quarta-feira, 25 de março de 2020

LAVAR AS MÃOS

Adão de Souza Ribeiro


                        Já há muito tempo, que ando afastado, ou melhor, bem distante do “Reino Caiçara”. Vários fatores levaram-me a este distanciamento. Dentre eles, estão o acúmulo de trabalho e, também, a fuga desta política enojada. Não é de hoje, que vejo que os mandatários, depois de eleitos e empossados em seus cargos, nada fazem em prol da sociedade. Os donos do poder fecham-se em seus gabinetes suntuosos, onde passam a desenhar o país dos seus sonhos e longe da realidade. Parece que estão fora da caixinha e que as mazelas do mundo não lhes pertencem.
                        Enquanto isso, do outro lado daquele mundo de quimeras, onde eles transitam livremente, o povo clama por piedade. Os gritos ensurdecidos, daqueles que lhe outorgaram o poder, não ultrapassam as paredes blindadas do descaso e da inércia. De vez em quando, para acalmar o desespero do povo, eles arremessam alguns punhados de farelo de suas luxúrias, pela janela. E o povo, massa de manobra, agradece de joelhos, a falsa benesse recebida. Chegam a dizer que preferem o cheiro de animais, ao cheiro do povo.
                        Para manterem os prazeres, que o poder propicia, criam tragédias e psicoses sociais e delas se regozijam. Eles são insensíveis e imunes à dor alheia e, por isso, agem como se nada houvesse acontecido. Enquanto o povo morre à mingua, os governantes participam de banquetes regados ao alimento da soberba e a bebida da hipocrisia. Ao redor da mesa, estão os asseclas, os quais, vindos do povo, esquecem que um dia também foi povo.  Deus apiede-se daquelas almas sofredoras, porque, um dia, irão queimar no fogo do inferno.
                        Outro dia, por distração, me vi caminhando pelas vielas, ladeiras, becos e logradouros do “Reino Caiçara”. Estava cansado da clausura imposta por uma doença hereditária e obedecendo as recomendações médicas, fui caminhar um pouco. Queria apreciar a natureza e ouvir a voz humana. A solidão mata e não só a doença bacteriana ou virulenta. A masmorra onde estava definhava-me aos poucos. Como há muito tempo não saia de lá, estranhei os lugares desertos por onde andei.
                        Depois de longos trechos percorridos, desemboquei-me numa grande rede de fast-food. Antes, porém, durante a caminhada descompromissada com o mundo e na contemplação da natureza, percebi que os transeuntes usavam luvas e máscaras. Por um instante, pensei que não estava na terra e que havia sido abduzido para outro planeta, numa galáxia distante. Por ser curioso, fui perguntar a um andante distraído, o qual me disse que o mundo havia sido acometido de uma doença desconhecida e impiedosa, a qual estava dizimando a população.
                        Naquela parada obrigatória, em virtude do cansaço e da fome que atormentava o meu estômago, tive a desdita de observar que os funcionários não usavam máscara e nem luvas, que deveriam proteger a si e os clientes. Questionei à direção, mas recebi justificativas deslavadas e não convincentes. Por coincidência ou ironia do destino, defronte o comércio estava um representante do Parlamento (Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns). Cobrei dele providências, uma vez que é representante legal do povo (contribuinte), que paga religiosamente os impostos, os quais são depositados nos cofres do reino.
                        De supetão e sem pestanejar, disse-me que não era sua responsabilidade e, sim, do Rei Fabricio e do Ministro das Doenças Infectocontagiosas, tomar as providências legais. Segundo a Constituição Monárquica, cabe ao Parlamento (Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns), legislar e fiscalizar os atos do Império, isto é, do Monarca e de seus Ministros. Então, estribado no que reza a Carta Magna, o deputado tinha por dever de ofício, cobrar o Rei ou o Ministro, por aquele descumprimento da lei, por parte de tal comércio. O descaso da direção da rede de fast-food poderia ensejar na contaminação de todo o reino.
                        Diante do infortúnio do “não me diz respeito”, por parte daquele parlamentar, resta uma pergunta que não quer calar: “Para que serve o Parlamento e seus eleitos?” A meu ver, depois daquela saída pela tangente, do deputado irresponsável, o Parlamento serve apenas para outorgar titulo de cidadão honorário as pessoas de sua amizade ou nome de rua e, ainda, descerrar placas de eventos ou datas comemorativas. Ressalte-se dizer, ainda, para fazer conchavos e negociatas escusas, na cala da noite. O descredito de todos os súditos da Monarquia tem lá suas razões, que a própria razão desconhece.
                        A doença que acometia a população e que poderia levar a dizimação de todos os habitantes do planeta tinha como regra básica de higiene, lavar as mãos. Sem que eu percebesse, o Parlamentar estava cumprindo a determinação das autoridades de saúde, isto é, estava lavando as mãos. Lavando não para evitar a sua contaminação ou do povo, mas da responsabilidade de cobrar o cumprimento da lei, quer por parte das autoridades ou da empresa privada.
                        Repentinamente veio à mente, a atitude de Pôncio Pilatos durante o julgamento de Jesus Cristo. Naquele episódio, Pôncio Pilatos, governador romano da Judéia, não queria ser culpado pela condenação de um inocente. Então, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: “Estou inocente do sangue deste justo, considerai-vos isso” (Mateus 27:24). Pilatos assim agiu por covardia em não libertar um inocente e para garantir o seu cargo de Governador e, também, não soar como inimigo do Imperador Cesar, cujo nome era Gaio Júlio Cesar Otaviano.
                        Finalizando, creio que o Parlamentar lavou suas mãos, em ato covarde por não defender o interesse dos funcionários da empresa privada e do povo como um todo. Assim agiu para não soar como inimigo da rede de fast-food. Por que assim, não sei. Só o tempo dirá, pois ele é o senhor da razão. Deus salve o Rei e o Império! Eu não deveria ter saído do silêncio da minha velha e querida masmorra. Se tivesse permanecido lá, meu espirito inquieto não teria se deparado com tamanha injustiça. Indignar-se, sempre; calar-se, jamais.
                        Assim sendo, fiz a minha parte, indignando-me pelo não cumprimento da lei e da covardia de quem a legisla. Literalmente: “Lavo as minhas mãos!”.

Peruíbe SP, 25 de março de 2020.