Outro dia, lá estava
eu, no “Boteco Último Gole”, que fica no final da Rua Flor de Liz, tomando uns
goles de jurubeba e jogando conversa fora, junto com os amigos Bastião Conversa
Mole e Chico do Rolo. Final de tarde, depois de um dia suado, nada melhor. No
canto, riscando duas violas choronas, estava a dupla sertaneja Canarinho e Coleirinha,
apelidos de Felisberto e Antônio. Na parede, ao fundo do balcão, um quadro da
Seleção Brasileira de Futebol, tri campeã mundial. Logo abaixo do quadro, todo
tipo de bebida quente, exposta. Sobre o balcão, do lado esquerdo, uma pequena
vitrine da madeira, guarnecida com tira-gostos, como por exemplo, pedaços de
torresmo, ovos cozidos e coxinhas.
Numa mesa de bilhar ao centro,
alguns conhecidos, disputavam partidas, onde um queria mostrar mais habilidade do
que o outro, no manejo com o taco e na arte de encaçapar a bola. Um lugar
taciturno, mas de bom grado para mim. Ali podia contar lorotas, recordar do
passado, falar dos predicados das mulheres alheias e, principalmente, fugir da
pressão de “dona encrenca”, a esposa rabugenta que todos nós temos. A casa é o
destino de quem não quis ficar solteiro e se enveredar na procriação de filhos.
“Último Gole” era, antes de tudo, um refúgio, um lugar sacrossanto.
De vez em quando, por ali passava dois
soldados magricelos, dentro de um cabriolé, com seus berros na cintura, a fim
de verificar se tudo estava em ordem. Seo Mané, assim era conhecido o dono do
boteco, tinha uma cara sisuda, com jeito de pouca amizade, mas, na realidade,
era um doce de pessoa. Sempre pronto a atender ao pedido de mais uma dose, por
parte dos seus frequentadores assíduos e eu era um deles. Ora ou outra,
aparecia um cachorro pestilento, a espera de uma migalha de pão ou o resto de
osso de frango.
Em boteco se vê de tudo. Nada mais
encantador do que as tardes botequeiras nas cidades interioranas e, em
especial, na minha terra natal. O que se passou naquela tarde, que ora narro, é
a prova viva de que sempre há uma surpresa a ser revelada. Do nada, chegou no “Último
Gole”, o amigo Zé Eros. Homem dos seus quarenta anos, olhos azulados, estatura
mediana, costeletas a lá Elvis e sotaque amineirado. Entrou cabisbaixo e meio
choroso, sentando ao nosso lado. Embora eu estava curioso, não quis fazer
pergunta constrangedora. Perguntei, apenas: “Quer tomar uma branquinha?”,
ao que ele respondeu: “Uma dose de conhaque com cinar”. Fiz
um sinal para o seo Mané e o amigo foi prontamente atendido.
Como tenho jeito de psicólogo, não
demorou muito para Zé Eros desabafar, arrancar do peito o que tanto afligia. A
flecha que o sangrara na carne. Como eu já disse, o “Último Gole” era, antes de
tudo, um refúgio, um lugar sacrossanto. Depois do segundo gole, desabafou em
soluços: “A danada da Helena, minha mulher, aquela ingrata, disse que só tenho
sexo na cabeça”. Pensa numa desgraça dessas, pois o meu amigo sentiu-se
ultrajado por tamanha ofensa. Ele era tido na cidade, como homem galanteador e
de boa prosa, mas sempre respeitoso com as donzelas e com as casadas recatadas.
Até nos puteiros, sabe tratar as primas com deferência e elegância.
“Sexo não se tem só na cabeça, mas
por todos os poros e lugares possíveis do corpo”, pensei cá com meus
botões. Mas por que Helena, a mulher mais bela e desejada da cidade, embora
casadíssima com Zé Eros, teria dito tal infâmia a ele? Estaria o meu amigo,
sofrendo de satirismo? Creio que não. Com pena de Zé Eros, pedi ao seo Mané,
mais uma dose da bebida preferida dele. De repente, fica calado, respira fundo,
olhos voltados para o teto, como que querendo buscar uma resposta, uma
justificativa para tamanha ignomínia. Soluços intercalados, e, eu quase chorei
com ele, compadecido com sua dor. Em boteco tem disso, somos solidários em
tudo, não só na alegria. Choramos por nada, choramos por tudo.
Como pode Helena, mulher linda e
carinhosa, que fazia Zé Eros gemer sem sentir dor, vociferar tamanha blasfêmia
contra aquele homem de conduta ilibada perante a família e a sociedade? Sexo é
uma prova de amor e de doação total. Quando é dito crescei-vos e multiplicais, isso
só se concretiza com o sexo. Portanto, ele é, antes de tudo, a materialização da
vida, do amor e da esperança. Quem só pensa em sexo, é porque ama a vida. Volto
a dizer: Sexo não se tem só na cabeça, mas por todos os poros e partes
possíveis do corpo. Sem perceber, eu pensava falando alto e tanto os amigos
Bastião Conversa Mole e Chico do Rolo, bem como, Zé Eros ouviam minhas
divagações.
Quando dei por mim, vi que caia a
noite. A dupla sertaneja continuava dedilhando as violas choronas e cantando
músicas melancólicas. Seo Mané, de vez em quando, dava uma cochilada no canto
de dentro do balcão. O cachorro pestilento foi embora e nem percebi. A cidade
já estava se recolhendo para dormir. A Zéfinha, minha mulher rabugenta, já há
horas, estava resmungando a minha ausência. A última bola já havia sido
encaçapada, na mesa de bilhar. Os copos embriagados cambaleavam sobre a mesa,
já sem força para chegarem às bocas de seus consumidores. Os policiais magricelos
já haviam baixado o quepe.
Àquela altura, eu já estava indo
para casa, cambaleando. Iria enfrentar o mau humor de Zéfinha. Ao chegar,
queria apenas tomar um banho e descansar. Se Zéfinha ficasse brava, o problema
era dela. Que, também não me viesse com a história, que homem “Só tem sexo na
cabeça”. Tropecei na guia da sarjeta e caí. Deixa para lá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário