terça-feira, 14 de abril de 2020

MONARQUIA ENLOUQUECIDA


Adão de Souza Ribeiro

                        Tenho procurado privar-me de fortes emoções. Ando tomando chá de camomila com erva cidreira, maracujá e outras tantas bebidas calmantes, conforme orientações médicas e, principalmente, por recomendações da minha santa vovozinha. Já não leio rotineiramente o matutino, para não me injuriar com as notícias de violência e da política nojenta que assola minha nação.
                        De vez em quando, procuro alento na natureza, na vida bucólica da minha terra natal. Converso longamente com as plantas e imito o canto suave das aves. Fujo de tudo que fere os meus ouvidos e violenta a minha paz de espírito. Já não tenho paciência com muitas coisas, penso que é da idade. Recolho-me dentro de mim, para fugir daquilo que me dá fadiga. Há tempos que não escrevo cartas, não visito parentes e não vou à missa.
                        Tomo um livro à mão e me embriago na leitura de grandes escritores e pensadores. E assim, além de alimentar o conhecimento, busco viajar num mundo intocável da leitura. Navego por galáxias e mundos imaginados pelos autores. De vez em quando, identifico-me com personagens ou lugares paradisíacos. Os bons livros tem esse dom de nos tirar da mesmice do dia-a-dia e de nos afastar de personas non gratas.
                        Sei que pessoas ao meu derredor, não me veem com bons olhos. Acham-me sisudo e arrogante. Traçam o meu perfil de forma errônea. Não ligo e não dou a mínima para isso. Procuro entender com paciência as pessoas desavisadas a meu respeito. O que me importa, na realidade, é o que eu sinto e penso sobre o mundo à minha volta e as coisas que incomodam o meu coração e flagela o meu espírito.
                        Outro dia, ou melhor, numa noite dessas, saí por aí, a fim de quebrar essa minha rotina de quase um ermitão, não de misógino. Depois de caminhar horas a esmo, por ruas e labirintos, com a mente voltada para o nada, acabei por desembocar-me numa praça movimentada. Lá estava sendo realizado um show artístico de uma banda musical. O vocalista, já de meia idade, além de não falar coisa com coisa, entoava canções inteligíveis. Parece que estava sob o efeito da erva do diabo, da erva maldita.
                        Tudo ali me causava estranheza. O grito das pessoas, misturado com uma dança desconsertada, que mais parecia à dança da chuva, feita por aborígenes, incomodava meus ouvidos. Enquanto o show de quinta categoria se desenvolvia, todo tipo de bebida e entorpecente, rolava de mão em mão. Era a visão clássica de Sodoma e Gomorra. Mas, para os que se deleitavam com a contracultura, aquilo era o Éden, onde tudo era permitido.  
                        Mas o que me chamou a atenção foi perceber entre a multidão, a presença disfarçada de Vossa Majestade, acompanhada de seu consorte, o Conde Tupiniquim. Notava-se isso, sem muito esforço, além dos asseclas, o Serviço Secreto infiltrado entre o povo. A bem da verdade havia mais bajuladores do que o corpo de segurança. Por muito tempo, fiquei observando de longe, aquela cena dantesca. Tive que respirar fundo, para evitar emoções fortes e poupar meu coração. Lembrei-me das recomendações médicas e dos cuidados seculares de minha santa vovozinha.
                        Não queria crer que aquilo fosse verdade. Como pode Vossa Majestade, que tinha asco ao cheiro de povo, estar ali no meio daquela multidão? Havia, além do cheiro do povo, o cheiro insuportável da cannabis sativa l, vulgarmente conhecida por maconha. Quem foi o irresponsável do Palácio Caiçara, que permitiu a exposição pública da Monarca, num local pecaminoso daquele? Eu enforcaria em praça pública, o chefe da Guarda Real e/ou o Ajudante de Ordens, se os visse por ali. O que me confortou por alguns momentos, foi o fato de que o povo não a reconhecera, em razão do seu disfarce de plebeia. Aos poucos, meu coração foi contido e pude respirar de forma aliviada.
                        Como o primeiro escalão do reino é intocável, não pude aproximar-se da Rainha e nem de seus Ministros mais próximos. Assim, de longe, vai a minha manifestação de repúdio ao Ministro do Turismo e ao Ministro da Cultura. Não queiram, eles e nem o Primeiro Ministro, subestimar a inteligência do povo. Quando quiserem embriagar o povo com espetáculos, que embriaguem com bebidas de primeira classe e não cachaça de quinta categoria.
                        Assim, nem a Rainha Caiçara e nem o povo sofrido, serão expostos ao ridículo. Não queiram eles, enlouquecer a Monarquia e, muito menos, Vossa Majestade Real.

Peruíbe SP, 14 de abril de 2020.

Um comentário:

Unknown disse...

No início é ressaltada a sabedoria de quem vive bastante tempo. A seguir, notei um erro de digitação, pois foi dito que as letras eram inteligíveis quando se desejava dizer ininteligíveis.Depois discorre sobre o ridículo do poder.