Adão de Souza
Ribeiro
Não
me venha com essa conversa de que tudo na vida tem limite. Pode ter para você,
mas não para mim. Isso é coisa de filósofo, psicólogo, psiquiatra ou para quem
não sabe o que é viver. Quero distância de quem vive de regras
pré-estabelecidas e das coisas exatas, pois, quem gosta disso é matemática.
Gosto de humanas, ou melhor, das coisas da vida humana. Sempre tive atração
pela liberdade e pela leveza da alma. Quando eu queria sonhar, sonhava mais
alto que minha imaginação. Sempre fui ousado na vida.
Ainda na tenra infância, se minha
mãe não gritasse: “Já pra dentro de casa, menino!”, eu brincava noite adentro com
meus irmãos e os coleguinhas da Rua Rui Barbosa. Quantas noites, enquanto minha
família dormia, eu me debruçava em encantadoras leituras de romances e sobre a
língua portuguesa. De repente, ouvia a voz autoritária de meu pai, dizendo: “Desliga
essa luz a vai dormir, já é tarde”. Depois vem me dizer que tudo tem
limite. Nem mesmo a minha sede de saber, tinha limite. Imagina o resto.
Penso que os cientistas só
conseguiram mudar o rumo das pessoas e da humanidade, com suas descobertas
inimagináveis, porque foram além dos seus limites. Tenho um apreço muito
grande, pelos que sabem lutar pelos seus ideais. Admiro quem, rompe as
barreiras do medo e do preconceito, em busca da plena felicidade. Viver vale a
pena, quando a luta não é pequena. E se for pelos carinhos de uma loira, ruiva
ou morena, meu Deus, quanto dilema!
Para não perder esse jeito
observador do comportamento humano, ficava a observar a juventude do meu tempo,
embora eu ainda fosse um adolescente, passando pela soleira da puberdade. Aos
sábados à noite, o meu tio em companhia de outros amigos, se arrumava todo, colocava
uma “beca” muito engomada, passava água de cheiro no corpo, brilhantina no
cabelo, sapato impecavelmente engraxado, um chapéu de cowboy, para realçar o
visual e rumavam para os bailes, nas fazendas que circundavam a cidade.
Como as festas eram distantes,
isto é, a mais de cinco ou dez quilômetros do lugarejo e, ainda, sendo um grupo
enorme de festeiros, que mais parecia uma boiada, todos viajavam na carroceira
de caminhão. Quem via de longe, mais parecia um “pau-de-arara”, vindo das
bandas do nordeste. Batucada, o motorista sem habilitação, saia apanhando as pessoas
de casa em casa e, completada a carga, rumava, para o destino almejado, tendo
como guia a lua resplandecente.
Durante o trajeto, por estrada de
terra batida e cheia de areia, lá ia a turma da bagunça. A carroceria balançava
mais que bambu em noite de ventania. Eles cantavam, riam de tudo e davam goles
no gargalo das garrafas de batidas, feitas com capricho, no bar do seu Shaolim.
As luzes da cidade e as árvores à beira das cercas de arame farpado ficavam
para trás, dando adeus aquele grupo de jovens felizes. Uma coruja agourenta,
sentada no mourão da porteira, entoava uma canção esquisita. Algumas cotias
atravessam a estrada, rumo ao banhado. Pirilampos, feitos estrelas reluzentes,
enfeitam o caminho de quem só queria diversão... só queria ser feliz.
No balanço do coqueiro, ou melhor,
da carroceria, um dos ocupantes desequilibrou e caiu na estrada, mas ninguém
percebeu, pois bebiam e se divertiam em demasia. Um quilômetro após a queda deu
por falta de “Pé de Pano”. Na noite escura e sem farolete, voltam a procura do
amigo, assim nasceu a história do filme, “Esqueceram de mim” estrelado pelo nosso
ator caipira, o “Pé de Pano”. Tomara que a alegria na carroceira do Chrysler
fosse uma extensão dos bailes no terreirão da fazenda.
Já chegando à fazenda, local do furdunço,
os rapagões desciam meio tontos, não só da cachaça, mas, também, do saculejo da
viagem. O corpo todo empoeirado, tirava o glamour de quem se preparou tanto
para o momento. Mas nada disso tinha importância para eles. Sabiam que se
deliciariam de muita música ao som do acordeão, da zabumba, do pandeiro e do
triangulo. As moçoilas, caipirinhas da roça, até então tímidas, alvoraçavam-se
todas, com a chegada daquele bando, com fome de chamego e do cheiro de fêmea. A
noite ia ser muito pequena, para tanto beijo e agarra-agarra. Naquele momento,
o limite entre a sanidade e a loucura, ficou para trás.
Naquele tempo, ninguém ia armado,
vislumbrando briga de morte. No máximo, uns tapas e empurrões, pela disputa de
um rabo-de-saia ou um exagero na dose de um conhaque ou um rabo-de-galo. O grupo vindo da cidade dançava até suar a
camisa. Riam, cantavam, bebiam e se divertiam até fraquejar as pernas. De vez
em quando, uma velha assanhada, um maracujá de gaveta, se engraçava com um
deles, aí então, o coitado virava a bola da vez e o motivo de caçoada pela
semana inteira. Lá pelas cinco horas da manhã, Batucada – motorista sem
habilitação -, anunciava a hora da partida. A romaria de volta, era prenúncio
de tortura e muito saculejo, na carroceria do velho Chrysler.
Pela estrada, lembrariam que ficou
para trás, uma noite de muita diversão. O cheiro das cabrochas ainda estava
grudado no corpo suado de cada um deles, com gosto de quero mais. Para que “Pé
de Pano”, não caísse de novo, amarram uma corda nele. Na volta, por ser dia
claro, não haveria o cortejo de pirilampos, o canto da coruja e nem a correia
das cotias, rumo ao banhado. Os jovens, numa felicidade sem limite, avistavam a
cidade vinda ao encontro. Era uma recepção àquele bando de festeiro.
Ao recordar daquelas cenas
inusitadas, onde jovens embriagados de prazer viajavam na carroceria do velho
Chrysler, rumo aos bailes de fazenda, lembro-me da felicidade pegando carona,
num tempo que não volta mais.
Peruíbe SP, 22
de maio de 2019.
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