domingo, 3 de maio de 2020

ALIENÍGENA ALIENADO


Adão de Souza Ribeiro

                        Lá estava eu, numa manhã preguiçosa de domingo, sentado numa cadeira de balanço, na varanda da tapera, isso no “Sítio Paraíso”, encravado bem nos cafundós do Judas, nas bandas do Bairro Bondade. Do lado, um copo de cangibrina e um cigarro de palha, preso no beiço. Depois de tantas semanas sofridas cuidando da lavoura e dos animais, numa loucura desembestada para sobreviver, era preciso relaxar um pouco e esquecer-se das amarguras sem fim. Todo roceiro tem seu momento de lazer. Por isso, pernas para cima, que eu não era de ferro.
                        Ali da varanda, podia divisar as terras férteis, que caminhavam tranquilamente, até se perderem na linha do horizonte, onde céu parava para descansar. Os olhos deleitavam de prazer, em observar o bailar de pássaros com suas plumagens exuberantes e seus cantos inebriantes. Os ouvidos afiados ouviam muito atentos, a sinfonia e as notas musicais das cachoeiras, que gemiam ao tocarem as rochas centenárias ao pé do morro. A mente, entorpecida pela cangibrina, cochilava no ombro da acolhedora manhã preguiçosa de domingo.
                        Só quem viveu e conviveu com aquela vida campesina, sabe bem do que estou falando. Duque, o meu cachorro magricelo e carrapento, deitado perto da soleira da porta, estava sempre pronto para correr atrás de um preá ou de um calango distraído. Os ventos de noroeste convidavam os bambuzais a dançarem a coreografia da sedutora natureza. Entre um gole e outra da tal cangibrina e uma longa pitada no cigarro de fumo de corda, feito com palha de milho, os pensamentos viajavam por galáxias dantes navegadas.
                        Pafúncia, uma mulher de seios fatos e ancas apetitosas, com quem eu me engracei ainda na juventude e, portanto, com quem caí na besteira de contrair matrimônio, coava um café de torrador, numa mariquinha em cima do fogão a lenha. Sabia que não tardaria e ela traria uma xícara acompanhada de um prato de cuscuz com carne seca. Ali naquela cadeira de balanço, talhada em cipó, não queria pensar em nada. De madrugada, Pafúncia convidara-me para um chamego e não tive como recusar, é claro! As tensões dos dias anteriores, ela soube dissipar com maestria. Preocupações, para que? Concorda? Duque, com sua esperteza canina, fazia de conta que estava dormindo. Para defender seu dono, sacrificava a própria vida, creio.
                        Num momento inesperado, enquanto os olhos fitavam as galinhas ciscarem no terreiro, em busca de minhocas, insetos e sementes, para saciarem uma fome interminável, senti que algo estranho estava acontecendo. Sei que Pafúncia entretida com os afazeres domésticos, não se dera conta do que ocorria do lado de fora da tapera. E eu ali, entregue aquela surpresa inesperada. Do nada, as galinhas correram, abandonando as minhocas da última ciscada. Os pássaros, como num toque de mágica, embrenharam-se no mato. Uma cascavel enfiou-se no buraco, deixando o guizo de fora. Até o Duque, meu cão de guarda, escafedeu-se para onde não sei.
                        Do nada, vi que na cerca de arame farpado, enrolada com melão-de-são caetano e arranha gato, surgiu uma Coisa meio esquisita, vindo em minha direção. Por ser uma manhã preguiçosa de domingo e estar relaxado, encontrava-me desarmado. Como sou um caboclo arretado e não um borra-botas, não tremi e esperei a aproximação.
                        A tal Coisa, tinha cerca de um metro de altura; magricela; andar desengonçado; dedos alongados, tanto das mãos quanto dos pés; cabeça muito oval; queixo afilado, olhos esbugalhados; lábios pequenos e desproporcionais ao tamanho do rosto; pescoço fino de seriema; a bunda não tinha, parecia Chiquinha, minha vizinha. Assustado, pensei: “Meu Deus, que cabrunco era aquilo?”. Fiz cara de bravo, para demonstrar falta de intimidade. Não sabia de que buraco tinha saído e porque estava ali na minha propriedade, o “Sítio Paraíso”.
