, a qual estava
dizimando a população.
Naquela parada obrigatória, em virtude do
cansaço e da fome que atormentava o meu estômago, tive a desdita de observar
que os funcionários não usavam máscara e nem luvas, que deveriam proteger a si
e os clientes. Questionei à direção, mas recebi justificativas deslavadas e não
convincentes. Por coincidência ou ironia do destino, defronte o comércio estava
um representante do Parlamento (Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns). Cobrei
dele providências, uma vez que é representante legal do povo (contribuinte),
que paga religiosamente os impostos, os quais são depositados nos cofres do
reino.
De supetão e sem pestanejar, disse-me que não
era sua responsabilidade e, sim, do Rei Fabricio e do Ministro das Doenças Infectocontagiosas,
tomar as providências legais. Segundo a Constituição Monárquica, cabe ao
Parlamento (Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns), legislar e fiscalizar os
atos do Império, isto é, do Monarca e de seus Ministros. Então, estribado no
que reza a Carta Magna, o deputado tinha por dever de ofício, cobrar o Rei ou o
Ministro, por aquele descumprimento da lei, por parte de tal comércio. O
descaso da direção da rede de fast-food poderia ensejar na contaminação de todo
o reino.
Diante do infortúnio do “não me diz respeito”,
por parte daquele parlamentar, resta uma pergunta que não quer calar: “Para
que serve o Parlamento e seus eleitos?” A meu ver, depois daquela saída
pela tangente, do deputado irresponsável, o Parlamento serve apenas para
outorgar titulo de cidadão honorário as pessoas de sua amizade ou nome de rua
e, ainda, descerrar placas de eventos ou datas comemorativas. Ressalte-se
dizer, ainda, para fazer conchavos e negociatas escusas, na cala da noite. O
descredito de todos os súditos da Monarquia tem lá suas razões, que a própria
razão desconhece.
A doença que acometia a população e que
poderia levar a dizimação de todos os habitantes do planeta tinha como regra
básica de higiene, lavar as mãos. Sem que eu percebesse, o Parlamentar estava
cumprindo a determinação das autoridades de saúde, isto é, estava lavando as
mãos. Lavando não para evitar a sua contaminação ou do povo, mas da responsabilidade
de cobrar o cumprimento da lei, quer por parte das autoridades ou da empresa
privada.
Repentinamente veio à mente, a atitude de
Pôncio Pilatos durante o julgamento de Jesus Cristo. Naquele episódio, Pôncio Pilatos,
governador romano da Judéia, não queria ser culpado pela condenação de um
inocente. Então, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando
água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: “Estou inocente do sangue deste
justo, considerai-vos isso” (Mateus 27:24). Pilatos assim agiu por
covardia em não libertar um inocente e para garantir o seu cargo de Governador
e, também, não soar como inimigo do Imperador Cesar, cujo nome era Gaio Júlio
Cesar Otaviano.
Finalizando, creio que o Parlamentar lavou
suas mãos, em ato covarde por não defender o interesse dos funcionários da
empresa privada e do povo como um todo. Assim agiu para não soar como inimigo
da rede de fast-food. Por que assim, não sei. Só o tempo dirá, pois ele é o
senhor da razão. Deus salve o Rei e o Império! Eu não deveria ter saído do
silêncio da minha velha e querida masmorra. Se tivesse permanecido lá, meu
espirito inquieto não teria se deparado com tamanha injustiça. Indignar-se,
sempre; calar-se, jamais.
Assim sendo, fiz a minha parte, indignando-me
pelo não cumprimento da lei e da covardia de quem a legisla. Literalmente: “Lavo as
minhas mãos!”.
Peruíbe SP, 25
de março de 2020.
Um comentário:
Muito bom.
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