terça-feira, 9 de março de 2021

CHORAR PRA QUE?

 

Adão de Souza Ribeiro

 

                        Stanislaw nascera lá pelas bandas de Águas Belas, no Estado de Pernambuco. Se tinha uma coisa que chamava a atenção, era a alegria e humor de Manoel Severino dos Santos, mais conhecido como “Stanislaw”. Uma homenagem carinhosa a “Stanislav Ponte Preta”, personagem da obra literária de Sérgio Porto. Quem e porquê colocou o apelido, não se sabe. Gostava de deitar-se numa rede, estrategicamente fixada na varanda frontal da casa, onde, entre uma pitada e outra no cigarro de palha, artesanalmente feito com fumo de corda, passava horas e horas ali.


                        Quando as voltas estavam os filhos e netos, sentia-se feliz e realizado, pois gostava de contar longas histórias alegres e de bravura, vividas no seu sertão querido.  De corpo esguio, cabelos brancos como a neve, calvície acentuada, barba por fazer, unhas e dentes amarelados pelo manuseio do cigarro, peixeira cuidadosamente afiada e presa na cintura, um binga (isqueiro de querosene) no bolso, uma escarradeira ao lado da rede, chapéu e sandália de couro, bem como, o sotaque característico das “cabeceiras”, davam-lhe um ar de fragilidade.


                        Falso alarme, pois, na realidade, era muito tinhoso, cabra arretado e de uma virilidade invejável. Apesar da idade avançada, tinha um gingado no quadril e dançava um xaxado como ninguém, ali naquele pedaço (lugarejo). Tornou-se pai de um rebento, quando chegara à casa dos oitenta anos. “Lá na trapaia, fui criado com leite de cabra, jabá e muita farinha de mandioca e não com nutella, comida desses bruguelos desnutridos de hoje.”, dizia o orgulhoso nordestino Stanislaw. 

 

                        De família de valentes. O irmão mais velho fora soldado da volante (tropa da polícia) do tenente Bezerra – João Bezerra -, que matou o bandido Virgulino Ferreira da Silva, lendário Lampião – “Rei do Cangaço”-, sua mulher Maria Gomes de Oliveira – Maria Bonita - e mais nove do bando, em 28 de julho de 1938, na Grota do Angico/Alagoas. Um primo desceu para o Sul do país, onde trabalhou na construção da Rodovia Anchieta, localizada na serra do mar paulista, transportando todo material, no lombo de jumento. Povo que não rejeitava trabalho pesado.


                        Quem conviveu com ele perdia a noção do tempo, quando estava ao seu lado. Gostava de contar piadas picantes e hilárias. Apimentava-as ao narrar suas aventuras amorosas e sexuais. Qual nordestino que não era um gentleman ou raparigueiro, neste mundo. As pessoas nem piscavam para ouvir melhor seu repertório de histórias divertidas, incluindo, crianças e marmanjos.


                        Não fora à toa que um dos netos, enveredou-se pelos caminhos da literatura e passou a contar histórias sem pé e nem cabeça. Histórias por demais estapafúrdias, asseverou uma assídua leitora. Como eram histórias tiradas do imaginário, não tinha o compromisso de comprovar a veracidade. Tanto é que o neto fora apelidado de “Forrest Gamp”, personagem do ator americano Tom Hanks.


                        Mas um dia, Stanislaw resolveu partir antes do combinado para o desterro eterno. A comoção foi geral no lugarejo e a cidade se vestiu de luto. O sino da igreja, que descansava numa torre de madeira, repicou as badaladas mais tristes já vistas por ali. Na cumeeira da igreja, o alto-falante pesaroso, que vigiava a cidade diuturnamente anunciava: “Faleceu hoje, vítima de inevitável velhice, o senhor Manoel Severino dos Santos conhecido por Stanislaw. O de cujus, deixa esposa, filhos, netos, teúdas, manteúdas e um milhão de amigos. O féretro sairá amanhã às quatro da tarde, da casa dos familiares, onde, depois da missa de corpo presente, o cortejo fúnebre seguirá para o Campo Santo local.” O anúncio pesaroso repetiu-se por três vezes, até ficar martelado na cabeça dos conterrâneos.


                        Bem, mas o melhor da história estava por vir, isso sem a obrigatoriedade de comprovação. Durante o velório, que transcorreu numa estarrecedora noite de inverno, nem os familiares e nem a multidão de convidados dormia ou chorava. Se bem que nem todo mundo vai num evento desses para dormir e chorar. Aquilo estava mais para uma festa de arromba do que para um velório propriamente dito.


                        De longe se ouvia o barulho de uma banda de forró, conversas inteligíveis e altas gargalhadas. Tinha de tudo ali: bicha, piriguetes, cachaceiros, um bando de nordestinos, mendigos, desocupados de fim de baile ou expulsos de boteco, loroteiros, esfomeados, etecetera e tal. Quando contaram ao vigário o que acontecia ali, ele errou as bolinhas do terço sagrado e disse: “Que Nosso Senhor Jesus Cristo Crucificado se apiede da alma de Stanislaw!”.


                        Na varanda do fundo, Joana – empregada estimada por Stanislaw -, não vencia em preparar quentão, pipoca, canjica, caipirinha, petiscos e salgados para os convivas. Enquanto isso, Stanislaw, tremia de frio lá na sala, inerte. E não havia um filho de Deus, para trazer um edredom e cobrir o corpo gélido. Não resmungava e nem contava histórias picantes e piadas só para maiores. Alguém viu quando, discretamente, Genilson – velho amigo de infância e das noites raparigueiras -, colocou um copo da “marvada” (pinga) ao lado do seu corpo, dentro do ataúde.


                        Também viu, quando Tianinha Isprivitada, olhou para região genital do de cujus, deu um forte suspiro e disse baixinho para si mesma: “Descansa em paz, meu amor, tive momentos inesquecíveis. Você me fez feliz e me levou às nuvens!”. E viu também quando ela levou a mão à boca e jogou um beijo para genitália dele. O falecido Stanislaw retribuiu com um leve sorriso e um piscar de olhos. Uns ficaram estarrecidos com aquela cena pitoresca; outros não aguentaram e até mijaram de rir.


                        Quando em vida, Manoel Severino dos Santos – Stanislaw - era só alegria e depois de morto, chorar pra quê?


Peruíbe SP, 09 de março de 2021.

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