domingo, 15 de março de 2020

O RESGATE


Adão de Souza Ribeiro

                                   Outro dia, já no despontar do arrebol, Philadelpho sentou-se num toco de madeira, sob os galhos de uma frondosa paineira. Sim, era Filadelfo com “ph”, nome dado pela mãe. Coisa de gente metida a besta. Do lado, uma xícara de pinga artesanal. Enquanto ia montando o seu cigarro de fumo de corda, num pedaço de palha seca de milho, observava até onde a visão alcançava a imensidão do sitio. Aquele era um momento de retiro, onde podia viajar em pensamentos desconexos.
                                   Entre um gole e outro da cachaça, intercalado com uma pitada do cigarro, danava a pensar nas caminhadas que a vida deu. Numa baforada, a fumaça formava desenhos no espaço e ali, seus olhos contemplavam imagens lindas, frutos da sua imaginação. Desligava do mundo, como num ritual de hipnose. Lá longe, o gado pastava comendo braquiária. Ali próximo, os pássaros gorjeavam, num bailar nunca visto. Já as galinhas, com seus bicos afiados, alimentavam-se de insetos e sementes. Coisa linda de se ver.
                                   No beiral da janela, da palhoça logo atrás, um radinho de pilha, tocava uma música sertaneja, de uma dupla raiz. Embalado por tudo aquilo, Philadelpho remexia o baú da memória, envelhecido pela poeira da saudade, querendo resgatar o que se havia perdido com o tempo. Lembrava-se da infância sofrida, de poucos recursos. Ainda pequeno e enrolado num cueiro, os pais o colocava debaixo da saia, das folhagens do pé de café, enquanto roçava a lavoura de manhã à noite.
                                   Já na infância, a longa caminhada pela estrada de chão batido, rumo à escola do vilarejo, começava a traçar novos rumos. No imborná, ao invés de comida, levava um caderno, lápis, borracha, a cartilha “Caminho Suave”, um pedaço de pão caseiro e um frasco com suco de laranja. Na escola, a tia “Coquinha” – uma professora com paciência de Jó - ensinava as primeiras letras do beabá. Alguns amigos, vestidos em pano de seda, levava em suas mochilas, guloseimas, compradas no armazém do “Seu Takada”. Na dele, apenas pão caseiro e suco de laranja, carinhosamente feitos pela mãe, àquela que lhe deu o nome de “Philadelplo”.
                                   O tempo passou e a infância envelheceu. Os pais, de mãos calejadas e os corpos encurvados e carcomidos pelo tempo, caminharam rumo à porteira do amanhã e nunca mais voltaram. Ainda jovem teve que assumir a governança do sítio “Velho Rincão”. Com o ensinamento de seus pais, coisa que não se aprendia nas carteiras da escola, cuidou com carinho das terras de herança. Prosperou e chegou a exportar a produção, fruto de seu suor. Philadelpho tratou com carinho os lavradores e os animais, protegidos sob suas asas. Não fazia distinção de quem usava roupa de seda ou de chita.
                                   Enquanto Philadelpho divagava em seus pensamentos saudosistas, Jorgina – esposa dedicada e carinhosa - cozia um quitute caseiro, no fogão à lenha. De longe, sentia-se o cheiro carregado do tempero, que atiçava o estômago do marido, o seu Philadelpho. Ele lhe deu sobrenome e filhos, por isso, tinha amor por demais ao varão. Enquanto caia a tarde e Jorgina preparava a janta, ele continuava remexendo no velho baú da saudade. Se a cachaça terminava, num tinha problema, pois, por precaução, havia mais estocada na cabaça. Fumava a bituca, até queimar os dedos, por culpa de suas longas divagações.
                                   A vida rude, fez dele uma pessoa rude. Sempre tímido de nascença, por isso, perdeu a oportunidade única de conquistar a mais linda cabrocha da escola. Amou em segredo e só os versos rabiscados por ele, no caderno do sentimento, sabia daquele segredo. Foi voar para o mundo, quando jovem, mas nunca perdeu a essência humilde da alma. De vez em quando, durante suas meditações, um rouxinol, aproximava-se para cantar melodias aos seus ouvidos. O gorjear dos pássaros, vinham lhe dizer que a vida era bela.
