quinta-feira, 18 de novembro de 2021

NAVALHA NA CARNE

 Adão de Souza Ribeiro

 

                        Desde os primórdios tempos, isto há mais de 300 000 anos, quando ainda erámos Homo sapiens, com habilidades para caçar, cozinhar carne, usar roupa de peles de animais e construir lanças e cabanas, eu creio que já gostávamos de uma boa prosa.

                        Inevitavelmente a evolução aconteceu e descobriu-se o Homem de Neanderthal, na Alemanha, no período de 70 000 a 40 000 anos, sendo baixo e musculoso, com um cérebro do tamanho do nosso e região cerebral correspondente à fala bem desenvolvida.

                        De evolução em evolução, passamos pelo Homo Erectus até chegarmos ao Homem Moderno. Este homem moderno começa a falar com desenvoltura a partir dos três anos de idade. Brincadeiras à parte, eu penso que a mulher começa falar bem mais cedo. E como fala meu Deus!

                        E foi pensando nisso, que compreendi o porquê de que, quando duas ou mais pessoas se encontram, uma prosinha descontraída é inevitável. Quer seja na esquina, na praça, no boteco, no churrasco, na pescaria, no jogo de futebol ou no barbeiro, lá estão os contadores de causos ou vantagens como, por exemplo, as estórias de pescadores.

                        Na retina dos meus olhos, revejo a cena ocorrida na “Barbearia do Silveira”. Antes, porém, é preciso dizer que o “seu” Silveira era um contador de estória e, pelos quatro cantos, arrotava sua valentia. Por essa razão, a barbearia estava sempre cheia, pois todos gostavam de ouvir as deliciosas lorotas, daquele habilidoso profissional.

                        Ele dizia, sem ficar vermelho, que laçara um boi bravio e o segurara na unha; nas matas da Fazenda Suiça, lutara a noite inteira com uma onça enorme, até ela jogar a toalha e se dar por vencida; na mira da sua espingarda cartucheira, até Virgulino Ferreira da Silva, o lendário cangaceiro Lampião, tremia feito vara verde.

                        “Seu”’ Silveira colocava tanto ênfase na estória, que era difícil de não acreditar. Valente como o *Coronel Pantaleão, só faltava ele perguntar para sua esposa: “É mentira Terta?”. E ela, por demais obediente, respondia: “É verdade.”

                        Normalmente os clientes iam sábados, por ser final de semana. Mas um dia, a vida - aquela caixinha de surpresas -, iria pregar-lhe uma peça. Dito e feito. Lá estava fazendo a barba de um assíduo cliente e com a barbearia lotada, não deixava de contar suas longas estórias de valentia.

                        De repente ali chegou “Chiquinho Dedo Mole” um Sergipano arretado, que não levava desaforo para casa. Aquele homem, aos berros e com uma Garrucha em punho, apontada para “seu” Silveira, foi logo dizendo: “Silveira, cabra safado, hoje em vim aqui, disposto a acertar aquela velha pendenga.”

                        O valentão empalideceu, suava frio, emudecera e a mão tremula denunciava o pavor em que se encontrava. Os clientes que aguardavam a vez pediam ajuda a todos os Santos de plantão.

                        Na rua começava a se formar uma aglomeração de curiosos.  O suspense era geral. Será que Silveira iria por suas habilidades de homem macho em prática e provar que suas estórias não passavam de lorotas?

                        O cliente com o rosto e o pescoço ensaboados. A navalha na carne, ou melhor, garganta, o infeliz do cliente, que estava sentado na cadeira giratória, só pedia a Deus para sair vivo dali. Pensava ele: “Por que fui escolhido para tamanho infortúnio?

                        De repente, num rompante de fúria, “Chiquinho Dedo Mole”, entrou na barbearia, estabelecida na Rua Rui Barbosa.  Sempre com a arma apontada para o desafeto, o agressor dizia: “Fala alguma coisa, seu valentão safado?”.

                        Num ato de defesa, “seu” Silveira, girou a cadeira, colocando o cliente como escudo e, involuntariamente, apertou a navalha na jugular do inocente, o qual chorava baixinho, pois sentia a morte beijar-lhe o rosto. Com nitidez, lembrava-se da mulher e dos filhos esperando para o almoço. Estava no lugar e na hora errada.

                        Aquilo parecia à história de ** “A crônica de uma morte anunciada”. Um dos clientes que aguardava a vez, com uma voz macia, como um anjo enviado do céu, conseguiu apaziguar a situação, dizendo para “Chiquinho Dedo Mole”: “Chiquinho, meu amigo querido, procura resolver a pendenga entre vocês, com calma. Guarda esta arma. Se atirar e causar uma tragédia, o seu prejuízo será maior”.

                        Como se fosse um milagre, “Chiquinho Dedo Mole” foi se controlando e dominando a sua fúria. “seu” Silveira recobrou a cor, parando a suadeira e a tremedeira. O cliente ensaboado agradeceu ao Divino e até sentiu o cheiro do pernil que seria servido no almoço. A plateia curiosa foi se desfazendo aos pouco, até a rua ficar vazia e voltar o ar de cidade pacata.

                         O episódio se espalhou pela cidade e toda redondeza. A partir de então, aquele homem falastrão e que impunha medo, pelas estórias que contava, passou a ser conhecido como “Silveira Borra Botas”.  Em tom de caçoada, os clientes diziam: “Vamos lá na barbearia do Borra Botas”.

 

Peruíbe SP, 18 de novembro de 2021.

P.S.: * Personagem de Chico Anísio;   ** Livro de Gabriel Garcia Márquez

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