quarta-feira, 8 de maio de 2019

ZÉ DO MÉ

Adão de Souza Ribeiro

                                   Uma mulher rabugenta, zarolha e manca da perna esquerda. Um filho baitola, que desde muito pequeno, dava sinais de que, não demoraria e iria morder a fronha. Uma filha preguiçosa e que, ao invés de cuidar dos deveres da casa, gostava de ficar num esfrega-esfrega com os meninos da rua. Um homem lutador e honesto, que não conseguia juntar patacas, além daquelas para o seu sustento e da família. Não tinha um pingo de ganância e, muito menos, projetos de vida e de futuro.
                                   A vida rude, fez dele um homem rude. Mesmo diante de tantas penúrias, gostava muito de fazer amizades, contar seus causos, pescar no córrego que banhava a cidade, jogar carteado no clube nipônico. É certo que não dispensava um encontro com os amigos, no boteco do “seu” Shaolin, um japonês magro e desengonçado. O bar do “japa” era escuro, com revoadas de mosquitos sobre o balcão e as mesas. Uma coleção enorme de cachaça, exposta numa estante fixada na parede, caindo os reboques, dava um toque peculiar ao ambiente.
                                   Todos os dias e o dia todo era rotina daquele homem, ir para a roça, antes do nascer do sol e só voltar ao cair da tarde. Ao longo da vida, só conseguiu comprar um cavalo pangaré e uma carroça reformada. A casa era guarnecidos de móveis rústicos e improvisados. As roupas de pano simples e o alimento sem muita variedade. A felicidade de José Cruz da Piedade resumia-se em trabalhar o mês todo e, aos finais de semana, tomar uma cachacinha com os amigos fiéis, no bar do “seu” Shaolin.
                                   Desde muito cedo, aprendeu a lidar com as dificuldades da vida e, também, a tomar gosto pelo consumo da branquinha, como era carinhosamente chamada a cachaça. É certo que, pelo carinho que demonstrava com o consumo da marvada, recebeu o apelido de “Zé do Mé”. Não achava ruim e nem considerava bule (bullying), o jeito carinhoso como era tratado pelos amigos e demais moradores da cidadezinha interiorana.
                                   Para apagar as tristes lembranças do passado e fugir das tribulações do dia a dia, corria para o bar do “seu” Shaolin, onde lá afogaria as mágoas num copo de mé. Lá podia contar e ouvir diversas estórias, reais ou não. Uma cantoria desafinada de viola fazia parte do enredo botecolístico. De vez em quando, um dos frequentadores, exagerava na dose e caía num canto, ficando longas horas, curtindo o coma alcoólico. Enquanto isso, “Zé do Mé” e os amigos continuavam bebendo e conversando.
                                   Mas nem tudo era sempre alegria para aquele homem de vida rude, ali naquele lugar de descontração. Não demorava muito, aparecia não mais de surpresa a esposa dele. Os amigos estranhavam, quando ela não aparecia. Chegava com o diabo no corpo e num escândalo que lhe era peculiar, ela esculachava com o pobre do marido. Depois de vociferar uma dezena de palavras de baixo escalão (baixo calão), completava com tapas e empurrões. Assim agia de forma covarde, pois o pobre do homem, na maioria das vezes, não aguentava sobre as próprias pernas.
                                   Os amigos entristeciam e se revoltavam, mas nada podiam fazer. Afinal de contas, era como dizia um velho deitado, ou melhor, um velho ditado: “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Mas com passar do tempo, a cena engraçada virou rotina. O amigo chegava alegre, bebia até entornar o beiço e, no final, saia esculachado e espancado pela esposa rabugenta, zarolha e manca da perna esquerda. Os companheiros de bebedeira precisavam tomar uma atitude em defesa do amigo ultrajado.
                                   Foi assim que, numa bela tarde de domingo, ali no boteco do “seu” Shaolin, todos se reuniram e em assembleia, regada com muita cachaça, pedaços de torresmo e porções de carne seca. Decidiram por unanimidade, criar uma lei que protegesse José Cruz da Piedade e todos os demais frequentadores, contra a violência praticada por esposas, namoradas, ficantes e amantes, ou seja, as “Teúdas” e “Manteúdas”.
                                   Dentre outras coisas, ficou estabelecido, que elas não poderiam se aproximar a menos de duzentos metros do boteco do “seu” Shaolin e quiçá dos companheiros. Qualquer tipo de agressão quer fosse física ou verbal, ficavam impedidas de chamar o companheiro de “meu negô” e, muitos menos, de convidá-lo para um sapeca ia ia, por no mínimo seis meses. Para que fosse revogada a penalidade, tinhas que ser submetidas ao “Conselho do Boteco”.
                                   A partir daquela data, nunca mais José Cruz da Piedade foi agredido ou sofreu qualquer tipo de humilhação. Todas as mulheres do lugarejo passaram a respeitar e incentivar os momentos de descontração de seus esposos, namorados, ficantes ou amantes. Pelo contrário, quando eles manifestavam o desejo de irem no boteco do “seu” Shaolin, elas eram as primeiras a incentivarem.
                                   A lei proferida e outorgada por todos os presentes, com aprovação unanime, ficou conhecida como a “Lei do Zé do Mé”, em homenagem a José Cruz da Piedade. Revogam-se as disposições em contrário. Não é redundância afirmar, que tudo foi comemorado com muito mé (cachaça).


Peruíbe SP, 08 de maio de 2019.

2 comentários:

Unknown disse...

E sempre existirá um Sr:Zé do me.

Unknown disse...

Muito linda história tá um escritor mesmo e bom e você gosta Parabéns