sexta-feira, 17 de maio de 2019

O DEFUNTO ERRADO

Adão de Souza Ribeiro

                                   Se tiver uma coisa, que a maioria das pessoas não gosta e me incluo entre elas, é frequentar velório. Ficar sentado horas a fio, olhando o entra e sai de pessoas consternadas e chorosas, causa-me muito enfado. Abraço apertado e palavras de conforto, ao pé do ouvido, cumprindo um ritual sangrado, que vem dos primórdios tempos, esteja certo de que não é comigo. A noite parece interminável e não há cafezinho que consiga afugentar o sono.
                                   Deitado numa esquife, na sala fúnebre, lá está o de cujus, num sono profundo e nem roncar, ele ronca. Na cabeceira, uma cruz dourada, do Cristo crucificado. Ao lado, coroas de flores, com faixas alusivas à importância do falecido, ainda em vida. Lembrança saudosa dos colegas de trabalho, do time de várzea, dos tempos de coroinha, dos parceiros de pescaria e de tantas outras atividades, que preenchia a agenda de quem, agora, não é mais.
                                   A dona encrenca, pessoa de fibra que aguentou por longos anos, o mau humor daquele asqueroso e que agora virou santo, sentada ora ao lado, ora aos pés do varão, recebe a condolência de pessoas sinceras ou não. Uns apenas dão o ar da graça, ficam ali por alguns minutos e depois vão embora. E assim, aquela romaria segue noite à dentro. Uns rasgam elogios, procurando tornar menos dolorosa a partida e outros, ficam calados esperando o início do cortejo, rumo ao campo santo.
                                   Como já disse, nunca gostei desses encontros sociais. Prefiro uma noite no boteco do seu Shaolin ou no forró de pé de serra, no Clube da Oitava Idade. Sei que é o caminho de todos nós, mas prefiro cortar volta e ir pelos atalhos, tomar outro rumo. Na cozinha improvisada, as pessoas tomam um chazinho de mate-leão, uma bolacha salgada, uma pitada de fumo de corda, enquanto conversam banalidades, a fim de quebrarem aquele clima taciturno. E o de cujus, ali duro e inerte, sem qualquer reação. Louco para tomar uma branquinha e prosear com os velhos amigos de lorotas.
                                   Há casos em que os herdeiros já se estranham ali, de olho no que a pessoa construiu ao longo dos anos, a custa de muito suor e lágrima. Mas também, há casos em que os herdeiros lamentam a partida de quem, ao longo da vida, serviu de exemplo à família e a sociedade. Se for artista, amigos cantam canções imortais, composta por ele. Por outro lado, se foi pastor, os irmãos da fé, ora à noite inteira, para que o arrebatamento seja o menos doloroso possível.
                                   A noite transcorria na mais santa paz, quando menos se esperava, uma mulher aos prantos e toda descontrolada, adentra a sala fúnebre e debruça sobre o ataúde. Chora de soluçar e balbucia palavras desconexas, como que revoltada pela partida inesperada daquela pessoa a quem tanto admirava e amava. As pessoas, tomadas de surpresa, nada entendiam. Elas temiam que aquele homem inerte e sem reação, fosse ao chão, pois a desconhecida jogara todo o peso de seu corpo sobre ele. Ninguém ousava interromper a expressão de sentimento daquela mulher.
                                   Notava-se no semblante da viúva, que havia milhões de interrogações na mente. Será que aquele infeliz tinha uma amante, tão secreta que só foi se revelar naquele momento tão doloroso? De que planeta surgira àquela concorrente... aquela rival? Os homens achavam engraçado, mas as mulheres solidárias à viúva queriam agir e botar a intrusa para correr. Que fosse chorar o marido dela e não aquele que estava ali, pronto para a viagem derradeira.
                                   Aquele clima, até então, tranquilo e respeitoso fora, aos poucos, tornando-se pesado e preocupante. Cria-se que nem mesmo o de cujus estava entendo que acontecia ali. Ele louco de raiva e se pudesse dizer alguma coisa, diria: “Quem é você?”. Sabia a pobre viúva, que aquele asqueroso já fora muito mulherengo, mas como os terreiros onde costuma ciscar, eram distantes, não conhecia as galinhas com quem ele se aninhava. Se ela pudesse reagir, pode estar certo de que dona encrenca iria dar uma sova, até matar ele. Tinha vontade de esganar o pescoço do infeliz. Como pode fazer a esposa passar tanta humilhação.
                                   Mas como nem tudo na vida é eterno, nem mesmo os momentos de intensa consternação e humilhação, tudo ficou esclarecido. A mulher estranha era amante inveterada de uma cerveja e de uma marvada. Havia tomado tudo o que tinha de direito, antes de ir para o velório de um ex-namorado, que morrera de cirrose. Como havia várias salas naquele velório, onde outras pessoas velavam os seus entes queridos, a mulher adentrou e desesperada e foi chorar o defunto errado.
                                   No final da história, foi desfeito o erro e enterro transcorreu em paz. A viúva e a intrusa se entenderam e o de cujus partiu para sua viagem derradeira. E pensa que o contador de história, parou de contar suas asneiras? A conversa não morre aqui. Espera para ver!


Peruíbe SP, 18 de maio de 2019.

Um comentário:

Unknown disse...

Deveras interessante kkk
Realmente como todos funerais normais.