Adão de Souza
Ribeiro
Meu nome é Pitoco. Sou da raça canina, mas de
classe social pobre. Por ser ralé, chamam-me de “vira-lata” ou modernamente de “fura-saco”.
Não me abalo pelos estereótipos, nos quais me matriculam. É bom que se diga que,
“vira-lata” é fruto de uma miscigenação de raças. Num país onde não se tem uma
raça humana pura; no mundo animal, não haveria de ser diferente. Como medir um
cachorro pelo formato do focinho, aparência do pelo ou da beleza da cauda. Concordam?
Ao pesquisar minha genealogia e meus antepassados,
descobri que do lado paterno sou da raça bull terrier e que, do materno,
sou da raça pastor de shetland. No seio da família, conta à lenda que
meu bisavô materno, de nome Serguei, era um lord do Império Czarista e que
minha bisavó paterna, de nome Mayla, era arquiduquesa do Império Austríaco.
Vê-se, portanto, que embora um vira-la, na minha veia, corre sangue nobre.
É sabido que a vida de cão não é fácil. Vigiar a
casa, enquanto os donos dormem o sono dos anjos; comer as sobras do almoço,
colocadas num pote sujo e fétido; dormir na varanda destelhada, em noites de
chuva e frio; lutar contra as pulgas e carrapatos, numa coceira interminável;
latir até perder a voz, para afugentar as visitas indesejáveis, não é para
qualquer um. Por isso é que vivo cãosado dessa vida canina.
Vivo preso nesse corpo que não é meu. Queria ter
nascido um leão, pois tenho sonho de ser rei dos animais. Ou então, o
sabiá-laranjeira, de coloração simples e canto e melodioso, para representar
minha pátria amada. De verdade, se pudesse escolher, sem medo de ser feliz,
queria ser um falcão- peregrino, para fugir das mesmices do dia a dia, numa
velocidade descomunal, como num toque de mágica. Dói só de pensar que serei um
cachorro até morrer. E o que é pior, eu morro de raiva em pensar que minha sina
é latir incansavelmente. Um vira-lata, pasmem!
Não queria ter vindo nessa terra. Poderia ter
nascido noutro planeta ou galáxia e estaria livre de tudo isso. Não passaria
fome e nem sofreria chacotas, sendo chamado de magricelo ou pestilento. Chute
na bunda dói e como dói! Se eu durmo o dia inteiro, para fica atento à noite,
levo chute e sou chamado de preguiçoso. Se lato á noite, para proteger os donos,
contra os espectros da escuridão, levo chutes e gritam: “Vai dormir, lazarento!”.
A vida de cão não é fácil.
Quando Serafim e Filomena, um lindo casal e meus
donos desde a infância, saem para passear comigo pela praça, para que eu possa
desestressar ou dar minhas “cagadas” e mijadas matutinas, prendem-me a uma
coleira, mas sem focinheira. Quanto à coleira, nunca questionei, pois sei que
sou meio levado. Posso correr, porque está no meu DNA e me perder pelas ruas do
bairro. Até penso que fazem por amor e que não conseguem ficar longe de mim. Até
sinto-me lisonjeado.
Nos meus desfiles matutinos, onde posso exibir certo
charme e meu dom de conquista, eu percebo que outros canis lúpus familiaris, usam focinheira e enforcadores. Entristeceu-me
ver aquilo, mas como não tenho voz ativa, apenas canina, nada pude fazer, para
tirá-los daquela humilhação. Fiquei bem quieto, pois se latisse em sinal de
protesto, poderia ser candidato a usar tais assessórios. Livrai-me desse mal e
danei a rezar.
Quis saber a razão do uso da tal focinheira. Ao
frequentar bibliotecas e sites de informação futurista, descobri que existem
leis mundanas, ou melhor, humanas que determinam o uso daqueles assessórios,
pois entendem que somos raças violentas e, portanto, de pouca amizade. Podemos
atacar os seres humanos, uma vez que somos muito briguentos e antissociais. Quando
não temos humanos para atacar, atacamos os nossos conterrâneos.
Dizem os humanos, que somos um mamífero carnívoro da
família dos canídeos, uma subespécie da família dos lobos cinzentos, que
surgiram há mais de cem mil anos no continente asiático, e talvez o mais antigo
animal domesticado pelo ser humano. Também, que somos ferozes e vorazes,
portanto, indomáveis. Então se somos tudo isso, a culpa é dos seres humanos e
não nossa. Os humanos matam seres da mesma raça, diferente dos animais que só
matam de outras raças e com o único desejo de saciar a fome. Revoltado, pensei:
“Quem
devia usar a focinheira eram eles!”.
Dia desses, ao fazer o passeio matutino para meu
relaxamento corriqueiro, com minhas “cagadas” e mijadas de praxe, fiquei
estupefato, ao ver meus donos e todos os seres humanos do planeta, fazendo uso de
focinheira. Isso causou um rebuliço na mente. Serão que eles passaram a se atacar
ferozmente e, por isso, leis humanas determinaram o uso constante de tal assessório?
Creio que a partir de agora, em que pese o motivo, entenderão o desconforto e a
humilhação de andarem com essa “tranqueira” para lá e para cá. Não tardará e
serão obrigados a usarem coleira e enforcador, do modelo Fica em Casa.
Vão pagar tim tim por tim tim, todas as maldades
que fizeram comigo e com meus conterrâneos. Cumprirão a pena de se sentirem
sufocados com a focinheira e de não poderem demonstrar seus sentimentos através
da expressão facial. Vão sentir na pele como é dura a clausura de ficarem presos
em casa e usarem focinheira na rua. Hão de entender que vida de cão não é fácil
não.
Melhor é eu parar de ficar pensando nisso, senão
fico louco.
Peruíbe SP, 21
de maio de 2020.
3 comentários:
Muito legal, tem um tom espiritual tbm, texto maravilhoso...
Gostei muito.
Triste cruel e real !
Postar um comentário