quarta-feira, 20 de março de 2019

OS PECADOS DA CARNE

Adão de Souza Ribeiro

                                   Se tinha uma coisa, que ele não abria mão, era cumprir à risca os ditames da lei e, em especial, a divina. No lugarejo, ele era tido como pessoa de conduta inabalável e, por isso, todos o tomavam como referência. Seus conselhos e suas reprimendas, precedidos de carinho, levavam as pessoas a refletirem sobre o melhor caminho a ser seguido. O olhar carrancudo, porém, com jeito brincalhão, conquistava o amor e o respeito de todas os moradores, independentemente da idade. O sotaque suíço era uma de suas peculiaridades inesquecíveis.
                                   Um bonachão, por natureza. Gostava de conversar e cuidava de tudo e de todos à sua volta. Sem ele, parecia que aquele lugar não tinha vida. O espírito de liderança invejável fazia dele um agregador de almas e um festeiro animado.  Renunciou a si, para viver o mundo daquele povo que ele tanto amava. Viajou além-mar para visitar a família e foi apequenado. Voltou para cá e hoje dorme eternamente na terra a que serviu e que, por isso, o acolheu de braços abertos.
                                   Um homem de alma pura, espirito leve e coração do tamanho do universo, mas com suas fraquezas humanas. Não dispensava uma cerveja com dois amigos fiéis, escondido dos deveres canônicos. Longe do altar, gostava de contar e de ouvir piadas, fossem elas apimentadas ou não. Só faltava cair do assento de tanto rir. Conta à lenda, eternizada pelos mais antigos, que ele era um fofoqueiro de plantão, um leve e traz inveterado. As fofocas proferidas, não causavam danos irreversíveis às pessoas, tais como, divórcio ou briga de morte. Até nas homilias, escapava um diz que diz.
                                   Ele tinha um ciúme doentio daquilo que construía ou zelava. Quebrasse algo da igreja ou danificasse o jardim em derredor, virava uma fera indomável. O vigário cobrava das pessoas ou dos responsáveis, os reparos necessários. Em época de safra e de colheitas na lavoura, quer fosse de café, milho e etc, lá estava ele pedindo aos sitiantes, sacas para fazer dinheiro e manter as necessidades da paróquia. Saia pelos sítios e fazendas, recolhendo as doações. Talvez fosse por isso que tinha ciúmes das coisas que preservava.
                                   Nas festas da padroeira ou em outras tradicionais da igreja, era ele quem organizava e, com sua empatia, reunia centenas de fiéis nas procissões e nas quermesses. Encantava os olhos, ver as criancinhas ornamentadas de anjo, os andores enfeitados, as cantilenas sacras, as matracas à frente do cortejo, em sons compassados. Ele, todo paramentado, com uma túnica branca, sobre ela a casula e a estola, o tornava alvo das atenções. Ao balançar o turíbulo, o incenso exalava um aroma suave. Lindo de se ver.
                                   Em todos os rituais litúrgicos, quer fosse ao velório, na missa de corpo presente, extrema unção, batismo, crisma, matrimônio, eucaristia, penitencia, casamento, lá estava ele, exercendo o seu sacerdócio. Quando estava longe da obrigação sacerdotal, costumava andar pelas ruas, trajando um sapato preto e calça preta, sendo ela presa por um suspensório, camisa branca ou preta, de manga comprida e chapéu preto. Ou, na maioria das vezes, numa batina preta até os pés, sem dispensar o chapéu, claro!
                                   Ao seu lado, havia uma legião de pessoas, fiéis soldados e colaboradores. Dentre eles, os coroinhas, as beatas, os sacristães e os diáconos. As beatas, muito delas casadas, ajudavam na limpeza da igreja e da casa paroquial. Cozinhava para o pároco e, além de coser suas vestes surradas, colaboravam nos rituais das missas domingueiras. Mas quem pendurava na corda do sino, preso a uma torre de madeira, ao lado da igreja, para avisar a população de que a missa já começaria, era o menino mais arteiro do lugar. Para aquele moleque, era o melhor momento, tudo não passava de diversão.
                                   Mas de todas as doces recordações daquele mensageiro de Deus, naquela terra distante dos grandes centros urbanos, a que mais marcou, fora a sua queda para os banquetes regados com muito alimento, guloseimas e bebidas. Não dispensava uma festa de casamento, aniversário, batizado e inauguração do que quer que fosse. Quando não tinha isso, costumava fazer visita domingueira a casa de um morador, isso de surpresa e numa escolha aleatória. Lá passava o dia inteiro e “filava uma bóia (almoço ou jantar)”, sem qualquer cerimônia. Comia e bebia até se empanturrar e sentir um mal estar. Só retornava para casa paroquial, ao entardecer.
                                   Tudo nele traduzia-se em santidade; mas, de vez quando, como qualquer ser humano e mortal, escorregava em pequenos deslizes e, sem querer, cometia os inevitáveis e tentadores “pecados da carne”. Que Deus cuide de sua alma e que ele descanse em paz. Amém!

Peruíbe SP, 20 de março de 2019. 

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