Adão de Souza
Ribeiro
Manhã de domingo. Irradiante de felicidade e
com uma paz enorme no coração, apanhei a Bíblia e o rosário, rumando para a
igreja matriz. Eu embriagado de tanta felicidade, nada percebi ao longo do
caminho. “Salve rainha, mãe de misericórdia... Pai nosso, que estais no céu...
Ave Maria, cheia de graça...”, assim mentalizava as orações repetitivas
e maçantes do ritual litúrgico. Aos domingos, tinha por costume, esquecer as
mazelas da vida. Já não bastavam as atribulações da semana? Embora criança, eu
aprendi no catecismo, dar a Cesar o que é de Cesar e a Cristo o que é de Cristo.
Mas ao subir nas escadarias, vi que a porta
estava trancada. Será que cheguei atrasado ou fui excluído da homilia? Se não
cometi heresia, então por que tal penitência? Dei uma volta em torno da santa
igreja e tudo fechado. O sino preso à torre de madeira estava estático; o
badalo tão cantante, inerte. O alto-falante, que anunciava os atos episcopais e
os féretros, estava triste e mudo. No céu de brigadeiro, nenhuma andorinha com
sua coreografia divinal.
Foi nesse momento, que dei conta da cidade
deserta, enlouqueci. Olhei ao derredor e me deparei com um silêncio
estonteante. Nada acontecia, como que se um vendaval tivesse varrido do mapa, a
vida bucólica da minha cidade. Por onde andavam as pessoas, os animais, a
correria do dia-a-dia, o perfume das flores, o bailar das árvores, os seios
fartos debruçados na janela, a canção alegre do rio, os beijos enamorados... Por
onde andava a minha cidade?
Perdido dentro de mim, eu percorri as ruas
descalças e as esquinas mudas. Procurei pelas pessoas da minha infância e não
estavam lá. O padeiro Onofre solou a massa. O leiteiro João derramou o leite da
vida. O delegado Orlando, encarcerou a última esperança. O médico Sheizu, não
tinha receita para o desânimo. A professora Almada, fechou a página da cartilha
“Caminho Suave”. Procurei por mim e não me encontrei. A minha cidade era um
quadro opaco, pendurado na parede da infância distante.
A quem recorrer, para saber o que estava
acontecendo, se não tinha uma viva alma perambulando pelas ruas? Teriam as
pessoas sido abduzidas e levadas para o desterro do desconhecido? Uma cidade
encantadora, não podia padecer de tamanha amargura e injustiça. Se eu
encontrasse o alcaide ou o delegado, cobraria providências. Mas ao padre,
pediria que exorcizasse a solidão do meu povo. Pediria ao médico que curasse a inércia
de que deveria lutar pelo bem comum.
Por um momento, sentei-me no meio-fio e
chorei longamente. Tal qual uma criança abandonada pelos pais, solucei. Não
podia compreender como tudo aconteceu tão repentinamente e sem uma explicação plausível.
Por um momento, senti-me órfão da vida e de mim, inseguro. As flores inodoras,
o vento invisível, as casas fechadas dentro de si, os quintais vazios das
traquinagens infantis, as ruas em passos lentos, os bares sem o tintilar dos
copos, davam a exata dimensão da minha tristeza. E seu eu rezasse? E se eu
clamasse aos céus? E se eu me indignasse? Isso resolveria? De quem era a culpa
de tamanha ignominia levantada contra meu povo?
Ao recobrar-me do choro e depois de secar as
lágrimas, respirei fundo e me recompus. Precisava buscar uma resposta para
entender o porquê da minha cidade deserta. Não sei de onde viria a voz da
verdade, já que nenhuma autoridade constituída estava presente. Embora estivesse
na tenra idade, eu tinha o direito de redescobrir a beleza minha cidade e a
alegria do meu povo. A minha inquietação e revolta haveria de ter resultados
surpreendentes. Não nasci para aceitar com passividade o que não conseguia
compreender.
Embora pequena, minha cidade tinha uma
rotina. E era isso que dava vida e impulsionava as pessoas para o futuro, com
planos sólidos e serenos. Mas deserta, daquele jeito que eu via, sem sangue em
suas artérias, entristeceu-me. Tinha violência? Nada que causasse trauma ou
polêmica, basta ver aquela cadeia sempre vazia e o delegado tomando um gole de cachaça
no “Bar do Aname”. Um ladrão de galinha, uma briga de comadres, um acidente de
charrete, um marido enciumado, nada mais.
Ainda ali no meio-fio, abri a Bíblia, danei a
rezar e a invocar a santidade do padre Antônio. O silêncio ecoava pelos quatro
cantos e me torturava. Queria uma resposta e não tinha. Por que levaram a alma
da minha cidade, arrebentaram seu coração e sucumbiu o brilho de seus olhos?
Queria de volta o sangue da alegria, que pulsava em suas artérias, pois esse
era o meu direito, como filho dela. Ninguém tinha o direito de calar a sua voz
e empalidecer o seu encanto.
Foi então que percebi, num momento de lucidez
e desprovido de emoção, que a minha cidade parou, não por desígnio de Deus;
mas, sim, num toque de recolher, imposto pelo crime organizado.
Peruíbe SP, 16
de março de 2020.
Um comentário:
Mais uma vez imprecionante, parabéns.
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