Adão de Souza
Ribeiro
Se tiver uma
coisa, que a maioria das pessoas não gosta e me incluo entre elas, é frequentar
velório. Ficar sentado horas a fio, olhando o entra e sai de pessoas
consternadas e chorosas, causa-me muito enfado. Abraço apertado e palavras de
conforto, ao pé do ouvido, cumprindo um ritual sangrado, que vem dos primórdios
tempos, esteja certo de que não é comigo. A noite parece interminável e não há cafezinho
que consiga afugentar o sono.
Deitado numa esquife, na sala
fúnebre, lá está o de cujus, num sono profundo e nem roncar, ele ronca. Na
cabeceira, uma cruz dourada, do Cristo crucificado. Ao lado, coroas de flores,
com faixas alusivas à importância do falecido, ainda em vida. Lembrança saudosa
dos colegas de trabalho, do time de várzea, dos tempos de coroinha, dos
parceiros de pescaria e de tantas outras atividades, que preenchia a agenda de
quem, agora, não é mais.
A dona encrenca, pessoa de fibra
que aguentou por longos anos, o mau humor daquele asqueroso e que agora virou
santo, sentada ora ao lado, ora aos pés do varão, recebe a condolência de
pessoas sinceras ou não. Uns apenas dão o ar da graça, ficam ali por alguns minutos
e depois vão embora. E assim, aquela romaria segue noite à dentro. Uns rasgam
elogios, procurando tornar menos dolorosa a partida e outros, ficam calados
esperando o início do cortejo, rumo ao campo santo.
Como já disse, nunca gostei desses
encontros sociais. Prefiro uma noite no boteco do seu Shaolin ou no forró de pé
de serra, no Clube da Oitava Idade. Sei que é o caminho de todos nós, mas
prefiro cortar volta e ir pelos atalhos, tomar outro rumo. Na cozinha
improvisada, as pessoas tomam um chazinho de mate-leão, uma bolacha salgada, uma
pitada de fumo de corda, enquanto conversam banalidades, a fim de quebrarem
aquele clima taciturno. E o de cujus, ali duro e inerte, sem qualquer reação.
Louco para tomar uma branquinha e prosear com os velhos amigos de lorotas.
Há casos em que os herdeiros já se
estranham ali, de olho no que a pessoa construiu ao longo dos anos, a custa de
muito suor e lágrima. Mas também, há casos em que os herdeiros lamentam a partida
de quem, ao longo da vida, serviu de exemplo à família e a sociedade. Se for
artista, amigos cantam canções imortais, composta por ele. Por outro lado, se
foi pastor, os irmãos da fé, ora à noite inteira, para que o arrebatamento seja
o menos doloroso possível.
A noite transcorria na mais santa paz,
quando menos se esperava, uma mulher aos prantos e toda descontrolada, adentra a
sala fúnebre e debruça sobre o ataúde. Chora de soluçar e balbucia palavras
desconexas, como que revoltada pela partida inesperada daquela pessoa a quem tanto
admirava e amava. As pessoas, tomadas de surpresa, nada entendiam. Elas temiam
que aquele homem inerte e sem reação, fosse ao chão, pois a desconhecida jogara
todo o peso de seu corpo sobre ele. Ninguém ousava interromper a expressão de
sentimento daquela mulher.
Notava-se no semblante da viúva,
que havia milhões de interrogações na mente. Será que aquele infeliz tinha uma
amante, tão secreta que só foi se revelar naquele momento tão doloroso? De que
planeta surgira àquela concorrente... aquela rival? Os homens achavam
engraçado, mas as mulheres solidárias à viúva queriam agir e botar a intrusa
para correr. Que fosse chorar o marido dela e não aquele que estava ali, pronto
para a viagem derradeira.
Aquele clima, até então, tranquilo
e respeitoso fora, aos poucos, tornando-se pesado e preocupante. Cria-se que
nem mesmo o de cujus estava entendo que acontecia ali. Ele louco de raiva e se
pudesse dizer alguma coisa, diria: “Quem é você?”. Sabia a pobre viúva, que
aquele asqueroso já fora muito mulherengo, mas como os terreiros onde costuma
ciscar, eram distantes, não conhecia as galinhas com quem ele se aninhava. Se
ela pudesse reagir, pode estar certo de que dona encrenca iria dar uma sova,
até matar ele. Tinha vontade de esganar o pescoço do infeliz. Como pode fazer a
esposa passar tanta humilhação.
Mas como nem tudo na vida é
eterno, nem mesmo os momentos de intensa consternação e humilhação, tudo ficou
esclarecido. A mulher estranha era amante inveterada de uma cerveja e de uma
marvada. Havia tomado tudo o que tinha de direito, antes de ir para o velório
de um ex-namorado, que morrera de cirrose. Como havia várias salas naquele
velório, onde outras pessoas velavam os seus entes queridos, a mulher adentrou
e desesperada e foi chorar o defunto errado.
No final da história, foi desfeito
o erro e enterro transcorreu em paz. A viúva e a intrusa se entenderam e o de
cujus partiu para sua viagem derradeira. E pensa que o contador de história,
parou de contar suas asneiras? A conversa não morre aqui. Espera para ver!
Peruíbe SP, 18
de maio de 2019.
Um comentário:
Deveras interessante kkk
Realmente como todos funerais normais.
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