Adão de Souza
Ribeiro
Lá na roça, ao
romper do sol, era costume tomar um cafezinho, antes de rumar para a lavoura. Sentávamos
à beira do fogão à lenha, enquanto dona Quitéria, nossa mãe, despejava num
coador de pano, preso à mariquinha, água sobre o pó, enchendo o bule.
Embriagados pelo aroma que invadia toda a casa, conversamos demoradamente sobre
tudo. E riamos de nós mesmos, dos assuntos e das piadas de nossos irmãos. Tempo
bom aquele.
Serafim, nosso irmão mais velho,
tinha assunto para tudo. O tal do cafezinho era sempre acompanhado de um
quitute, carinhosamente feito por mamãe. Um bolo de fubá, uma mandioca frita na
manteiga, um cuscuz de carne seca, uma fatia de pão caseiro, reforçava o que
seria alimento até o meio dia, quando íamos almoçar lá na plantação de café. Uma
vida nada fácil, porém, muito feliz.
Enquanto era preparado e durante a
degustação, recordávamos das coisas cotidianas de nossa casa e da cidade, que
tanto amávamos encravada naquele sertão, sem tecnologia e esquecido do mundo.
Conhecíamos as mudanças climáticas e tempo de plantio, através das
manifestações da natureza, isto é, das mudanças da lua e das estações do ano. Não
havia aparelhos de precisão. Lembro-me que meus pais e meus avós, após olharem
para o céu ou ao interpretarem o vento, diziam “vai chover” ou “vai esfriar” e
não erravam nunca. Suas intuições, eram os aparelhos de precisão.
Em meio às conversas, engasgamos
com o gole ou queimávamos a língua de tanto rir. Antes de tomarmos o café, já havíamos
arrumados as tralhas, sem se esquecer de nada e de nenhum detalhe. Durante o
labor de lavrar a terra, longe da cidade, não dava para retornar e apanhar o
que se esqueceu. Dos assuntos discorridos, guardo lembranças dos apelidos,
pelos quais todos eram conhecidos no lugarejo. Se, por exemplo, um forasteiro
perguntasse onde morava Antônio José de Oliveira, recebia uma resposta
negativa. Mas se perguntasse por “Mula Manca”, indicavam com precisão a morada,
como se fossem GPS.
E assim, carinhosamente todos
tinham seus codinomes e conviviam harmoniosamente entre si. Nas conversas de
boteco, nas peladas de futebol, nas cantorias de viola, nas missas
domingueiras, nos cortejos fúnebres, nas churrascadas do vizinho, nas intermináveis
pescarias, nas folias de reis, onde quer que estivessem, ninguém chamava o
outro pelo nome de batismo, mas, sim, pelo apelido. Se fossemos declinar aqui,
todos os apelidos daquela cidade, daria para formar mais de duas centenas de
time de futebol.
Por exemplo, tinha Roda Gigante,
Patrícia do Imborná, Caga Sebo, Zé Lagarto, Peito de Pomba, Batucada, Zé Padre,
Santo, Baiu, Mãozinho, Pescoço de Girafa e por aí se vai. Ninguém ficava dodói,
quando eram tratados assim. Naquela cidade e na roça, o sistema era bruto e as
pessoas nunca foram criadas com nutella. Minha irmã caçula era chamada de
Saracura e, nem por isso, vivia emburrada pelos cantos. Quanto mais bravo a
pessoa ficava, mais o apelido pegava. Na escola, tudo era resolvido com a
célebre frase: “Vou te pegar na saída”. Melhor era seguir o conselho de uma deputada
federal: “Não fica nervoso, relaxa e goza”. Ou melhor, como diz uma
música sertaneja: “Aceita que dói menos”.
Nos tempos de hoje, importaram um
termo americanizado para o apelido, ou seja, bullying. Só sofrem dessa doença estrangeira,
as crianças e adolescentes, que ficam trancafiados em seu mundo, escravizados
pela tecnologia e viciados em internet e celulares. Não experimentam o contato
humano e, por isso, não sabem o valor de um abraço, de um sorriso, de um beijo
e de uma brincadeira sadia, mesmo que regada por apelido. Não sabem separar o
apelido carinhoso ou maldoso. Mais uma vez, surgem os “ólogos de plantão” a fim
de buscarem soluções mirabolantes, para um problema criado pelo progresso e
pela tecnologia.
Não quero aqui, nesta humilde
dissertação, incentivar qualquer tipo de brincadeira maldosa ou humilhante. Mas,
por outro lado, pretendo apenas mostrar que é possível entender, que nem tudo vem
revestido de maldade. Na minha infância e adolescência, bem como, no trabalho
sempre convivi com pessoas de apelidos diversos e sempre nos demos muito bem.
Nunca dei ouvidas as polêmicas e nem a mídia manipuladora. Também, nunca tive
que “acertar na saída”.
Lá na roça, no dialeto roceis, esse
trem chamado bulluying era conhecido como bule. E o tal do bule, como disse
inicialmente, era usado para colocar café. O café mais delicioso do mundo, passado
no coador de pano, preso à mariquinha e feito por dona Quitéria, nossa mãe.
Peruíbe SP, 15
de abril de 2019.
2 comentários:
Como de costume, uma excelente leitura eu tive nessa noite. Obrigada por abrilhantar minha noite com essa leitura.
Muito bonita e real história tempo em que criança sabia o que era ser criança hj em dia não existe mais infância a tecnologia tomou conta de tudo e infelizmente as nossas crianças de hj não terão essas histórias bonitas e saudáveis pra contar para os seus filhos Parabéns me fez lembrar muito bem da minha infância bem vivida
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