Adão de Souza
Ribeiro
Tenho procurado privar-me de fortes emoções.
Ando tomando chá de camomila com erva cidreira, maracujá e outras tantas
bebidas calmantes, conforme orientações médicas e, principalmente, por recomendações
da minha santa vovozinha. Já não leio rotineiramente o matutino, para não me
injuriar com as notícias de violência e da política nojenta que assola minha
nação.
De vez em quando, procuro alento na natureza,
na vida bucólica da minha terra natal. Converso longamente com as plantas e
imito o canto suave das aves. Fujo de tudo que fere os meus ouvidos e violenta
a minha paz de espírito. Já não tenho paciência com muitas coisas, penso que é
da idade. Recolho-me dentro de mim, para fugir daquilo que me dá fadiga. Há
tempos que não escrevo cartas, não visito parentes e não vou à missa.
Tomo um livro à mão e me embriago na leitura
de grandes escritores e pensadores. E assim, além de alimentar o conhecimento,
busco viajar num mundo intocável da leitura. Navego por galáxias e mundos
imaginados pelos autores. De vez em quando, identifico-me com personagens ou
lugares paradisíacos. Os bons livros tem esse dom de nos tirar da mesmice do
dia-a-dia e de nos afastar de personas
non gratas.
Sei que pessoas ao meu derredor, não me veem
com bons olhos. Acham-me sisudo e arrogante. Traçam o meu perfil de forma
errônea. Não ligo e não dou a mínima para isso. Procuro entender com paciência
as pessoas desavisadas a meu respeito. O que me importa, na realidade, é o que
eu sinto e penso sobre o mundo à minha volta e as coisas que incomodam o meu
coração e flagela o meu espírito.
Outro dia, ou melhor, numa noite dessas, saí
por aí, a fim de quebrar essa minha rotina de quase um ermitão, não de
misógino. Depois de caminhar horas a esmo, por ruas e labirintos, com a mente
voltada para o nada, acabei por desembocar-me numa praça movimentada. Lá estava
sendo realizado um show artístico de uma banda musical. O vocalista, já de meia
idade, além de não falar coisa com coisa, entoava canções inteligíveis. Parece
que estava sob o efeito da erva do diabo, da erva maldita.
Tudo ali me causava estranheza. O grito das
pessoas, misturado com uma dança desconsertada, que mais parecia à dança da
chuva, feita por aborígenes, incomodava meus ouvidos. Enquanto o show de quinta
categoria se desenvolvia, todo tipo de bebida e entorpecente, rolava de mão em
mão. Era a visão clássica de Sodoma e Gomorra. Mas, para os que se deleitavam
com a contracultura, aquilo era o Éden, onde tudo era permitido.
Mas o que me chamou a atenção foi perceber
entre a multidão, a presença disfarçada de Vossa Majestade, acompanhada de seu
consorte, o Conde Tupiniquim. Notava-se isso, sem muito esforço, além dos
asseclas, o Serviço Secreto infiltrado entre o povo. A bem da verdade havia
mais bajuladores do que o corpo de segurança. Por muito tempo, fiquei observando
de longe, aquela cena dantesca. Tive que respirar fundo, para evitar emoções
fortes e poupar meu coração. Lembrei-me das recomendações médicas e dos
cuidados seculares de minha santa vovozinha.
Não queria crer que aquilo fosse verdade.
Como pode Vossa Majestade, que tinha asco ao cheiro de povo, estar ali no meio
daquela multidão? Havia, além do cheiro do povo, o cheiro insuportável da cannabis sativa l, vulgarmente conhecida
por maconha. Quem foi o irresponsável do Palácio Caiçara, que permitiu a
exposição pública da Monarca, num local pecaminoso daquele? Eu enforcaria em praça
pública, o chefe da Guarda Real e/ou o Ajudante de Ordens, se os visse por ali.
O que me confortou por alguns momentos, foi o fato de que o povo não a
reconhecera, em razão do seu disfarce de plebeia. Aos poucos, meu coração foi
contido e pude respirar de forma aliviada.
Como o primeiro escalão do reino é intocável,
não pude aproximar-se da Rainha e nem de seus Ministros mais próximos. Assim,
de longe, vai a minha manifestação de repúdio ao Ministro do Turismo e ao
Ministro da Cultura. Não queiram, eles e nem o Primeiro Ministro, subestimar a
inteligência do povo. Quando quiserem embriagar o povo com espetáculos, que embriaguem
com bebidas de primeira classe e não cachaça de quinta categoria.
Assim, nem a Rainha Caiçara e nem o povo
sofrido, serão expostos ao ridículo. Não queiram eles, enlouquecer a Monarquia
e, muito menos, Vossa Majestade Real.
Peruíbe SP, 14
de abril de 2020.
Um comentário:
No início é ressaltada a sabedoria de quem vive bastante tempo. A seguir, notei um erro de digitação, pois foi dito que as letras eram inteligíveis quando se desejava dizer ininteligíveis.Depois discorre sobre o ridículo do poder.
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