quinta-feira, 9 de setembro de 2021

FAROESTE CAIPIRA

 

                      Se tinha alguém fissurado em filme de faroeste, essa pessoa era eu. Todas as tardes, depois das aulas escolares, sentava na frente da televisão Telefunken e de lá não saia, nem mesmo com reza brava. Minha mãe, a mulher prendada e genitora amorosa, cuidava com esmero de seus deveres domésticos e eu ali, com os olhos grudados na telinha. “Moleque, vai dar milho para as galinhas.” E eu respondia sem desviar os olhos, porque não queria perder uma cena ou um lance: “Espera, já vou”.

                        Mesmo em preto e branco, eu viajava nas fantasias dos heróis. Aqueles, que protegiam a cidade e o povo, dos estranhos, que queriam tirar a paz do lugar. Imaginava junto com o Xerife e o mocinho, colocando ordem na cidade e os arruaceiros para correrem. Achava lindíssimo, o forasteiro chegar ao saloon e sem motivo algum, arranjar tamanha briga para, depois, enfrentar o mocinho e ser entregue ao Xerife.

                        A prova de que gostava de filme de faroeste, era que eu, meus irmãos e os amiguinhos, vestiam de mocinhos e bandidos, indo brincar no enorme quintal lá de casa. Fantasias à parte, a cidade era pacata até demais. Bastava ver, que a cela da cadeia vivia sempre vazia e criando teia de aranha.

                        Só se prendia cachaceiro e ele ficava ali, até curar a ressaca. Apenas um “cabeça seca” (policial) patrulhava a cidade. A Delegacia tinha-se apenas como peça decorativa, pois fechava para almoço e o delegado aparecia uma vez por mês, a fim de assinar o expediente, feito pelo escrivão.

                        À noite, o jardim da Praça Matriz era florido de eternos namorados apaixonados e as crianças brincavam até altas horas. Os muros das casas eram baixos e não se trancavam os portões frontais. No comércio, os clientes pagavam mensalmente e as despesas eram anotadas na caderneta. Havia um só Banco Financeiro e pelo fato do gerente conhecer pessoalmente todos os correntistas, não exigia avalista, para conceder o empréstimo. Enfim, pensa numa cidade pacata.

                        A vida copia a arte. Ou é ao contrário? Bem, sei lá. Ocorre que em meio à vida bucólica, a terrinha foi abalada com uma cena e penso poderia fazer parte do roteiro dos filmes, dos quais eu era vidrado. O acontecimento ficou encravado para sempre na minha memória. De vez em quando, transita pelo pensamento, como numa película de cinema. Não sei se meus conterrâneos se recordam do fato, que hora pretendo narrar.

                        Certa feita, já ao cair da tarde, num sábado onde o verdadeiro “Mercado Persa” era movimentado, um cidadão desconhecido, adentrou no armazém, que se localizava na esquina da Rua Rui Barbosa com a Rua Duque de Caxias, passando-se por freguês.

                        Por estar mal intencionado e armado, praticou o assalto. Aquele ato deixou aterrorizados os donos, funcionários e clientes. Após a empreitada criminosa, evadiu-se a pé, não sendo alcançado. Num lugar pacífico, onde nada acontecia de novo, aquilo virou comentário por semanas e semanas, causando revolta na população.

                        Então, formou-se um grupo, o qual prometeu vingança. “Aqui vagabundo não se cria”, vociferava “Mão de Onça” – de nome Godofredo da Silva, líder grupo. E raivoso completou: “Vamos pegá-lo, nem que seja a unha. Aquele sujeito vai receber um belo corretivo, para aprender e depois entregaremos para a polícia”.

                        Dito e feito. Passaram cerca de três meses do ocorrido e acreditando no esquecimento do povo, lá estava o larápio. Alguém alertou a volta dele e aquilo acendeu a chama da ira dos conterrâneos. Munidos de pedaços de paus, chicotes e peixeiras, a população e o grupo liderado por “Mão de Onça”, cercaram o armazém. Grito de morte ao forasteiro era o que mais se ouvia. “Crucifique-o, crucifique-o... crucifique-o”.

                        Não sei como, mas mesmo em meio aquele aparato de revoltosos, o malfeitor conseguiu fugir, em desabalada carreira. Ele subiu a Rua Rui Barbosa e adentrou à direita, na Rua Almirante Barroso, tomando rumo do cemitério. A população gritando e no seu encalço. Lembra-se do “Mão de Onça”? Pois é, montado em seu alazão, ganhou distância da população.

                        O fugitivo desesperado passou por dentro do campo santo, onde os que dormiam o sono eterno acordaram assustados. Não demorou muito, Godofredo da Silva, o nosso “Mão de Onça”, alcançou o dito cujo. Após imobilizá-lo, amarrou uma corda nos seus braços, em forma de algema.

                        De volta à cidade, desfilou com o ladrão por todas as ruas, exibindo-o como se fosse troféu. Na frente do armazém, sítio do crime, tomou uma baita surra de chicote, até quase desfalecer. Depois da reprimenda e muito humilhado, foi entregue ao Xerife (Delegado).

                        Aquela cena da fuga, da captura e do desfile pela cidade, preso a corda atada ao alazão do “Mão de Onça, transportou-me para dentro da telinha da televisão Telefunkem. Em preto e branco, lá eu dividi com meus heróis, o prazer de ver se fazer justiça. Na minha terra natal, também existia o “Faroeste Caipira”.

                        The end (O Fim).

 

Peruíbe SP, 08 de setembro de 2921.

 

 

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