Adão de Souza
Ribeiro
Outro dia, já no despontar do
arrebol, Philadelpho sentou-se num toco de madeira, sob os galhos de uma
frondosa paineira. Sim, era Filadelfo com “ph”, nome dado pela mãe. Coisa de gente
metida a besta. Do lado, uma xícara de pinga artesanal. Enquanto ia montando o
seu cigarro de fumo de corda, num pedaço de palha seca de milho, observava até
onde a visão alcançava a imensidão do sitio. Aquele era um momento de retiro,
onde podia viajar em pensamentos desconexos.
Entre um gole e outro da cachaça,
intercalado com uma pitada do cigarro, danava a pensar nas caminhadas que a
vida deu. Numa baforada, a fumaça formava desenhos no espaço e ali, seus olhos contemplavam imagens lindas, frutos da sua imaginação. Desligava do mundo, como num
ritual de hipnose. Lá longe, o gado pastava comendo braquiária. Ali próximo, os
pássaros gorjeavam, num bailar nunca visto. Já as galinhas, com seus bicos
afiados, alimentavam-se de insetos e sementes. Coisa linda de se ver.
No beiral da janela, da palhoça
logo atrás, um radinho de pilha, tocava uma música sertaneja, de uma dupla
raiz. Embalado por tudo aquilo, Philadelpho remexia o baú da memória,
envelhecido pela poeira da saudade, querendo resgatar o que se havia perdido
com o tempo. Lembrava-se da infância sofrida, de poucos recursos. Ainda pequeno
e enrolado num cueiro, os pais o colocava debaixo da saia, das folhagens do pé de
café, enquanto roçava a lavoura de manhã à noite.
Já na infância, a longa caminhada
pela estrada de chão batido, rumo à escola do vilarejo, começava a traçar novos
rumos. No imborná, ao invés de comida, levava um caderno, lápis, borracha, a
cartilha “Caminho Suave”, um pedaço de pão caseiro e um frasco com suco de
laranja. Na escola, a tia “Coquinha” – uma professora com paciência de Jó - ensinava
as primeiras letras do beabá. Alguns amigos, vestidos em pano de seda, levava
em suas mochilas, guloseimas, compradas no armazém do “Seu Takada”. Na dele,
apenas pão caseiro e suco de laranja, carinhosamente feitos pela mãe, àquela
que lhe deu o nome de “Philadelplo”.
O tempo passou e a infância
envelheceu. Os pais, de mãos calejadas e os corpos encurvados e carcomidos pelo
tempo, caminharam rumo à porteira do amanhã e nunca mais voltaram. Ainda jovem
teve que assumir a governança do sítio “Velho Rincão”. Com o ensinamento de
seus pais, coisa que não se aprendia nas carteiras da escola, cuidou com
carinho das terras de herança. Prosperou e chegou a exportar a produção, fruto de seu
suor. Philadelpho tratou com carinho os lavradores e os animais, protegidos sob
suas asas. Não fazia distinção de quem usava roupa de seda ou de chita.
Enquanto Philadelpho divagava em
seus pensamentos saudosistas, Jorgina – esposa dedicada e carinhosa - cozia um
quitute caseiro, no fogão à lenha. De longe, sentia-se o cheiro carregado do
tempero, que atiçava o estômago do marido, o seu Philadelpho. Ele lhe deu
sobrenome e filhos, por isso, tinha amor por demais ao varão. Enquanto caia a
tarde e Jorgina preparava a janta, ele continuava remexendo no velho baú da
saudade. Se a cachaça terminava, num tinha problema, pois, por precaução, havia
mais estocada na cabaça. Fumava a bituca, até queimar os dedos, por culpa de
suas longas divagações.
A vida rude, fez dele uma pessoa
rude. Sempre tímido de nascença, por isso, perdeu a oportunidade única de
conquistar a mais linda cabrocha da escola. Amou em segredo e só os versos
rabiscados por ele, no caderno do sentimento, sabia daquele segredo. Foi voar
para o mundo, quando jovem, mas nunca perdeu a essência humilde da alma. De vez
em quando, durante suas meditações, um rouxinol, aproximava-se para cantar
melodias aos seus ouvidos. O gorjear dos pássaros, vinham lhe dizer que a vida era
bela.
