domingo, 23 de junho de 2019

A MALDIÇÃO DAS PEDRAS

Adão de Souza Ribeiro

                                   Bastavam um bocejar prolongado, ou então, fortes dores na boca do estômago, nas costas e nas pernas, além de um cansaço anormal, a mãe corria para casa de dona Lili, em busca de socorro. Lá no canto de reza, aquela senhora som seus oitenta anos e a mais respeitada benzedeira do lugar, logo dizia: “Esse meninu tá com mau oiado” ou “Essa moça tem espinhela caída”. Pessoa sem leitura e simples no falar, era de uma sabedoria invejável. Procurada pelos grã-finos e pelos pobres, pelos letrados e pelos analfabetos, pelos religiosos e pelos ateus, tratava-os com carinho e sem distinção. Após longas rezas, usando todo tipo de ramo de ervas da nossa flora, tais como de arruda, alecrim, hortelã, mastruz, ensinava algumas simpatias a serem feitas em casa. Certo é que os doentes saiam dali, aliviados e com a certeza da cura.
                                   Só quem conviveu num universo de tradições milenares, de rituais simples de fé e de respeito incondicional ao desconhecido, saberá compreender as manifestações da natureza e do comportamento humano. Sempre temi o que transcende o imaginário e, por isso, jamais subestimei as forças do metafísico. Desafiar o que não se compreende, para mim, não passa de besta loucura. Quando nossa mãe buscava afugentar nossos males e nossas dores, nas orações e simpatias de dona Lili, eu curvava a cabeça em sinal de respeito. Como bom observador que sempre fui, não perdia um detalhe de seus rituais sagrados e de suas mansas palavras de conselho.
                                   Em noites de tempestade, nossa mãe agarrava a rezar e a lançar os ramos sagrados, adquiridos na missa de domingo de ramos, para acalmar tormenta. E, aos poucos, eu percebia que a natureza obedecia ao clamor dela e a noite ia dormir em paz. É nesse clima, que fui criado, isto é, de amor e respeito ao desconhecido. Nunca zombei da fé e é, por isso, creio que todas as religiões são sagradas, porque Deus é um só. Muitas vezes, acontecem coisas inexplicáveis, para entendermos o poder Dele, representado pelas manifestações da natureza.
                                   Isso foi fundamental para que eu compreendesse o que, por força do destino, ocorreria anos depois, na terra onde nasci. Certa feita, estando á cidade numa calmaria de fazer inveja aos grandes centros urbanos, algo aconteceu de forma inesperada, que ficou marcado para sempre na memória de seu povo. Defronte a minha casa, havia um hotel, mais conhecido como pensão. De poucos clientes, composta de vários quartos, uma sala de almoço e jantar, uma cozinha e uma recepção. Chão de madeira, impecavelmente lustrado com vermelhão; janelas e portas antigas, de madeira envelhecida; luzes opacas, pelos corredores; estacionamento lateral, de terra batida; alguns quartos ao fundo, separados da casa principal; um quintal, com pés de fruta, um tanque de lavar roupa e um longo varal, para estendê-las.
                                   Numa madrugada fria de inverno e ao som da canção do vento, surgiu um barulho estranho de algo batendo no telhado, nas paredes e nas janelas. Assemelhava-se a som de granizo, mas não chovia. E, aos poucos, foi aumentando até que os donos saíram para verificar. Perceberam que eram pedras vindas do céu e de todas as direções. Apavorados, num primeiro momento, tiveram a impressão que elas também brotavam da terra e eram lançadas contra o imóvel. Não demorou muito para que a vizinhança se juntasse a eles, numa contemplação aterrorizante e hipnotizante. Quando o dia amanheceu, já havia uma dezena de curiosos e dava-se início às especulações. Todos os “ólogos de plantão”, isto é, bisbilhoteiros ficaram a postos com suas teorias mais absurdas.
                                   Numa cidade que nada acontecia, a não serem as fofocas de comadre, brigas de botecos e cheiro de chifre queimado, aquilo virou notícia e ultrapassou fronteiras. Às vezes cessava por algumas horas e voltava com maior intensidade. Pedras de todos os tamanhos e sem GPS, atingiam não só a pensão, mas, também, as casas circunvizinhas. Nos dias que se seguiram, não se falava em outra coisa, a não serem as pedras da pensão. A cidade literalmente parou e estagnou o comércio.  As crianças, sem maldade, apostavam quando cairia à próxima.
                                   Uns diziam que era maldição, porque um pensionista se suicidara num dos quartos. Outros diziam que era castigo, pois o dono de outras épocas era ateu e não acreditava no Divino Criador. Outros ainda, sem prova alguma, diziam que era por conta de ritos macabros, realizados ali por clientes forasteiros. Especulações, apenas especulações. Sei que um morador, que arrotava valentia, disse que se fosse fantasma ele iria encarar. Foi e quebrou a cara. Saiu dali borrado pelas calças, depois de tanta pedrada que levou no quengo. Nunca mais ousou bulir com o desconhecido.
                                   Eu que morava defronte, não demorou muito, vi chegar jornalistas da imprensa escrita, falada e televisada de todas as partes do planeta. Li, porque já era alfabetizado, que tinha até imprensa internacional, tais como, a BBC de Londres, a CNN de Estados Unidos, TV5 Monde da França, ZDF da Alemanha, NHK World, do Japão e por ai se vai. Além de toda a imprensa, chegaram estudiosos de parapsicologia, ufologia, exorcismo, espíritas, católicos, evangélicos, umbandistas e até dona Lili, nossa querida e respeitada benzedeira. Foi com a chegada dela, que percebi que a coisa era séria e muito séria, com certeza. Nela eu confiava, porque a humilde sabedoria superava a de todos ali.
                                   Engraçado como as pessoas veem oportunidade em tudo e transformam fatos em lucros. Aos poucos, notei que além da imprensa, foi se achegando ali, vendedores de guloseimas, quinquilharias, lembrancinhas com o nome da cidade. Um escultor pensou numa estátua, um violeiro numa canção, um escritor num poema de cordel, uma pintora num quadro surreal, tudo para registrar e imortalizar o acontecido. Já o delegado pediu reforço policial, tamanho o tanto de gente e caravanas que aportavam. O alcaide convocou o secretário do tesouro, pensando em calcular os novos impostos do comércio, o qual aumentara sobremaneira, inclusive, a clientela da dita pensão. O vigário octogenário ministrava missas a cada duas horas, como eram feitas na “Santa Sé”. A pensão parecia até a catedral nacional da padroeira. Teve até quem guardou amostra das pedras como amuleto, na esperança de milagres futuros.
                                   Em meio àquela balburdia, assim como minha mãe, corri até a casa de dona Lili. Por entender que a cidade estava doente e precisava de uma intervenção espiritual, fui buscar socorro em quem eu acreditava e sabia que tinha permissão divina para resolver tudo aquilo. Isso já fazia para mais de uns seis meses, que a cidade não dormia, diante de tamanho tormento. Os rituais de curandeirismo, realizados pelos forasteiros, de nada resolvera. Dona Lili sabia o caminho das pedras, não daquelas que caiam intermitentemente, mas o caminho das pedras (soluções).
                                   Depois que ela fez uma oração e um benzimento, num ritual de muita fé, foi batata. No dia seguinte as pedras se recolheram no seu ventre de origem. Até hoje, ninguém entende como tudo acabou. Guardo aquele segredo comigo, debaixo de sete pedras, ou melhor, debaixo de sete chaves. Amém!            

Peruíbe SP, 23 de junho de 2019.       

Um comentário:

Unknown disse...

História incrível,nela se relata o poder da fé.