                                    De cabeça baixa, viajando por tempos não desbravados, veio à lembrança de antigos amigos e amigas das carteiras da escola. Por onde andavam aqueles que, sem perceberem, desenharam parte da sua história? Em que mundos habitam hoje? Foram abduzidos pela nave interplanetária do destino e levados para quais desterros? Casaram, enviuvaram, divorciaram e tiveram filhos? Tornaram-se doutores, policiais, fazendeiros, doutores, artistas, padres, empresários, videntes, loucos ou santos? Sabia-se lá!
                                   Havia tantas donzelas, que ele se perdia em contemplação. Lembrava com saudade da filha do fazendeiro, do militar, do médico, do industrial, do empresário, do gerente. Lembrava-se daquela donzela de corpo escultural e da garota fofinha. Chamava atenção àquela que debruça nos livros, a chamada CDF. Sorria sozinho, quando se lembrava do amigo que roubou um beijo repentino da menina de nome comum. E aquela que, quando dava um saque na bola, no jogo de voleibol, marcava mil pontos no seu coração. Quanta saudade, meu Deus!
                                   E por falar das missas na capela da escola. Quando um padre cantor, de aparência sedutora/provocante e voz adocicada, visitava a escola, causava um rebuliço danado. A diretora e professoras, todas religiosas – escondidas atrás de seus “hábitos” – vestimentas apropriadas de mulheres reclusas-, assanhavam-se todas. A tentação da carne era mais forte que a fé e o celibato. O espírito do pecado ardia e era incontrolável. A professora de língua portuguesa, organizando as festas juninas, que davam à escola um brilho inesquecível.
                                   Como se esquecer do amigo, aspirante a ginecologista. Examinava as colegas na sala, nos intervalos de aula, com medo de ser flagrado e sob a vigilância e cumplicidade das demais. Assim, ele dava os primeiros passos, com vistas à sexualidade. É justo lembrar-se do “primo pobre”, filho de caminhoneiro, que só era lembrado nas atividades extracurriculares e que, para estudar, contou com a benevolência da direção, inclusive, daquela madre assanhada, lembra? Um dia, seriam diplomados e entregues a um mundo desconhecido. Tudo aquilo seria passado. E passado é passado!
                                   Depois de longas horas, perdido em pensamentos diversos, Philadelpho nem percebeu que a lua já batia à porta da noite. Então, acordou de um sonho lindo e prazeroso. Notou que os bichos já haviam se recolhido em seus aposentos. Não queria despertar, mas era preciso. Pairava um silêncio entediante. Nada era eterno e foi preciso acordar para a realidade fria daquele momento presente. Quem sabe amanhã, novamente dormitaria no colo das doces recordações, de um tempo que não voltaria mais.
                                   Entristecido, deu uma forte cuspida amarelada de lado, resto da saliva daquele cigarro fedorento. Apagou a bituca com a sola da alpercata. Recolheu a xícara e a cabaça, mas, antes porém, jogou o resto de cachaça para o santo (superstição de boteco). Desligou o radinho de pilha, com uma música sertaneja cantada pela metade. Estava tão angustiado, que nem degustou as quietudes de dona Jorgina.
                                   Ali sentado no toco de uma árvore, embaixo do pé de paineira, viajou por tempos dourados e resgatou em sua memória, desgastada pelos anos, velhas histórias e valiosos amigos e amigas, que se perderam pelo mundo afora. Rezou uma prece: “Nossa Senhora Auxiliadora, Madre de Dios, rogai por nós!”.
                                   Apagou a luz da lua e foi dormir o sono dos justos!

Peruíbe SP, 15 de março de 2020.

2 comentários:

Rita de Cássia disse...

Que lindo Adão. Me trouxe lembranças de minha infância na fazenda que meu avô era administrador. Adorei!

Unknown disse...

Lindo demais Adão. Fiquei com muitas lembranças de meu avô,parabéns palavras lindas 👏👏👏👏