De
cabeça baixa, viajando por tempos não desbravados, veio à lembrança de antigos
amigos e amigas das carteiras da escola. Por onde andavam aqueles que, sem
perceberem, desenharam parte da sua história? Em que mundos habitam hoje? Foram
abduzidos pela nave interplanetária do destino e levados para quais desterros?
Casaram, enviuvaram, divorciaram e tiveram filhos? Tornaram-se doutores,
policiais, fazendeiros, doutores, artistas, padres, empresários, videntes, loucos
ou santos? Sabia-se lá!
Havia tantas donzelas, que ele se
perdia em contemplação. Lembrava com saudade da filha do fazendeiro, do militar,
do médico, do industrial, do empresário, do gerente. Lembrava-se daquela donzela
de corpo escultural e da garota fofinha. Chamava atenção àquela que debruça nos
livros, a chamada CDF. Sorria sozinho, quando se lembrava do amigo que roubou
um beijo repentino da menina de nome comum. E aquela que, quando dava um saque
na bola, no jogo de voleibol, marcava mil pontos no seu coração. Quanta
saudade, meu Deus!
E por falar das missas na capela
da escola. Quando um padre cantor, de aparência sedutora/provocante e voz adocicada,
visitava a escola, causava um rebuliço danado. A diretora e professoras, todas religiosas – escondidas atrás
de seus “hábitos” – vestimentas apropriadas de mulheres reclusas-, assanhavam-se
todas. A tentação da carne era mais forte que a fé e o celibato. O espírito do
pecado ardia e era incontrolável. A professora de língua portuguesa, organizando
as festas juninas, que davam à escola um brilho inesquecível.
Como se esquecer do amigo,
aspirante a ginecologista. Examinava as colegas na sala, nos intervalos de aula,
com medo de ser flagrado e sob a vigilância e cumplicidade das demais. Assim,
ele dava os primeiros passos, com vistas à sexualidade. É justo lembrar-se do “primo
pobre”, filho de caminhoneiro, que só era lembrado nas atividades extracurriculares
e que, para estudar, contou com a benevolência da direção, inclusive, daquela
madre assanhada, lembra? Um dia, seriam diplomados e entregues a um mundo
desconhecido. Tudo aquilo seria passado. E passado é passado!
Depois de longas horas, perdido em
pensamentos diversos, Philadelpho nem percebeu que a lua já batia à porta da
noite. Então, acordou de um sonho lindo e prazeroso. Notou que os bichos já haviam
se recolhido em seus aposentos. Não queria despertar, mas era preciso. Pairava
um silêncio entediante. Nada era eterno e foi preciso acordar para a realidade fria
daquele momento presente. Quem sabe amanhã, novamente dormitaria no colo das
doces recordações, de um tempo que não voltaria mais.
Entristecido, deu uma forte cuspida
amarelada de lado, resto da saliva daquele cigarro fedorento. Apagou a bituca
com a sola da alpercata. Recolheu a xícara e a cabaça, mas, antes porém, jogou
o resto de cachaça para o santo (superstição de boteco). Desligou o radinho de
pilha, com uma música sertaneja cantada pela metade. Estava tão angustiado, que
nem degustou as quietudes de dona Jorgina.
Ali sentado no toco de uma árvore,
embaixo do pé de paineira, viajou por tempos dourados e resgatou em sua
memória, desgastada pelos anos, velhas histórias e valiosos amigos e amigas,
que se perderam pelo mundo afora. Rezou uma prece: “Nossa Senhora Auxiliadora, Madre
de Dios, rogai por nós!”.
Apagou a luz da lua e foi dormir o
sono dos justos!
Peruíbe SP, 15
de março de 2020.
2 comentários:
Que lindo Adão. Me trouxe lembranças de minha infância na fazenda que meu avô era administrador. Adorei!
Lindo demais Adão. Fiquei com muitas lembranças de meu avô,parabéns palavras lindas 👏👏👏👏
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