Adão de Souza
Ribeiro
Somos uma família centenária. Os
nossos tataravós tinham o sobrenome de Syzygium
Jambolanum. Contam os pesquisadores, que as sementes de nossa família
Myrtaceae, vieram da Índia, em época não declarada. Aqui, no “Reino Caiçara”,
somos tratados como Jambolão, mas em outros reinos, somos conhecidos como:
azeitona-preta, oliveira, jamelão, brinco-de-viúva, guape, etc e tal. No meu
país de origem, i.e, a Índia, além do consumo natural, os nossos frutos, são
usados na confecção de doces e tortas.
Eu, José Jambolão, minha esposa
Maria Jambolão e minha filha Florisbela Jambolão, nascemos há centenas de anos,
numa esquina qualquer do “Reino Caiçara”. Quando nascemos, o reino nem existia.
Ao nosso lado, havia outras espécies de árvores e de plantas. Os animais,
insetos e pássaros, acompanharam o nosso crescimento e a nossa infância. Dali,
podíamos contemplar o mar, porque não havia árvores de concreto para ofuscarem
a nossa visão. Os bichos de lata e que soltavam “pum” (peido) fedorentos, não
existiam nem mesmo em nossas mentes.
À medida que ganhávamos forma
adulta, vinham abrigar-se entre nossos galhos e folhas, os bichos e os
pássaros. Nós nos encantávamos com os filhotes nascendo em ninhos,
confeccionados em nossos galhos e camuflados por nossas folhas. As nossas sedes
eram saciadas por chuvas abundantes, que, além de banhar nossos galhos, folhas
e caules, penetravam suavemente no solo, proporcionando a energia necessária
que tanto precisávamos para sobreviver.
Trouxemos em nosso DNA, a altura
imponente de cerca de dez metros de altura, sendo chamadas pelas demais
plantas, de árvore frondosa. O nosso fruto, medindo entre dois e três cm de
comprimento, envolto em polpa carnosa e apesar de sabor adstringente, era
agradável ao paladar. A casca do nosso caule era usada na cura de hemorragia,
leucorreia e desenteria. Já o pó da nossa semente era usado contra diabetes e
prisão de ventre.
Eu, minha esposa e minha filha,
vivíamos numa felicidade plena. Embora estáticas ali, brincávamos com o vento,
o qual assoviava ao passar entre nós. À noite comtemplávamos a beleza do céu
estrelado e da luz da lua. Já durante o dia, suportávamos o sol escaldante e
nos regozijamos em proporcionar sombra aos transeuntes (animais, aves e
insetos). Rezámos para não sermos atingidos pelos raios, durante longas
tempestades. Nas noites enluaradas, eu, minha esposa e minha filha, ficávamos
conversando sobre assuntos diversos, como por exemplo, a fauna e a flora.
Mas os anos passaram, a vida
passou, até que um dia, um padre vindo de outro continente, aportou por aqui,
onde nem “Reino Caiçara” ainda era. Não foi bendito o dia, pois, a partir dali,
o nosso destino seria selado. A fome e a ganância do bicho-homem seriam
plantadas em nossa terra. Em nome da ganância, criou-se um desmatamento
incontrolável. Atrás dele, as construções de taperas, formando povoados. Os
índios, seres nativos, não nos atacavam, pois, tirava de nós, o suficiente para
sobreviverem. É certo que de lá para cá, não tivemos mais sossego.
A nossa vida bucólica, foi
violentada e, de forma selvagem, perdemos o encanto pela vida. De lá para cá,
durante as noites enluaradas, gastamos nosso tempo, não mais com assuntos
diversos, mas, sim, com lamúrias sobre um futuro incerto. A velhice chegou, mas
continuávamos firmes, pois as grossuras de nossos caules permitiam a ousadia de
resistirmos ao tempo. Não havia dúvidas de que teríamos outras centenas de anos
pela frente, se não fossemos afrontados. Os nossos frutos saciavam a fome dos
viajores que por aqui passavam.
Um dia, sem que se esperasse, o
progresso bateu á nossa porta. Como um amante intruso, violou nosso mundo,
roubando nossa paz familiar. Matou todas as árvores de menos porte, nossas
vizinhas. Os seres viventes (animais, aves e insetos), desapareceram como num
toque de mágica. Os rios caudalosos foram encobertos por um material duro
(asfalto), secando assim, nossa esperança de sobrevivência. Por sermos fortes,
como as rochas, conseguimos sobreviver. Sentimos saudade do canto dos pássaros,
da canção da chuva, do frescor do rio, do rugir das jaguatiricas, do zinir das
abelhas. O progresso expulsou o clima tropical e o calor ficou cada vez mais
escaldante.
Florisbela Jambolão, nossa filha
única, na sua inocência vegetal e já desencantada da vida, profetizou: “Um dia, o bicho-homem vai nos matar”.
Retruquei; “Matar por que, não fazemos
nenhum mal a ele ou a natureza?”. Maria Jambolão, minha eterna companheira,
com lágrimas escorrendo pelos galhos, resmungou em voz alta: “A voracidade do progresso e a ganância do
bicho-homem, forma um veneno letal”.
Não tardou e fomos surpreendidos
por serviçais do reino, os quais, munidos de motosserra, machados, serrotes e
correntes, caminhões-guinchos, vieram nos assassinar. Não adiantou o nosso
clamor, pois o som ensurdecedor dos motosserras feriu de morte nossos corações.
As pancadas dos machados afiados sangraram nossas artérias. Fomos esquartejados
ali e nossos membros, arrastados por correntes e colocados nas carrocerias dos
caminhões. Gritar por socorro, para que? Não mais havia árvores vizinhas para
nos esconder e nem mesmo os animais ferozes, para afugentar o bicho-homem.
Triste saber que a ordem de
execução, partiu do vice-Rei, o qual nem mesmo havia sido empossado no trono do
Reino Caiçara. Consta que ele era dono de uma construtora de taperas e, por
isso, tinha interesse imobiliário na construção de um arranha-céu, no lugar
onde nascemos. Dada a ordem imperial, nada mais restou senão cumprir a ordem,
desrespeitando a Lei do Idoso (somos centenários). Não houve cortejo fúnebre,
pois ninguém deu importância aos nossos corpos esquartejados, sobre a
carroceria dura de um caminhão oficial, pelas ruas silenciosas do reino.
Havia uma árvore no meio do
caminho. No meio do caminho havia uma árvore.
Peruíbe SP, 16 de
janeiro de 2016.
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