quinta-feira, 21 de maio de 2020

PITOCO, O PENSADOR


Adão de Souza Ribeiro

                   Meu nome é Pitoco. Sou da raça canina, mas de classe social pobre. Por ser ralé, chamam-me de “vira-lata” ou modernamente de “fura-saco”. Não me abalo pelos estereótipos, nos quais me matriculam. É bom que se diga que, “vira-lata” é fruto de uma miscigenação de raças. Num país onde não se tem uma raça humana pura; no mundo animal, não haveria de ser diferente. Como medir um cachorro pelo formato do focinho, aparência do pelo ou da beleza da cauda. Concordam?
                   Ao pesquisar minha genealogia e meus antepassados, descobri que do lado paterno sou da raça bull terrier e que, do materno, sou da raça pastor de shetland. No seio da família, conta à lenda que meu bisavô materno, de nome Serguei, era um lord do Império Czarista e que minha bisavó paterna, de nome Mayla, era arquiduquesa do Império Austríaco. Vê-se, portanto, que embora um vira-la, na minha veia, corre sangue nobre.
                   É sabido que a vida de cão não é fácil. Vigiar a casa, enquanto os donos dormem o sono dos anjos; comer as sobras do almoço, colocadas num pote sujo e fétido; dormir na varanda destelhada, em noites de chuva e frio; lutar contra as pulgas e carrapatos, numa coceira interminável; latir até perder a voz, para afugentar as visitas indesejáveis, não é para qualquer um. Por isso é que vivo cãosado dessa vida canina.
                   Vivo preso nesse corpo que não é meu. Queria ter nascido um leão, pois tenho sonho de ser rei dos animais. Ou então, o sabiá-laranjeira, de coloração simples e canto e melodioso, para representar minha pátria amada. De verdade, se pudesse escolher, sem medo de ser feliz, queria ser um falcão- peregrino, para fugir das mesmices do dia a dia, numa velocidade descomunal, como num toque de mágica. Dói só de pensar que serei um cachorro até morrer. E o que é pior, eu morro de raiva em pensar que minha sina é latir incansavelmente. Um vira-lata, pasmem!
                   Não queria ter vindo nessa terra. Poderia ter nascido noutro planeta ou galáxia e estaria livre de tudo isso. Não passaria fome e nem sofreria chacotas, sendo chamado de magricelo ou pestilento. Chute na bunda dói e como dói! Se eu durmo o dia inteiro, para fica atento à noite, levo chute e sou chamado de preguiçoso. Se lato á noite, para proteger os donos, contra os espectros da escuridão, levo chutes e gritam: “Vai dormir, lazarento!”. A vida de cão não é fácil.
                   Quando Serafim e Filomena, um lindo casal e meus donos desde a infância, saem para passear comigo pela praça, para que eu possa desestressar ou dar minhas “cagadas” e mijadas matutinas, prendem-me a uma coleira, mas sem focinheira. Quanto à coleira, nunca questionei, pois sei que sou meio levado. Posso correr, porque está no meu DNA e me perder pelas ruas do bairro. Até penso que fazem por amor e que não conseguem ficar longe de mim. Até sinto-me lisonjeado.
                   Nos meus desfiles matutinos, onde posso exibir certo charme e meu dom de conquista, eu percebo que outros canis lúpus familiaris, usam focinheira e enforcadores. Entristeceu-me ver aquilo, mas como não tenho voz ativa, apenas canina, nada pude fazer, para tirá-los daquela humilhação. Fiquei bem quieto, pois se latisse em sinal de protesto, poderia ser candidato a usar tais assessórios. Livrai-me desse mal e danei a rezar.
                   Quis saber a razão do uso da tal focinheira. Ao frequentar bibliotecas e sites de informação futurista, descobri que existem leis mundanas, ou melhor, humanas que determinam o uso daqueles assessórios, pois entendem que somos raças violentas e, portanto, de pouca amizade. Podemos atacar os seres humanos, uma vez que somos muito briguentos e antissociais. Quando não temos humanos para atacar, atacamos os nossos conterrâneos.
                   Dizem os humanos, que somos um mamífero carnívoro da família dos canídeos, uma subespécie da família dos lobos cinzentos, que surgiram há mais de cem mil anos no continente asiático, e talvez o mais antigo animal domesticado pelo ser humano. Também, que somos ferozes e vorazes, portanto, indomáveis. Então se somos tudo isso, a culpa é dos seres humanos e não nossa. Os humanos matam seres da mesma raça, diferente dos animais que só matam de outras raças e com o único desejo de saciar a fome. Revoltado, pensei: “Quem devia usar a focinheira eram eles!”.
                   Dia desses, ao fazer o passeio matutino para meu relaxamento corriqueiro, com minhas “cagadas” e mijadas de praxe, fiquei estupefato, ao ver meus donos e todos os seres humanos do planeta, fazendo uso de focinheira. Isso causou um rebuliço na mente. Serão que eles passaram a se atacar ferozmente e, por isso, leis humanas determinaram o uso constante de tal assessório? Creio que a partir de agora, em que pese o motivo, entenderão o desconforto e a humilhação de andarem com essa “tranqueira” para lá e para cá. Não tardará e serão obrigados a usarem coleira e enforcador, do modelo Fica em Casa.
                   Vão pagar tim tim por tim tim, todas as maldades que fizeram comigo e com meus conterrâneos. Cumprirão a pena de se sentirem sufocados com a focinheira e de não poderem demonstrar seus sentimentos através da expressão facial. Vão sentir na pele como é dura a clausura de ficarem presos em casa e usarem focinheira na rua. Hão de entender que vida de cão não é fácil não.
                   Melhor é eu parar de ficar pensando nisso, senão fico louco.

Peruíbe SP, 21 de maio de 2020.

3 comentários:

Unknown disse...

Muito legal, tem um tom espiritual tbm, texto maravilhoso...

Unknown disse...

Gostei muito.

Unknown disse...

Triste cruel e real !