domingo, 22 de março de 2020

TUDO PASSA


Adão de Souza Ribeiro

                        Uma enxaqueca milenar e incurável dera-me de presente, dores de cabeça insuportáveis, que afugentavam as longas e suaves noites de sono. Nas inquietações, eu saia para o quintal, rodava em círculo, contava estrelas e voltava para o quatro. A cabeça pesada parecia carregar uma bigorna de centenas de toneladas de peso. Os olhos turvados com a visão fervilhando e, ainda, as ânsias de vômito completavam o enredo de tamanha lamúria. Quem me visse daquele jeito, com certeza não me reconheceria. A expressão do rosto transfigurava-me e eu não era eu.
                        O que aliviava o flagelo era a mãezinha ao lado da cama, que paciente, ao cuidar de mim, trazia nas mãos um rosário, onde, através de orações, suplicava ao Divino Espírito Santo a cura. Ao rezar o terço, lançava mão dos três mistérios, isto é, Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. Cada mistério era composto de um pedido, seguido de cinquenta Ave-Marias. Portanto, há que se compreender que ela passava a noite inteira ao meu lado, fazendo pedidos e ouvindo os meus gemidos de dor.
                        Para amenizar o sofrimento e os gritos de dor, como se fosse um antidoto letal para dissipá-lo, sussurrava aos meus ouvidos, dizendo: “Calma filho, pois tudo passa!”. Entre um instante e outro de calmaria, em meio ao sono leve, dava breves cochiladas. Não sei se era pelo som das repetitivas orações ou pela voz calma e acalentadora, dizendo: “Calma filho, pois tudo passa!”. Dona Olindrina, minha mãezinha (uma mulher baixinha e franzina), tinha a força e a braveza de uma leoa, quando se tratava de acolher e proteger seus rebentos. Nunca vi tamanha energia, escondida na fragilidade de uma mulher.
                        E foi assim, calcado na singeleza daquela frase tão simples e poderosa, que aprendi a suportar e vencer todos os flagelos do mundo. Olha que, na trajetória da vida, passei por longas e desesperadas turbulências. Muitas vezes, pensei que iria desfraldar a bandeira da rendição e da covardia. Mas ao lembrar-me do ensinamento de minha mãe, eu resistia e vencia heroicamente. A mente confusa inquiria-me: “Será que vale a pena lutar?”. Mas lá bem distante, a voz acalentadora daquela mulher franzina que, de frágil não tinha nada, assim em suas incansáveis orações, dizia: “Calma filho, pois tudo passa!”. E não é mesmo, que o pessimismo e o medo, de repente passavam.
                        Creio que fora por aquela razão que, desde muito cedo, nunca temi a nada. Desafiava a “lei da lógica”, para fazer valer os meus desejos e pontos de vista. Não aceitava passivamente as imposições dos tiranos do cotidiano. Buscava a verdade a todo custo, porque, nem mesma a minha era absoluta. Quando a mãe dizia: “Calma meu filho, pois tudo passa!”, tinha pra mim, que ela dizia: “Calma meu filho, pois na vida tudo é transitório!”. Hoje estou e amanhã não estou mais. Então, para que tanta pressa?
                        E foi assim, com aquela célebre frase na cabeça, que passei a observar o mundo à minha volta. Às duras penas, notei a fragilidade do ferro e do cimento. Vi o pobre ficar rico e o rico escafeder-se. Creuza, tão bela e glamorosa na juventude, parecia maracujá de gaveta na velhice. O carro top de linha tornou-se anos depois, uma lata velha. As flores do jardim da praça matriz, sem os cuidados do dedicado jardineiro, murcharam e pereceram. Por mais que prendemos o tempo, ele escapa por entre os dedos. Ele precisa apenas caminhar, viver e envelhecer.
                        Quando repouso-me sozinho, na velha cama de colchão de palha de milho, vêm à mente a doce lembrança de minha mãe, a qual, ainda muito jovem, cuidava das minhas intermináveis dores de cabeça. Uma xícara de chá de ervas caseiras, plantadas no quintal de casa e maceradas pelas mãos calejadas, de quem nunca se apartou de mim. Tudo passa, menos a lembrança daquela cuidadora, que o tempo cuidou de lhe curvar o corpo. As tragédias da atualidade e as doenças avassaladoras, não me impõe medo, porque ainda na terra idade, minha mãe ensinou-me que tudo passa.
                        Hoje os meus cabelos brancos, são provas vivas e irrefutáveis de que, na longa trajetória da vida, venci grandes batalhas externas e internas. Lutei contra tudo e contra todos, para impor a minha marca registrada de homem e de ser pensante. Desde o início, fui o único espermatozoide, dentre bilhões a ser fecundado. Já nos remotos tempos de minha existência, sempre fui um lutador. Diante de tanta luta, deixo a vida me levar, pois tudo passa. Passam-se os sonhos e as decepções, mas só não passa a saudade daquela linda menina da infância Enfim, passam-se as ilusões, mas, não os sentimentos.
                        Sentado aqui à beira da estrada da existência e contemplando a beleza e a força do Universo, vejo que no mundo, tudo passa. Passa o tempo que passar, tudo passa. Até a uva passa!

Peruíbe SP, 22 de março de 2020.

3 comentários:

Unknown disse...

Parabéns!!

Selma Santos disse...

Obg pela boa leitura, meu amigo!

Unknown disse...

👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