Adão de Souza
Ribeiro
Uma mulher rabugenta, zarolha e
manca da perna esquerda. Um filho baitola, que desde muito pequeno, dava sinais
de que, não demoraria e iria morder a fronha. Uma filha preguiçosa e que, ao
invés de cuidar dos deveres da casa, gostava de ficar num esfrega-esfrega com
os meninos da rua. Um homem lutador e honesto, que não conseguia juntar
patacas, além daquelas para o seu sustento e da família. Não tinha um pingo de
ganância e, muito menos, projetos de vida e de futuro.
A vida rude, fez dele um homem
rude. Mesmo diante de tantas penúrias, gostava muito de fazer amizades, contar
seus causos, pescar no córrego que banhava a cidade, jogar carteado no clube
nipônico. É certo que não dispensava um encontro com os amigos, no boteco do “seu”
Shaolin, um japonês magro e desengonçado. O bar do “japa” era escuro, com
revoadas de mosquitos sobre o balcão e as mesas. Uma coleção enorme de cachaça,
exposta numa estante fixada na parede, caindo os reboques, dava um toque
peculiar ao ambiente.
Todos os dias e o dia todo era
rotina daquele homem, ir para a roça, antes do nascer do sol e só voltar ao
cair da tarde. Ao longo da vida, só conseguiu comprar um cavalo pangaré e uma
carroça reformada. A casa era guarnecidos de móveis rústicos e improvisados. As
roupas de pano simples e o alimento sem muita variedade. A felicidade de José
Cruz da Piedade resumia-se em trabalhar o mês todo e, aos finais de semana,
tomar uma cachacinha com os amigos fiéis, no bar do “seu” Shaolin.
Desde muito cedo, aprendeu a lidar
com as dificuldades da vida e, também, a tomar gosto pelo consumo da
branquinha, como era carinhosamente chamada a cachaça. É certo que, pelo
carinho que demonstrava com o consumo da marvada, recebeu o apelido de “Zé do
Mé”. Não achava ruim e nem considerava bule (bullying), o jeito carinhoso como
era tratado pelos amigos e demais moradores da cidadezinha interiorana.
Para apagar as tristes lembranças
do passado e fugir das tribulações do dia a dia, corria para o bar do “seu”
Shaolin, onde lá afogaria as mágoas num copo de mé. Lá podia contar e ouvir
diversas estórias, reais ou não. Uma cantoria desafinada de viola fazia parte
do enredo botecolístico. De vez em quando, um dos frequentadores, exagerava na
dose e caía num canto, ficando longas horas, curtindo o coma alcoólico. Enquanto
isso, “Zé do Mé” e os amigos continuavam bebendo e conversando.
Mas nem tudo era sempre alegria
para aquele homem de vida rude, ali naquele lugar de descontração. Não demorava
muito, aparecia não mais de surpresa a esposa dele. Os amigos estranhavam, quando
ela não aparecia. Chegava com o diabo no corpo e num escândalo que lhe era
peculiar, ela esculachava com o pobre do marido. Depois de vociferar uma dezena
de palavras de baixo escalão (baixo calão), completava com tapas e empurrões.
Assim agia de forma covarde, pois o pobre do homem, na maioria das vezes, não
aguentava sobre as próprias pernas.
Os amigos entristeciam e se
revoltavam, mas nada podiam fazer. Afinal de contas, era como dizia um velho
deitado, ou melhor, um velho ditado: “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a
colher”. Mas com passar do tempo, a cena engraçada virou rotina. O
amigo chegava alegre, bebia até entornar o beiço e, no final, saia esculachado
e espancado pela esposa rabugenta, zarolha e manca da perna esquerda. Os
companheiros de bebedeira precisavam tomar uma atitude em defesa do amigo
ultrajado.
Foi assim que, numa bela tarde de
domingo, ali no boteco do “seu” Shaolin, todos se reuniram e em assembleia, regada
com muita cachaça, pedaços de torresmo e porções de carne seca. Decidiram por
unanimidade, criar uma lei que protegesse José Cruz da Piedade e todos os
demais frequentadores, contra a violência praticada por esposas, namoradas, ficantes
e amantes, ou seja, as “Teúdas” e “Manteúdas”.
Dentre outras coisas, ficou
estabelecido, que elas não poderiam se aproximar a menos de duzentos metros do
boteco do “seu” Shaolin e quiçá dos companheiros. Qualquer tipo de agressão
quer fosse física ou verbal, ficavam impedidas de chamar o companheiro de “meu
negô” e, muitos menos, de convidá-lo para um sapeca ia ia, por no mínimo seis
meses. Para que fosse revogada a penalidade, tinhas que ser submetidas ao “Conselho
do Boteco”.
A partir daquela data, nunca mais
José Cruz da Piedade foi agredido ou sofreu qualquer tipo de humilhação. Todas
as mulheres do lugarejo passaram a respeitar e incentivar os momentos de descontração
de seus esposos, namorados, ficantes ou amantes. Pelo contrário, quando eles
manifestavam o desejo de irem no boteco do “seu” Shaolin, elas eram as
primeiras a incentivarem.
A lei proferida e outorgada por todos
os presentes, com aprovação unanime, ficou conhecida como a “Lei do Zé do Mé”,
em homenagem a José Cruz da Piedade. Revogam-se as disposições em contrário. Não
é redundância afirmar, que tudo foi comemorado com muito mé (cachaça).
Peruíbe SP, 08
de maio de 2019.
2 comentários:
E sempre existirá um Sr:Zé do me.
Muito linda história tá um escritor mesmo e bom e você gosta Parabéns
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