terça-feira, 21 de maio de 2019

A FELICIDADE PEDE CARONA

Adão de Souza Ribeiro

                                               Não me venha com essa conversa de que tudo na vida tem limite. Pode ter para você, mas não para mim. Isso é coisa de filósofo, psicólogo, psiquiatra ou para quem não sabe o que é viver. Quero distância de quem vive de regras pré-estabelecidas e das coisas exatas, pois, quem gosta disso é matemática. Gosto de humanas, ou melhor, das coisas da vida humana. Sempre tive atração pela liberdade e pela leveza da alma. Quando eu queria sonhar, sonhava mais alto que minha imaginação. Sempre fui ousado na vida.
                                   Ainda na tenra infância, se minha mãe não gritasse: “Já pra dentro de casa, menino!”, eu brincava noite adentro com meus irmãos e os coleguinhas da Rua Rui Barbosa. Quantas noites, enquanto minha família dormia, eu me debruçava em encantadoras leituras de romances e sobre a língua portuguesa. De repente, ouvia a voz autoritária de meu pai, dizendo: “Desliga essa luz a vai dormir, já é tarde”. Depois vem me dizer que tudo tem limite. Nem mesmo a minha sede de saber, tinha limite. Imagina o resto.
                                   Penso que os cientistas só conseguiram mudar o rumo das pessoas e da humanidade, com suas descobertas inimagináveis, porque foram além dos seus limites. Tenho um apreço muito grande, pelos que sabem lutar pelos seus ideais. Admiro quem, rompe as barreiras do medo e do preconceito, em busca da plena felicidade. Viver vale a pena, quando a luta não é pequena. E se for pelos carinhos de uma loira, ruiva ou morena, meu Deus, quanto dilema!
                                   Para não perder esse jeito observador do comportamento humano, ficava a observar a juventude do meu tempo, embora eu ainda fosse um adolescente, passando pela soleira da puberdade. Aos sábados à noite, o meu tio em companhia de outros amigos, se arrumava todo, colocava uma “beca” muito engomada, passava água de cheiro no corpo, brilhantina no cabelo, sapato impecavelmente engraxado, um chapéu de cowboy, para realçar o visual e rumavam para os bailes, nas fazendas que circundavam a cidade.
                                   Como as festas eram distantes, isto é, a mais de cinco ou dez quilômetros do lugarejo e, ainda, sendo um grupo enorme de festeiros, que mais parecia uma boiada, todos viajavam na carroceira de caminhão. Quem via de longe, mais parecia um “pau-de-arara”, vindo das bandas do nordeste. Batucada, o motorista sem habilitação, saia apanhando as pessoas de casa em casa e, completada a carga, rumava, para o destino almejado, tendo como guia a lua resplandecente.
                                   Durante o trajeto, por estrada de terra batida e cheia de areia, lá ia a turma da bagunça. A carroceria balançava mais que bambu em noite de ventania. Eles cantavam, riam de tudo e davam goles no gargalo das garrafas de batidas, feitas com capricho, no bar do seu Shaolim. As luzes da cidade e as árvores à beira das cercas de arame farpado ficavam para trás, dando adeus aquele grupo de jovens felizes. Uma coruja agourenta, sentada no mourão da porteira, entoava uma canção esquisita. Algumas cotias atravessam a estrada, rumo ao banhado. Pirilampos, feitos estrelas reluzentes, enfeitam o caminho de quem só queria diversão... só queria ser feliz.
                                   No balanço do coqueiro, ou melhor, da carroceria, um dos ocupantes desequilibrou e caiu na estrada, mas ninguém percebeu, pois bebiam e se divertiam em demasia. Um quilômetro após a queda deu por falta de “Pé de Pano”. Na noite escura e sem farolete, voltam a procura do amigo, assim nasceu a história do filme, “Esqueceram de mim” estrelado pelo nosso ator caipira, o “Pé de Pano”. Tomara que a alegria na carroceira do Chrysler fosse uma extensão dos bailes no terreirão da fazenda.
                                   Já chegando à fazenda, local do furdunço, os rapagões desciam meio tontos, não só da cachaça, mas, também, do saculejo da viagem. O corpo todo empoeirado, tirava o glamour de quem se preparou tanto para o momento. Mas nada disso tinha importância para eles. Sabiam que se deliciariam de muita música ao som do acordeão, da zabumba, do pandeiro e do triangulo. As moçoilas, caipirinhas da roça, até então tímidas, alvoraçavam-se todas, com a chegada daquele bando, com fome de chamego e do cheiro de fêmea. A noite ia ser muito pequena, para tanto beijo e agarra-agarra. Naquele momento, o limite entre a sanidade e a loucura, ficou para trás.
                                   Naquele tempo, ninguém ia armado, vislumbrando briga de morte. No máximo, uns tapas e empurrões, pela disputa de um rabo-de-saia ou um exagero na dose de um conhaque ou um rabo-de-galo.  O grupo vindo da cidade dançava até suar a camisa. Riam, cantavam, bebiam e se divertiam até fraquejar as pernas. De vez em quando, uma velha assanhada, um maracujá de gaveta, se engraçava com um deles, aí então, o coitado virava a bola da vez e o motivo de caçoada pela semana inteira. Lá pelas cinco horas da manhã, Batucada – motorista sem habilitação -, anunciava a hora da partida. A romaria de volta, era prenúncio de tortura e muito saculejo, na carroceria do velho Chrysler.
                                   Pela estrada, lembrariam que ficou para trás, uma noite de muita diversão. O cheiro das cabrochas ainda estava grudado no corpo suado de cada um deles, com gosto de quero mais. Para que “Pé de Pano”, não caísse de novo, amarram uma corda nele. Na volta, por ser dia claro, não haveria o cortejo de pirilampos, o canto da coruja e nem a correia das cotias, rumo ao banhado. Os jovens, numa felicidade sem limite, avistavam a cidade vinda ao encontro. Era uma recepção àquele bando de festeiro.  
                                   Ao recordar daquelas cenas inusitadas, onde jovens embriagados de prazer viajavam na carroceria do velho Chrysler, rumo aos bailes de fazenda, lembro-me da felicidade pegando carona, num tempo que não volta mais.


Peruíbe SP, 22 de maio de 2019.

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