                        Já próximo de mim, fiz sinal para que parasse, a fim de que eu pudesse me defender, caso houvesse um ataque. Estava pelado, mas podia estar armado e, por isso, não era bom descuidar. Eu era cismado com algo desconhecido. A Coisa parou e encarou-me por um longo tempo. Depois começou a conversar comigo, numa linguagem não muito inteligível, parecendo uma mistura de japonês com índio. Queria saber onde estava, pois havia sido enviado em missão diplomática, vindo de outro mundo. Segundo os seus superiores, o nosso planeta estava passando por uma transformação dolorosa e eu precisava ser resgatado, ou melhor, abduzido. Não sabia o que era “abduzido”, por isso, recusei de pronto o tal convite.
                        Será que dos cafundós de onde ele veio, havia formadores de opinião ou canais de televisão, que praticavam terrorismo na mente das Coisas (pessoas)?”, pensei comigo. Como ele chegou ali? Foi quando notei, que bem distante, entre os pinheirais, pousara um objeto grande e luminoso, em forma de prato de sopa, estacionado e cercado por Coisas iguais a ele. Confesso que por um instante, tremi na base. Não demonstrei medo, porque sou um caboclo arretado e não um borra-botas. Confesso que a prosa entre mim e ele durou alguns minutos ou segundos talvez. Foi por isso, que Pafúncia não percebeu e Duque, meu cão de guarda, nem deu tempo de se refazer do susto.
                        Lembro-me vagamente que a Coisa tentou convencer-me de que a terra seria implodida e que, antes da tragédia se consumar, uma praga terrível, como uma das que atacaram o Egito, ceifaria quase toda a população humana. Aquilo iria acontecer, segundo a Coisa, porque o povo terráqueo não obedeceu às ordens de seus mandatários. Uma das determinações era para ficarem recolhidos em seus casebres, por um longo período, enquanto eles implantariam uma nova ordem mundial. Por ser um caboclo xucro e não letrado, nada entendi das baboseiras ditas por ele. Nasci e vivi naquele mundo tranquilo, onde eu obedecia apenas os ditames da mãe natureza. O que acontecia do outro lado da porteira do “Sítio Paraíso”, não me dizia respeito.
                        Ouvia com atenção, porque não tinha por costume ser malcriado, nem mesmo com aquela Coisa, que nunca vi nem mais gorda e nem mais magra. Bati o pé e disse que não iria com ele. Ponderei que tinha que cuidar de Pafúncia, minha esposa de seios fartos e ancas apetitosas, do Duque, meu cachorro magricelo e carrapento, também, das plantações e dos animais. Para não ser grosseiro, pedi que fosse embora e que se quisesse, podia voltar outra hora para prosearmos. À bem da verdade, não queria que voltasse nunca mais.
                        A Coisa lacrimejou, fez cara de tristeza e saiu cambaleando, com seu jeito desengonçado, em direção ao pinheiral. Ainda entorpecido pela cena que presenciei, fixei minhas vistas para aquela direção e pude testemunhar a Coisa embarcando naquele avião, ou melhor, Prato de Sopa todo iluminado e tomando rumo do desconhecido. Para mim, parecia um puxa saco, um pau mandado, um Maria-vai-com-as-outras. Um alienado, isso era o que ele era.
                        Assim que a Coisa escafedeu-se no horizonte, gritei: “Pafúncia, cadê o meu café com cuscuz?”. Nisso o Duque, meu cachorro magricelo e carrapento, meu valente cão de guarda latiu lá bem debaixo da cama: “Espera que Pafúncia já vai!”.
                        Depois que tomei o café com cuscuz, senti que a natureza voltou a conspirar em meu favor. Ainda bem que só eu sei da história do alienígena alienado.

Peruíbe SP, 03 de maio de 2020.