quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

SEXO NA CABEÇA

                                   Outro dia, lá estava eu, no “Boteco Último Gole”, que fica no final da Rua Flor de Liz, tomando uns goles de jurubeba e jogando conversa fora, junto com os amigos Bastião Conversa Mole e Chico do Rolo. Final de tarde, depois de um dia suado, nada melhor. No canto, riscando duas violas choronas, estava a dupla sertaneja Canarinho e Coleirinha, apelidos de Felisberto e Antônio. Na parede, ao fundo do balcão, um quadro da Seleção Brasileira de Futebol, tri campeã mundial. Logo abaixo do quadro, todo tipo de bebida quente, exposta. Sobre o balcão, do lado esquerdo, uma pequena vitrine da madeira, guarnecida com tira-gostos, como por exemplo, pedaços de torresmo, ovos cozidos e coxinhas.
                                   Numa mesa de bilhar ao centro, alguns conhecidos, disputavam partidas, onde um queria mostrar mais habilidade do que o outro, no manejo com o taco e na arte de encaçapar a bola. Um lugar taciturno, mas de bom grado para mim. Ali podia contar lorotas, recordar do passado, falar dos predicados das mulheres alheias e, principalmente, fugir da pressão de “dona encrenca”, a esposa rabugenta que todos nós temos. A casa é o destino de quem não quis ficar solteiro e se enveredar na procriação de filhos. “Último Gole” era, antes de tudo, um refúgio, um lugar sacrossanto.
                                   De vez em quando, por ali passava dois soldados magricelos, dentro de um cabriolé, com seus berros na cintura, a fim de verificar se tudo estava em ordem. Seo Mané, assim era conhecido o dono do boteco, tinha uma cara sisuda, com jeito de pouca amizade, mas, na realidade, era um doce de pessoa. Sempre pronto a atender ao pedido de mais uma dose, por parte dos seus frequentadores assíduos e eu era um deles. Ora ou outra, aparecia um cachorro pestilento, a espera de uma migalha de pão ou o resto de osso de frango.
                                   Em boteco se vê de tudo. Nada mais encantador do que as tardes botequeiras nas cidades interioranas e, em especial, na minha terra natal. O que se passou naquela tarde, que ora narro, é a prova viva de que sempre há uma surpresa a ser revelada. Do nada, chegou no “Último Gole”, o amigo Zé Eros. Homem dos seus quarenta anos, olhos azulados, estatura mediana, costeletas a lá Elvis e sotaque amineirado. Entrou cabisbaixo e meio choroso, sentando ao nosso lado. Embora eu estava curioso, não quis fazer pergunta constrangedora. Perguntei, apenas: “Quer tomar uma branquinha?”, ao que ele respondeu: “Uma dose de conhaque com cinar”. Fiz um sinal para o seo Mané e o amigo foi prontamente atendido.
                                   Como tenho jeito de psicólogo, não demorou muito para Zé Eros desabafar, arrancar do peito o que tanto afligia. A flecha que o sangrara na carne. Como eu já disse, o “Último Gole” era, antes de tudo, um refúgio, um lugar sacrossanto. Depois do segundo gole, desabafou em soluços: “A danada da Helena, minha mulher, aquela ingrata, disse que só tenho sexo na cabeça”. Pensa numa desgraça dessas, pois o meu amigo sentiu-se ultrajado por tamanha ofensa. Ele era tido na cidade, como homem galanteador e de boa prosa, mas sempre respeitoso com as donzelas e com as casadas recatadas. Até nos puteiros, sabe tratar as primas com deferência e elegância.
                                   “Sexo não se tem só na cabeça, mas por todos os poros e lugares possíveis do corpo”, pensei cá com meus botões. Mas por que Helena, a mulher mais bela e desejada da cidade, embora casadíssima com Zé Eros, teria dito tal infâmia a ele? Estaria o meu amigo, sofrendo de satirismo? Creio que não. Com pena de Zé Eros, pedi ao seo Mané, mais uma dose da bebida preferida dele. De repente, fica calado, respira fundo, olhos voltados para o teto, como que querendo buscar uma resposta, uma justificativa para tamanha ignomínia. Soluços intercalados, e, eu quase chorei com ele, compadecido com sua dor. Em boteco tem disso, somos solidários em tudo, não só na alegria. Choramos por nada, choramos por tudo.
                                   Como pode Helena, mulher linda e carinhosa, que fazia Zé Eros gemer sem sentir dor, vociferar tamanha blasfêmia contra aquele homem de conduta ilibada perante a família e a sociedade? Sexo é uma prova de amor e de doação total. Quando é dito crescei-vos e multiplicais, isso só se concretiza com o sexo. Portanto, ele é, antes de tudo, a materialização da vida, do amor e da esperança. Quem só pensa em sexo, é porque ama a vida. Volto a dizer: Sexo não se tem só na cabeça, mas por todos os poros e partes possíveis do corpo. Sem perceber, eu pensava falando alto e tanto os amigos Bastião Conversa Mole e Chico do Rolo, bem como, Zé Eros ouviam minhas divagações.
                                   Quando dei por mim, vi que caia a noite. A dupla sertaneja continuava dedilhando as violas choronas e cantando músicas melancólicas. Seo Mané, de vez em quando, dava uma cochilada no canto de dentro do balcão. O cachorro pestilento foi embora e nem percebi. A cidade já estava se recolhendo para dormir. A Zéfinha, minha mulher rabugenta, já há horas, estava resmungando a minha ausência. A última bola já havia sido encaçapada, na mesa de bilhar. Os copos embriagados cambaleavam sobre a mesa, já sem força para chegarem às bocas de seus consumidores. Os policiais magricelos já haviam baixado o quepe.
                                   Àquela altura, eu já estava indo para casa, cambaleando. Iria enfrentar o mau humor de Zéfinha. Ao chegar, queria apenas tomar um banho e descansar. Se Zéfinha ficasse brava, o problema era dela. Que, também não me viesse com a história, que homem “Só tem sexo na cabeça”. Tropecei na guia da sarjeta e caí. Deixa para lá.  

Peruíbe SP, 08 de fevereiro de 2019

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