segunda-feira, 15 de abril de 2019

O BULE

Adão de Souza Ribeiro

                                   Lá na roça, ao romper do sol, era costume tomar um cafezinho, antes de rumar para a lavoura. Sentávamos à beira do fogão à lenha, enquanto dona Quitéria, nossa mãe, despejava num coador de pano, preso à mariquinha, água sobre o pó, enchendo o bule. Embriagados pelo aroma que invadia toda a casa, conversamos demoradamente sobre tudo. E riamos de nós mesmos, dos assuntos e das piadas de nossos irmãos. Tempo bom aquele.
                                   Serafim, nosso irmão mais velho, tinha assunto para tudo. O tal do cafezinho era sempre acompanhado de um quitute, carinhosamente feito por mamãe. Um bolo de fubá, uma mandioca frita na manteiga, um cuscuz de carne seca, uma fatia de pão caseiro, reforçava o que seria alimento até o meio dia, quando íamos almoçar lá na plantação de café. Uma vida nada fácil, porém, muito feliz.
                                   Enquanto era preparado e durante a degustação, recordávamos das coisas cotidianas de nossa casa e da cidade, que tanto amávamos encravada naquele sertão, sem tecnologia e esquecido do mundo. Conhecíamos as mudanças climáticas e tempo de plantio, através das manifestações da natureza, isto é, das mudanças da lua e das estações do ano. Não havia aparelhos de precisão. Lembro-me que meus pais e meus avós, após olharem para o céu ou ao interpretarem o vento, diziam “vai chover” ou “vai esfriar” e não erravam nunca. Suas intuições, eram os aparelhos de precisão.
                                   Em meio às conversas, engasgamos com o gole ou queimávamos a língua de tanto rir. Antes de tomarmos o café, já havíamos arrumados as tralhas, sem se esquecer de nada e de nenhum detalhe. Durante o labor de lavrar a terra, longe da cidade, não dava para retornar e apanhar o que se esqueceu. Dos assuntos discorridos, guardo lembranças dos apelidos, pelos quais todos eram conhecidos no lugarejo. Se, por exemplo, um forasteiro perguntasse onde morava Antônio José de Oliveira, recebia uma resposta negativa. Mas se perguntasse por “Mula Manca”, indicavam com precisão a morada, como se fossem GPS.
                                   E assim, carinhosamente todos tinham seus codinomes e conviviam harmoniosamente entre si. Nas conversas de boteco, nas peladas de futebol, nas cantorias de viola, nas missas domingueiras, nos cortejos fúnebres, nas churrascadas do vizinho, nas intermináveis pescarias, nas folias de reis, onde quer que estivessem, ninguém chamava o outro pelo nome de batismo, mas, sim, pelo apelido. Se fossemos declinar aqui, todos os apelidos daquela cidade, daria para formar mais de duas centenas de time de futebol.
                                   Por exemplo, tinha Roda Gigante, Patrícia do Imborná, Caga Sebo, Zé Lagarto, Peito de Pomba, Batucada, Zé Padre, Santo, Baiu, Mãozinho, Pescoço de Girafa e por aí se vai. Ninguém ficava dodói, quando eram tratados assim. Naquela cidade e na roça, o sistema era bruto e as pessoas nunca foram criadas com nutella. Minha irmã caçula era chamada de Saracura e, nem por isso, vivia emburrada pelos cantos. Quanto mais bravo a pessoa ficava, mais o apelido pegava. Na escola, tudo era resolvido com a célebre frase: “Vou te pegar na saída”. Melhor era seguir o conselho de uma deputada federal: “Não fica nervoso, relaxa e goza”. Ou melhor, como diz uma música sertaneja: “Aceita que dói menos.
                                   Nos tempos de hoje, importaram um termo americanizado para o apelido, ou seja, bullying. Só sofrem dessa doença estrangeira, as crianças e adolescentes, que ficam trancafiados em seu mundo, escravizados pela tecnologia e viciados em internet e celulares. Não experimentam o contato humano e, por isso, não sabem o valor de um abraço, de um sorriso, de um beijo e de uma brincadeira sadia, mesmo que regada por apelido. Não sabem separar o apelido carinhoso ou maldoso. Mais uma vez, surgem os “ólogos de plantão” a fim de buscarem soluções mirabolantes, para um problema criado pelo progresso e pela tecnologia.
                                   Não quero aqui, nesta humilde dissertação, incentivar qualquer tipo de brincadeira maldosa ou humilhante. Mas, por outro lado, pretendo apenas mostrar que é possível entender, que nem tudo vem revestido de maldade. Na minha infância e adolescência, bem como, no trabalho sempre convivi com pessoas de apelidos diversos e sempre nos demos muito bem. Nunca dei ouvidas as polêmicas e nem a mídia manipuladora. Também, nunca tive que “acertar na saída”.
                                   Lá na roça, no dialeto roceis, esse trem chamado bulluying era conhecido como bule. E o tal do bule, como disse inicialmente, era usado para colocar café. O café mais delicioso do mundo, passado no coador de pano, preso à mariquinha e feito por dona Quitéria, nossa mãe.


Peruíbe SP, 15 de abril de 2019.

2 comentários:

Unknown disse...

Como de costume, uma excelente leitura eu tive nessa noite. Obrigada por abrilhantar minha noite com essa leitura.

Unknown disse...

Muito bonita e real história tempo em que criança sabia o que era ser criança hj em dia não existe mais infância a tecnologia tomou conta de tudo e infelizmente as nossas crianças de hj não terão essas histórias bonitas e saudáveis pra contar para os seus filhos Parabéns me fez lembrar muito bem da minha infância bem vivida